Será que este é o século da fome? artigo de Marinella Castro e Sandra Kiefer
Crise reduz em 25% doação de alimentos às nações pobres. Com isso, sobra estoque nos países produtores, como o Brasil
[Estado de Minas] Os países mais ricos, responsáveis pelos donativos às nações que enfrentam a fome, não pagaram a conta deste ano. Com a crise financeira global, as potências mundiais fizeram um estranho ajuste no orçamento. Decidiram cortar a verba mais básica de todas: os recursos destinados à compra de alimentos. Este ano, segundo cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI), a ajuda financeira aos 71 países mais pobres vai cair 25%. O resultado da medida está no último relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), que aponta para um crescimento de 100 milhões no número de homens, mulheres e crianças famintas em todo o mundo, o que eleva o contingente para mais de 1 bilhão de pessoas e faz com que os tempos atuais concorram ao título de século da fome.
Países como o Brasil, grandes produtores de alimentos e que assumem a posição de supridores dos estoques mundiais de comida, enfrentam a desvalorização surpreendente no preço dos grãos e da carne bovina, um reflexo da demanda em queda e também dos cortes para aquisição mundial de alimentos. Enquanto a fome espreita os países mais pobres, sobram alimentos na produção. Este ano, o valor bruto da safra brasileira já despencou mais de 10%.
Dados da Federação da Agricultura e Pecuária de Minas Gerais (Faemg) mostram que o abate de bovinos caiu 23% no país, maior exportador mundial de carne. Este ano, o milho já se desvalorizou 23%. Até a soja, que bateu recorde nas cotações de 2008, está 4% mais barata. “O problema da fome é de quem paga a conta. A ONU deveria demonstrar o prestígio que tem, angariando os fundos necessários para a compra de alimentos. Os países doadores fazem uma conta que o estômago não entende”, critica o secretário de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais, Gilman Viana. Segundo ele, há urgência em criar uma contribuição compulsória e o mais importante: “Com penalidades para quem descumprir a regra”.
A crise financeira bateu com mais força nos mais fracos, já que a repercussão foi imediata na verba que garante a ração mínima. O severo corte feito pelos países doadores foi o maior já visto por organizações internacionais. O Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês), uma das maiores organizações do mundo, foi surpreendido com o declínio do orçamento. A entidade havia se preparado para alimentar 108 milhões de pessoas em 74 países. No entanto, como expõe em nota oficial, o orçamento caiu para menos da metade. Até agora, a arrecadação esperada de US$ 6,7 bilhões não passa de US$ 2,9 bilhões. “Por muitas décadas, a WFP vem alimentando 10% dos famintos do mundo, mas este ano, pela primeira vez, a agência não será capaz de cumprir o seu objetivo”, alerta a nota.
Distante da fome mundial, mas acompanhando de perto as cotações internacionais, o agricultor Cássio Queiroz cultiva milho em Paracatu, no Noroeste de Minas. Ele vende sementes para multinacionais e este ano já percebeu que a demanda caiu drasticamente. “Em relação ao ano passado, a saca de 50 quilos do milho caiu de R$ 21 para R$ 16 até agora”, comenta.
“A fome não está relacionada com a produção de alimentos nem ao aumento populacional, mas a questões políticas, econômicas e de logística”, aponta o professor de relações internacionais da PUC Minas Rodrigo Teixeira. Segundo ele, no contexto mundial, o Brasil se posiciona como celeiro de alimentos, já que ocupa posição de destaque na produção de grãos e de carne. “Na discussão da fome mundial, o Brasil deve se posicionar como supridor”, completa o secretário Gilman Viana.
* Artigo originalmente publicado no Estado de Minas.
EcoDebate, 28/10/2009
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