Medindo o prejuízo de nossa ‘pegada de água’
Um engenheiro hídrico holandês inventou a “pegada de água”. Em uma conferência na Suécia, ele e outros participantes discutiram o desperdício de água, os supermercados cheios de frutas e vegetais produzidos em algumas das regiões mais áridas do mundo e formas pelas quais podemos evitar desperdiçar nosso mais precioso recurso.
Arjen Hoekstra não se destacava na multidão de dois mil cientistas, ativistas, políticos e representantes da indústria que perambulavam pelos corredores da feira em Estocolmo. Figuras que chamavam muito mais atenção do que o engenheiro hídrico holandês compareceram à Semana Mundial da Água na Suécia na semana passada. Representantes asiáticos usavam sáris brilhantes. E o empresário indiano Bindeshwar Pathak atraia bandos de repórteres por onde andava no evento, depois de ser nomeado o ganhador do Prêmio de Água de Estocolmo deste ano por inventar um vaso sanitário para moradores de favela. Reportagem de Samiha Shafy, no Der Spiegel.
Mas Hoekstra preferiu passar despercebido na conferência global anual, focada em assuntos relacionados à água. Ele não tinha nada para provar. Ainda assim, depois de seus aparentes esforços para ficar incógnito, a criação de Hoekstra funcionou como um ímã para o debate aqui. Ele surgiu com a idéia de uma “pegada de água”.
Dez mil litros de água para uma calça jeans
Sua equação na verdade consiste apenas em alguns números usados para descrever a quantidade de água que é usada – ou poluída – durante o processo de produção de vários produtos. Qualquer um pode calcular sua pegada de água observando a quantidade de água que usa diretamente e depois observando a quantidade de “água virtual” que usa – ou seja, a quantidade de água usada na produção de qualquer bem que consome. A média global para a pegada de água de um indivíduo é de 1.243 metros cúbicos de água por ano. Nos Estados Unidos, isso chega a 2.483 metros cúbicos por ano; na Alemanha, a 1.545, e na China, é de 702.
A fórmula da pegada de água de Hoekstra já ganhou as manchetes no mundo todo com suas estimativas sobre a quantidade de água que é usada ou desperdiçada em produtos simples que fazem parte de nossas vidas diárias:
140 litros de água para uma xícara de café!
2.400 litros para um hambúrguer!
10 mil litros para uma calça jeans!
Nas discussões e oficinas em Estocolmo, os participantes debateram que tipo de ação deve ser tomada em resposta ao resultado dos números da pegada de água. O primeiro grupo ambientalista que reconheceu a validade da pegada de água foi a WWF, e outros grupos de proteção e conservação ambiental, assim como as Nações Unidas e o Banco Mundial, fizeram o mesmo em seguida. Finalmente, até companhias multinacionais como a Nestlé, Unilever e Pepsi admitiram o novo conceito.
Água virtual indo na direção errada
E todos eles parecem concordar que os números de Hoekstra podem ser potencialmente explosivos – principalmente porque eles deixam claro como a água, o mais precioso dos recursos, é usada levianamente em muitas áreas. “Por causa do comércio internacional de produtos que consomem muita água, há um fluxo de água virtual escoando por todo o mundo”, disse Hoekstra. “E boa parte desse fluxo está indo na direção errada, de países pobres em água para regiões ricas em água.”
A maior parte desse fluxo envolve alimentos, biocombustíveis e algodão. Cerca de 70 a 80% de todo a água consumida no mundo é usada para fins agrícolas. A União Europeia, por exemplo, contribui indiretamente para secar cada vez mais o Mar de Aral no Cazaquistão e Uzbequistão importando algodão da região. E quando os alemães compram presunto da Espanha ou laranjas de Israel, eles também contribuem para a escassez de água nessas regiões. De fato, a Alemanha, um país que tem água em abundância, é um dos maiores importadores de água virtual do mundo.
Hoje, cerca de 1,4 bilhão de pessoas mora em áreas onde a água é escassa. A mudança climática, o crescimento populacional e o fluxo de água virtual servem apenas para exacerbar o problema. “Em 2050, seremos confrontados com a situação paradoxal de ter que alimentar mais 2,5 bilhões de pessoas, com bem menos água”, disse Colin Chartres, diretor geral do Instituto Internacional de Gerenciamento da Água, uma organização internacional sem fins lucrativos que procura formas de melhorar o gerenciamento das terras e da água.
“Nas regiões secas não deveria haver mais agricultura”
Nesse cenário, os representantes em Estocolmo argumentaram a respeito de quão realistas são as ideias mais radicais de Hoekstra. “Nas áreas secas não deveria haver mais agricultura”, sugeriu o holandês. Sua idéia envolve usar o comércio de água virtual para reequilibrar o orçamento de água da terra. Em vez de irrigar campos desertos, o Egito se beneficiaria mais se importasse feijões ou milho alvo da Etiópia, por exemplo. E a Austrália, onde a região de Outback é uma das mais áridas do mundo, também deveria parar de exportar água virtual em forma de carne, frutas e vinhos.
Os mesmos argumentos poderiam ser aplicados para as zonas áridas da Terra – desde o Oriente Médio ao norte da China e noroeste da Índia, até o sul da Califórnia. Hoekstra diz que todas essas regiões poderiam aliviar sua escassez de água deixando seus campos secarem e importando mais água virtual. “Essas regiões pobres em água precisam ter uma nova visão para o futuro”, argumentou Hoekstra. “Assim como os países produtores de petróleo, onde o recurso está começando a faltar, têm de fazer o mesmo.”
Mas o que faria qualquer país abandonar a agricultura, totalmente ou parcialmente? O pesquisador ambiental britânico Tony Allan, 72, que primeiro cunhou o termo “água virtual,” nos anos 90, concorda com Hoekstra. “Cingapura é um exemplo interessante”, disse ele. “Eles não tem recursos hídricos ou agricultura. Noventa por cento de sua necessidade de água é suprida pela importação de água virtual. O resto vem da reciclagem e dessalinização.”
Países ricos asseguram fornecimento de água
É claro, Allan sabe que o modelo de Cingapura não é necessariamente apropriado para o resto do mundo. Ele até admitiu que nenhum país deverá desistir voluntariamente de suas práticas agrícolas no futuro próximo. “Mas não é mais um tabu falar sobre essas coisas”, observou ele.
Durante as oficinas em Estocolmo, os especialistas não demoraram em concordar que as novas estruturas de preços podem guiar o comércio de água na direção certa. Hoje, os preços da água são normalmente distorcidos através de subsídios governamentais para os fazendeiros – principalmente porque se não houvesse subsídios, a agricultura e a pecuária se tornariam proibitivamente caras nas regiões secas e não valeriam mais a pena.
Enquanto isso, países como a China e a Arábia Saudita estão comprando vastas extensões de terras férteis em lugares como a África, Ásia e América Latina. Ao comprar terra em vez de alimentos, eles asseguram o acesso à água no futuro. Os países na corrida pelas terras não estão sozinhos, tampouco – eles estão competindo diretamente com gigantes da produção de alimentos como a Nestlé e a Coca-Cola, que vêm comprando os direitos por reservatórios de água em todo o mundo há anos.
Muitas companhias estão recebendo bem o aumento do debate sobre a pegada de água em Estocolmo. É uma ótima oportunidade para fazerem algo para melhorar sua imagem. De fato, várias grandes corporações enviaram delegações inteiras para Estocolmo. Nas oficinas, os delegados continuamente repetiram a mesma mensagem: seus funcionários estão tentando fazer o máximo para deixar a menor pegada de água possível.
Tradução: Eloise De Vylder
Reportagem [Measuring the Damage of our ‘Water Footprint’]do Der Spiegel, no UOL Notícias.
EcoDebate, 31/08/2009
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