Influenza A(H1N1): Uma gripe à espera de mais discussão, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Com os presidentes Oscar Arias, da Costa Rica, e Álvaro Uribe, da Colômbia, além do chefe das Forças Armadas e dois ministros colombianos, já atacados pela gripe suína, e o presidente da Bolívia, Evo Morales, recebendo tratamento preventivo – também se têm recomendado cuidados especiais ao presidente Lula, que com eles teve contatos a portas fechadas -, esse novo mal, que já era conhecido nos Estados Unidos em 1998 e se espalhou mais recentemente a partir do México, corre o risco de criar situação semelhante à vivida pela Europa no início do século 16, quando a sífilis se disseminou pelo continente. Naquela ocasião, cada país dava à doença uma denominação que sugeria ser ela originária de um país rival – “mal francês”, “mal de Bordeaux”, “bexiga francesa” e “doença francesa” eram muito comuns, ao lado de “doença castelhana”, “mal napolitano” e “doença polonesa”, entre outras. Até ao continente americano a doença foi atribuída, numa versão que a considerava levada para a Europa por nove “nativos” da América que chegaram à Espanha.
Parecem pouco fundamentadas as versões de que se trata de uma gripe em nada mais grave que a gripe comum. Segundo a revista New Scientist (2 /5), ela já fora detectada nos EUA em 1998, mas não houve cuidados suficientes. E enquanto a gripe comum costuma matar 500 mil pessoas por ano (0,2% a 0,5% dos infectados), a gripe suína até aqui tem matado de 0,3% a 1,5% das vítimas. E com a diferença de que não faz vítimas de morte principalmente entre os idosos, e sim na faixa de 15 a 54 anos. E ainda pode agravar-se. Na América do Norte já houve mais de 100 mil casos e provoca reuniões até de dirigentes do setor da aviação, que discutem se o ambiente fechado e refrigerado dos aviões contribui para a disseminação. O que é certo é que obesos parecem mais propensos a ser atingidos, ao lado de hipertensos e pessoas com problemas pulmonares. Nos EUA, 50% das vítimas eram obesas (New Scientist, 18/7). A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz-se preocupada com a alta taxa de disseminação, quatro vezes maior que a da gripe comum, assim como com a alta taxa de mortes , 2.100 mil pessoas em 209 mil casos (Estado, 31/8). E o número pode aumentar a partir de outubro, com a aproximação do inverno no Hemisfério Norte.
Na Cúpula de Assunção (28/8), o Mercosul e países associados defenderam a utilização de medicamentos dessa área sem pagar pelo uso de patentes a indústrias farmacêuticas, atendendo à emergência e à flexibilidade prevista nos acordos sobre propriedade industrial e nas regras da OMS – já que “vacinas antivirais e material de diagnóstico são bens públicos globais” e a gripe atinge 160 dos 193 países da OMS. É um tema espinhoso, que volta e meia está nos jornais. Agora também porque o lobby das empresas tem pago viagens de deputados e senadores à Europa, na tentativa de conseguir apoio à ratificação, pelo Brasil, de um tratado que permite o reconhecimento em qualquer país de uma marca registrada em outro (Agência Estado, 20/7).
O fato é que até aqui as empresas produtoras de vacinas não têm aceitado permitir a fabricação sem o pagamento de royalties. Algumas até anunciam a doação de vacinas a países mais pobres. Para que se tenha ideia do valor da questão, o conceituado Thomas Lovejoy sempre lembra que só o valor do comércio de medicamentos em área próxima (derivados de plantas) no mundo supera US$ 200 bilhões anuais.
Enquanto a questão não se resolve, vale a pena retornar ao início deste artigo e à questão da sífilis, tratada com competência no livro Memórias de um Cirurgião-Barbeiro (editora Bertrand Brasil) pelo diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, Heitor Rosa. Escrito na forma de uma narrativa do cirurgião-barbeiro Gioacchino dalla Rosa, assistente do cientista Girolamo Fracastoro, o livro trata do drama da sífilis no continente europeu no início do século 16 e do combate liderado por Fracastoro, que, chamado pelo Vaticano, deu à doença até o nome – Syphilis sive morbus gallicus -, inspirado num pastor italiano, Sífilo. Na época, um terço dos parisienses era portador de sífilis.
Fracastoro, nascido em 1483, já aos 19 anos era professor na Academia de Pádua, onde assimilou conhecimentos de Hipócrates, Galeno, Avicena, Copérnico e outros. Chamado pela Igreja, preocupada com a extensão do problema da sífilis, que já chegara também à Líbia, à Inglaterra e à Ásia e atingia até dignatários católicos de alto nível, começou a pesquisar. E chegou à conclusão de que os caminhos até ali seguidos – sangria, principalmente, e tratamentos com mercúrio, que tinham dramáticos efeitos secundários – não davam resultados; o caminho talvez fosse o pau de guáiaco, importado das Américas, e sua resina balsâmica.
Num dos momentos mais interessantes, o papa pede-lhe que recorra a seus conhecimentos de astronomia e astrologia para dizer que uma temida peste se aproximava de Trento, onde se realizava um concílio (Fracastoro era o médico oficial), de modo a poder transferir a segunda fase do conclave para outro lugar, longe da influência do imperador da Alemanha.
A história é oportuna para ressaltar que também na área médica as questões políticas podem influenciar muito. Estamos aí às voltas com uma pandemia muito mais grave que a gripe comum, mas insiste-se em que não há diferença sensível. Uma doença que mata principalmente pessoas na força da idade (15 a 54 anos) e obesos (já temos 13% da população brasileiras nessa condição), e não apenas idosos. Que já está no nível máximo classificado pela OMS e pode atingir dezenas de milhões de pessoas no mundo todo, até presidentes da República e ministros. E que não consegue um combate mais eficaz em parte por causa da posição de indústrias farmacêuticas.
É preciso redirecionar a discussão.
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 14/09/2009
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