A Cidade na Geografia Econômica Global de Ricardo Gaspar. Crítica por Nabil Bonduki
Os estudos urbanos são essencialmente interdisciplinares. Não é possível analisar as cidades sob enfoques estanques, sob o risco de se cometer equívocos analíticos e de se perder aspectos fundamentais para o entendimento do processo de urbanização. Os diferentes olhares profissionais – do arquiteto/urbanista, do geógrafo, do sociólogo, do economista, do advogado, do antropólogo, do trabalho social – observam a cidade sob ângulos diferentes, revelando facetas impossíveis de serem vistas com as ferramentas analíticas exclusivas de uma só formação.
Na medida em que as cidades e o planejamento urbano são o objeto específico de trabalho dos urbanistas que, no Brasil, estão intimamente ligados, pelo processo de formação e regulamentação profissional, aos arquitetos, este segmento tem exercido uma forte hegemonia nessa área. No entanto, os instrumentos analíticos e o aprofundamento conceitual das outras áreas são indispensáveis para que se possa dar conta de enorme gama de aspectos presentes na análise urbana. Infelizmente, nota-se um progressivo e relativo afastamento – em alguns casos, até desinteresse – das outras disciplinas face ao estudo dos processos urbanos.
Nos anos 1960 e 1970, a sociologia teve um papel decisivo nas análises urbanas, mas parece ter perdido o interesse pelo tema, o qual nunca foi abordado com ênfase pelos economistas, malgrado o fato de a maior parte das riquezas serem financiadas, produzidas, distribuídas e consumidas nas cidades. Já os geógrafos se destacaram desde os anos 1940 como primorosos pesquisadores urbanos, ao desenvolver métodos próprios de observação, descrição e análise dos processos de urbanização, e vêm de certa forma cumprindo o papel de manter as ciências humanas presentes nessa área, gerando estudos abrangentes capazes de se tornar referência nas investigações urbanas, como os trabalhos de David Harvey e Milton Santos.
Este curto, mas denso livro do Professor Ricardo Gaspar, sociólogo de formação que adentra com profundidade em outras áreas de conhecimento, como a ciência política, a economia e a geografia urbana, realizando um belo estudo interdisciplinar sobre as cidades e suas perspectivas neste início do século XXI, introduz uma série de reflexões certamente muito úteis para os que estão estudando o processo e a gestão urbanos, e muito acrescenta ao que tem se produzido nesse campo.
A atual crise econômica global vem redefinindo o papel do Estado, tornando superada a fase de predomínio do mercado desregulamentado, que fez prosperar a ideia do Estado mínimo. Na medida em que as políticas públicas urbanas são, essencialmente, questões de Estado, elas deverão, nas novas circunstâncias, serem totalmente redefinidas, tanto no que se refere às regras que regulamentam a ação dos agentes privados, como a própria intervenção direta do poder público.
As iniciativas de inúmeros governos dos países ricos e emergentes para combater os efeitos da crise – como o recente programa na área da habitação popular lançado pelo governo brasileiro – são uma demonstração do papel que o Estado deverá desempenhar neste novo momento. Ricardo Gaspar, que escreveu este livro antes da emergência da crise de 2008/2009, expõe as fragilidades do capitalismo desregulamentado e ressalta que o Estado nacional deve se fortalecer para ser um ator fundamental na questão urbana. Ele aponta a insuficiência das análises que supervalorizaram o papel das cidades na presente fase globalizada da economia mundial. Enfatiza, ainda, a importância da escala regional, indispensável para enfrentar a problemática urbana, particularmente nas regiões metropolitanas. Em relação a tais aspectos — centrais na visão do autor —, cabe expor e analisar uma breve reflexão sobre o processo de ascensão e declínio da concepção neoliberal que prosperou até mesmo entre alguns pensadores de esquerda, interferindo fortemente nas análises urbanas.
Nos já distantes anos noventa, momento em que prevaleceu a crença absoluta nas virtudes do mercado, consolidada no chamado Consenso de Washington, ao mesmo tempo em que se processou uma revolução na tecnologia de informação que acelerou os fluxos globalizados, foram gerados conceitos e interpretações equivocadas sobre o papel do Estado e sobre as escalas de sua intervenção sobre o território, em particular, o urbano.
No rastro da queda do Muro de Berlim, símbolo da ruína do império soviético cuja existência, longe de representar a utopia socialista, já não passava de um pesadelo autocrático, desenvolveu-se um discurso fortemente ideologizado. Discurso este voltado a desmontar o arcabouço de uma organização social e urbana, construída a partir dos anos 1920 e fortemente impulsionada no segundo pós-guerra europeu, baseada no fortalecimento do Estado, da planificação territorial em diferentes escalas e nas políticas de bem-estar social emergentes no capitalismo avançado como contraposição à forte mobilização popular e luta pelo socialismo.
Nas últimas décadas do século passado, simultaneamente à formação ou consolidação dos grandes blocos de integração econômica, buscou-se impor um “pensamento único”, que propagava a ineficiência do Estado, a necessidade de diminuí-lo e, ainda, a suposta perda da sua importância em um mundo cada vez mais globalizado e integrado por fluxos informacionais – financeiros, culturais e tecnológicos – tendentes a diluir as fronteiras nacionais e regionais. O propalado enfraquecimento do Estado Nacional, engolfado pelo predomínio do mercado em escala global, seria, de acordo com semelhante visão, “compensado” pelo fortalecimento das cidades, sobretudo as globais, que passariam a ser o locus primordial da formulação e implementação de políticas públicas.
Dessa abordagem emergiu a máxima “pensar globalmente, agir localmente” – criticada por Ricardo Gaspar –, que levou muitos pensadores urbanos, inclusive de esquerda, a desconsiderar a importância do estado nacional e da escala regional, seduzidos pela ideia de que as cidades poderiam dispor de suficiente autonomia para traçar suas próprias estratégias de desenvolvimento, inclusive na esfera estritamente econômica.
Num momento em que se impunha o “pensamento único” e o mercado passava a reger todas as relações econômicas, as cidades – como desdobramento dessa concepção equivocada – passariam a agir como se fossem “empresas” em competição, concorrendo entre si na disputa por investimentos ou por sediar empresas e grandes eventos esportivos, culturais ou políticos de interesse global. O planejamento, nas suas diferentes escalas, foi deslocado pelos projetos urbanos, de grande impacto mediático, capazes de criar uma espécie de “espetacularização” da cidade, marketing que a posicionaria melhor para a disputa concorrencial. Barcelona tornou-se o exemplo mais acabado de tal visão e os urbanistas catalães rodaram o mundo, como consultores, vendendo esse modelo.
A virada do século trouxe novidades importantes, que alteraram e radicalizaram o ambiente político. Por um lado, o 11 de setembro, que desafiou a maior potência do mundo, revelou a força dos que se opunham ao etnocentrismo e, em contraposição, serviu como argumento para uma forte reação bélica que buscava consolidar o poder imperial do capitalismo ocidental, globalizado e hegemônico.
Por outro lado, novos espaços de debate arejaram o ambiente político e criaram referências para a ampliação do debate intelectual. O Fórum Social Mundial, cuja primeira edição em 2001 surpreendeu o mundo por sua mobilização e pelo frescor de seus debates, marcou uma reação contra o pensamento único e propôs visões múltiplas que rompiam com o dogmatismo tradicional da esquerda. Suas sucessivas edições apontaram novos rumos e criaram energias utópicas aptas a balizar as discussões em toda essa década que ora se encerra, de forma tão diferente de como começou.
O FSM apontou os limites do mercado, colocou em pauta a questão social, a diversidade cultural e regional e a força das minorias. Mostrou, ainda, que a globalização e as novas tecnologias de informação também podiam ser utilizadas para fortalecer redes formadas por ativistas orientados para processos de transformação da ordem mundial.
A crise financeira internacional marca o final desta década, com a quebradeira de bancos, seguradoras e empresas multinacionais, constitui o ponto de chegada, o limite e a inflexão desse processo. As reações do mercado, fragilizado como jamais se prognosticou, curvando-se ante o Estado, e as ações intervencionistas dos governos, mostram que as teses hegemônicas prevalecentes desde os anos 80 estão superadas. Embora o livro de Gaspar não objetive analisar a cidade sob essa nova realidade, sua acurada observação e capacidade de interpretação dos fenômenos urbanos, assim como sua crítica ao “pensamento único”, articulada com a citação de inúmeros outros autores, oferecem uma rica contribuição, de grande utilidade para os que querem pensar e agir nas cidades na nova conjuntura, particularmente no que se refere ao papel do Estado nacional e das regiões na política urbana.
Preocupado com a escala regional que tem sido desprezada no Brasil, em decorrência da supremacia que o poder local — entendido como o municipal —, ganhou na Constituição de 1988, Ricardo Gaspar lança o desafio da construção de uma instância metropolitana como essencial para enfrentar as questões urbanas. Para os que atuam em regiões metropolitanas e em outras áreas conurbadas, introduzir essa dimensão é central, pois não é possível enfrentar os problemas urbanos no Brasil, sejam eles de saneamento, meio ambiente, habitação, transportes e uso do solo, entre outros, sem levar em conta a escala metropolitana.
Colocando assim, em primeiro plano, o Estado nacional e a escala metropolitana, Ricardo Gaspar termina seu livro com otimismo, buscando mostrar que, longe da catástrofe que muitos veem no futuro das cidades, ainda é possível pensar utopias, cidades onde existam esperança de justiça, qualidade de vida e equidade.
Nabil Bonduki, doutor em arquitetura e urbanismo, Vereador da cidade de São Paulo (2001-2004) e professor de Planejamento Urbano na FAU-USP.
Serviço:
A CIDADE NA GEOGRAFIA ECONÔMICA GLOBAL
Autor: Ricardo Gaspar
Páginas: 100
Editora: Publisher Brasil
Preço Sugerido: 28,00
EcoDebate, 08/09/2009
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