Energia: esperança vem até de dejetos, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Em que se traduzirá, na prática, a decisão do governo brasileiro, anunciada no início da semana, de assumir na reunião da Convenção do Clima, em dezembro, “metas” de redução das emissões nacionais de gases que contribuem para o efeito estufa – metas essas traduzidas em “números”, como disse o ministro do Meio Ambiente, mas cobrando “recursos, parcerias tecnológicas” (Estadão, 25/8)? Até aqui, o Brasil tem-se recusado a assumir compromissos de redução. Esses “números” concretizarão uma mudança real? Seria esse o significado das “ações quantificadas” que o Itamaraty menciona (Folha de S.Paulo, 12/8)? Improvável. E que estará dizendo o novo inventário brasileiro de emissões, também anunciado para estes dias? Há quem afirme, como o consultor do governo britânico sir Nicholas Stern, que elas dobraram em relação a 1994, quanto atingiram mais de 1 bilhão de toneladas de carbono/ano e mais de 10 milhões de toneladas de metano.
Talvez se desfaça o mistério numa reunião preliminar que a ONU promoverá no próximo dia 22, em Nova York. O próprio secretário-geral da convenção, Yvo de Boer, já disse que considera escasso o tempo para que se chegue a um acordo global – incluído o das duas últimas reuniões preparatórias específicas, em Bangcoc e Barcelona, que antecederão a cúpula de Copenhague, em dezembro. Na verdade, serão apenas 15 dias de negociações para tentar reduzir a umas 30 páginas o documento até agora negociado, que está com cerca de 200 páginas – o que significa que as posições divergentes de cada país ou bloco continuam entre colchetes, como é a praxe nesse tipo de discussão internacional.
Apesar do ceticismo rondante, várias instituições continuam a afirmar que há soluções possíveis, mas dependerão fundamentalmente de pôr em prática tecnologias capazes de reduzir as emissões. E isso pode custar até US$ 400 bilhões por ano – cálculo do World Wide Fund (WWF) -, além de depender de transferência de tecnologias para os países mais pobres. Mas os Estados Unidos e outros países industrializados até aqui deixaram claro nas negociações que não aceitam mudanças no regime de propriedade dessas tecnologias – o que exige pagamento de royalties e outros direitos.
Enquanto isso, sucedem-se as notícias preocupantes. Julho de 2009 foi o mês mais quente no mundo em 130 anos, 0,6 grau acima da média de século 20. No Ártico a temperatura ficou 5,5 graus acima da média. Estudo publicado nos Proceedings of the National Academy of Sciences (Estado, 18/8) mostra que as chuvas podem ser 6% mais fortes a cada grau mais elevado de temperatura.
Também há notícias positivas. O próprio secretário-geral da ONU informou que a China acrescentou 4,5 mil MW de energia eólica à sua matriz energética, no primeiro semestre deste ano. Ainda assim, um estudo de assessores científicos do governo chinês afirma que o país precisa de “metas rígidas” (que até aqui a China não aceita) para que o consumo total de energia possa cair – a partir de 2030. Esse país já é o maior emissor no mundo, com 1,8 bilhão de toneladas anuais de carbono, e até 2020 triplicará para 150 milhões o número de veículos em circulação no seu território. Mas também é o maior produtor de painéis fotovoltaicos.
No ritmo atual, diz a Agência Internacional de Energia, o consumo desta aumentará 70% até 2030 e o petróleo só baixará de 38% para 33% na matriz energética, enquanto o carvão cairá de 24% para 22%. Seus especialistas afirmam que será preciso investir US$ 45 trilhões até 2030 para compatibilizar a matriz com a questão do clima. Será possível? A Rede de Políticas de Energia Renovável mostra que esta cresceu 16% em 2008 e chegou a 280 mil MW no mundo, com aumentos de 70% na energia de fotovoltaicos conectados a redes, 29% na energia eólica e 34% nos bicombustíveis. Já o Instituto Pike assegura que os biocombustíveis crescerão 15% ao ano e em 2020 chegarão a US$ 1 trilhão/ano. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente prevê a criação de 20 milhões de empregos na área das energias renováveis em dez anos…
Por aqui, continuaremos a recorrer, nos próximos leilões de energia, a termoelétricas altamente poluidoras. Até o ano que vem, teremos apenas 1,4 mil MW de energia eólica, quando o potencial é de 60 mil MW. Mas a cada dia surgem novas possibilidades, principalmente no campo das bioenergias. No IV Congresso Internacional de Bioenergia, em Curitiba, há duas semanas, por exemplo, houve uma apresentação do projeto de geração de energia a partir de resíduos animais, já em execução no Paraná, com apoio da Itaipu Binacional e da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, que já tem até livro editado (Agroenergia da Biomassa Residual, coordenado por José Carlos Libânio, Cícero Bley Jr., Maurício Galinkin e Mauro Márcio Oliveira).
Nesse processo, os dejetos animais queimados geram biogás, que produz energia; o agricultor a consome diretamente, em especial nos horários de pico, quando a energia da rede é mais cara, e até pode vender a esta o excedente, se houver. Um subproduto do processo é o biofertilizante. E toda a cadeia produtiva de carnes, ao tratar adequadamente a biomassa residual, pode reduzir a emissão de gases que afetam o clima e se candidatar à comercialização de créditos de carbono.
O potencial teórico do processo no País, diz o estudo, é de 1 bilhão de KW por mês, suficiente para abastecer uma cidade de 4,5 milhões de habitantes. Se aos 12 bilhões anuais por esse processo se adicionar o potencial do vinhoto do álcool, chega-se a uma geração distribuída suficiente para suprir, por exemplo, toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Como se pode chegar a 2,4% da oferta de energia no País ou 12% da geração de Itaipu. Ou ainda toda a oferta da Usina de Jirau, no Rio Madeira.
Se até em dejetos é possível encontrar soluções, não se deve perder a esperança.
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes{at}uol.com.br
* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 31/08/2009
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