Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar pode alterar dinâmica de ocupação do Cerrado
Especialistas dizem que canaviais devem crescer sobre lavoura, onde terra é mais fértil do que na pecuária
Sobrou para o Cerrado. O Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar, anunciado há dez dias pelo governo federal, proíbe o plantio de canaviais em dois biomas brasileiros: Amazônia e Pantanal. Não diz nada sobre o Cerrado, que já carrega nas costas o peso de metade do agronegócio brasileiro e agora terá de abrir espaço também para a produção de biocombustíveis. Um fardo e tanto para um bioma que já tem 52% de sua área ocupada, segundo dados inéditos da Universidade Federal de Goiás (UFG), publicados ontem pelo Estado.
A única região do Cerrado onde o plantio de cana foi vetado pelo zoneamento é a Bacia do Alto Paraguai – não por fazer parte do bioma, mas porque é onde nascem os rios que abastecem o Pantanal. “Minha impressão é que foi uma decisão puramente política”, diz o diretor do Programa Cerrado-Pantanal da ONG Conservação Internacional, Mario Barroso. Reportagem de Herton Escobar, no O Estado de S.Paulo.
Ele aplaude a iniciativa do governo, mas cobra uma explicação técnica para as decisões. “O decreto parte do pressuposto de que na Amazônia, no Pantanal e no Alto Paraguai não pode (plantar cana), mas não dá justificativa para isso.” Sem esses critérios, diz, ficará difícil defender o zoneamento de críticas de produtores e governadores infelizes com a exclusão de determinadas áreas. Já os ambientalistas ficam sem argumentos técnicos para exigir a inclusão de áreas semelhantes que estão fora desses biomas. O critério político do zoneamento fica claro na região central de Mato Grosso. Onde é Cerrado, pode plantar cana; onde é Amazônia, não – nem mesmo onde a floresta foi desmatada há muito tempo.
Justamente no momento em que a velocidade do desmatamento no bioma parece estar arrefecendo – segundo os dados do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) da UFG -, a expansão dos canaviais ameaça alterar significativamente a dinâmica de ocupação do Cerrado e de seus biomas vizinhos.
O zoneamento restringe a plantação de cana em “áreas com cobertura vegetal nativa”, mas não deixa claro se produtores com autorização legal para desmatar serão impedidos de plantar canaviais. No Cerrado, o Código Florestal permite desmatar até 80% da propriedade.
A estratégia do governo e da indústria para garantir o selo verde do etanol brasileiro é assegurar que a expansão da cana só ocorra sobre áreas já abertas, de pastagens degradas ou subutilizadas, sem competir com a produção de alimentos nem agredir o meio ambiente.
Isso é certamente possível e desejável. A dúvida é se será colocado em prática. Segundo estudo ainda não publicado da Conservação Internacional, 60% da expansão da cana no Cerrado entre 2003 e 2008 ocorreu sobre áreas de produção agrícola, 33% sobre pastos e 4% sobre vegetação primária. “O pior é que as pastagens que estão sendo ocupadas não são degradadas, são altamente produtivas”, diz Barroso, um dos autores do estudo. A lucratividade da cana é tão grande, segundo ele, que está substituindo até mesmo a soja. “A quantidade de dinheiro que circula onde a cana chega é impressionante.”
Em outro estudo, feito antes do zoneamento, pesquisadores do Lapig estimaram em 89,5 mil km² a área viável para expansão da cana sobre o Cerrado, o que permitiria triplicar a área plantada com canaviais. O estudo considera questões ambientais e econômicas. Apesar disso, Nilson Ferreira, um dos autores, acredita que a maior parte da expansão da cana ocorrerá não sobre pastagens, mas sobre lavouras, onde o solo é mais fértil. “A produção de grãos será impactada, sem dúvida. O filé mignon do Cerrado já foi ocupado. Não há mais solos bons para onde essa agricultura possa ir com facilidade.”
No fim das contas, poderá sobrar também para a Amazônia. O zoneamento reforça o receio de que, ao ocupar áreas de agricultura e pecuária, a cana-de-açúcar empurre essas atividades para outras regiões. Principalmente para cima da floresta amazônica, onde a terra é barata e a chuva mantém as pastagens verdes o ano todo.
A recuperação e a ocupação de pastagens degradadas, associadas ao sistema de integração lavoura-pecuária (ILP), seria a melhor maneira de evitar essa migração, segundo os especialistas. O problema é que ninguém sabe exatamente onde estão essas pastagens ou qual é a condição delas. “Degradada” é um termo genérico, usado para designar pastagens que estão produzindo abaixo da capacidade – o que pode incluir desde um campo invadido por ervas daninhas até terras completamente esgotadas, sem fertilidade, onde o capim nem cresce mais.
“A única informação que temos hoje sobre pastagens no Cerrado é onde elas estão. Não sabemos nada sobre sua condição”, diz Laerte Ferreira, diretor do Lapig. Um dos projetos em andamento no laboratório tem justamente como objetivo mapear e qualificar o estado dessas pastagens. “Sem essa informação não temos como planejar o uso dessas áreas adequadamente”, observa Ferreira.
TEMOR INFUNDADO
Para o presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), Marcos Jank, o temor de que a cana venha destruir o Cerrado é infundado. Segundo ele, a cana só pode ser plantada em áreas já alteradas pelo homem. “A cana é a primeira atividade que não poderá crescer desmatando. E isso vale para qualquer bioma.” COLABOROU AFRA BALAZINA
EcoDebate, 29/09/2009
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