Vale do Jequitinhonha a partir da 13a Romaria das águas e da terra (de MG) em Itinga, artigo de Frei Gilvander Moreira e Delze dos Santos Laureano
[EcoDebate] Numa casa simples, na periferia da cidade de Itinga, MG, frei Eron, Frei Gilvander e uma criança tentavam consolar K., adolescente de 16 anos, uma menina linda que acabara de perder de forma trágica a mãe. A criança dizia a K.: “Não chore não. A polícia vai trazer de volta a sua mãe.” Frei Gilvander perguntou à criança: “O que podemos fazer para consolar K.?” Ao que ela respondeu: “Não sei, mas penso que devemos dar água com açúcar para ela.” Após dizer algumas palavras de consolo, Frei Gilvander pergunta: “K., você tem irmãos?” Com uma voz quase inaudível diz a menina chorando: “Tenho um irmão, mas ele mora em Belo Horizonte.” Nova pergunta: “Você tem pai?” Entre lágrimas, a resposta de K: “Meu pai foi embora para São Paulo. Foi trabalhar no corte da cana e nunca mais voltou. Não temos mais o endereço dele. Ele nos deixou há muito tempo. Ficamos sós, minha mãe, meu irmão e eu.” K. estava desolada. Tinha acabado de receber a noticia que a mãe, uma senhora de 53 anos, havia saltado, na noite anterior, da ponte do Rio Jequitinhonha para a morte. Alguém a encontrou boiando rio abaixo e avisou à polícia que foi comunicar à filha e à tia, outra senhora bastante idosa e pobre.
Esta história trágica é apenas a ponta do iceberg dos graves problemas socioeconômicos vividos pela população do Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais empobrecidas do Brasil. A realização da 13ª Romaria das Águas e da Terra no Município de Itinga, MG, Diocese de Araçuaí, no dia 02 de agosto de 2009, criou a oportunidade para que os milhares de participantes pudessem experienciar sentimentos como compaixão, solidariedade, partilha, mas também o sentimento de indignação e o da necessidade de arregaçar as mangas para por fim a tantas injustiças que se perpetuam contra os pobres no nosso país. O caminho para atingir este objetivo não tem sido alcançado pelas vias institucionais (que na voz dos políticos, já melhorou muito). Basta ver que apenas naquele final de semana foram dois os suicídios na cidade de Itinga; um rapaz de apenas 18 e essa senhora de 53 anos. Por tudo isso, fortalecemos o nosso entendimento de que construir uma ponte3 é apenas uma pequena contribuição para mudar a vida de pessoas que são vítimas do latifúndio, da degradação ambiental e da falta de políticas públicas adequadas para as necessidades locais.
Acreditamos que o caminho para que essas pessoas sejam reconhecidas como brasileiros seja a organização de uma múltipla rede de pequenas iniciativas que crie nas pessoas a consciência de participação efetiva na sociedade como titulares de direitos. Hoje no Brasil os eventos de mobilização social e de formação de lideranças têm mostrado oportunidades para essas iniciativas, citamos principalmente aquelas organizadas ou apoiadas pelas pastorais sociais da Igreja Católica. A 13ª Romaria das Águas e da Terra, por exemplo, ocorre anualmente no Estado de Minas Gerais, sob a liderança da CPT – Comissão Pastoral da Terra – e contando com apoios importantes como o da Cáritas, do CIMI4, da Pastoral dos Migrantes, das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – e das Dioceses anfitriãs das Romarias.
O suicídio da mãe de K. desnuda o ambiente desumano em que estão submetidos os pobres do Vale do Jequitinhonha em sua maioria. O pai da menina, um trabalhador rural, por falta de terra para trabalhar e por não ter nenhuma renda, não teve outra alternativa senão abandonar a família e ir tentar a sorte nos canaviais paulistas. Nunca mais voltou, talvez porque ao invés da sorte, tenha encontrado o azar, e agora já pode estar morto, de exaustão ou de outras tantas mazelas que condenam os trabalhadores nas Usinas de cana-de-açúcar. O irmão de K., também não tendo outra sorte, foi embora trabalhar na capital do Estado, certamente de ajudante de pedreiro e engrossando a lista dos que sobrevivem nas favelas, as senzalas da atualidade. A menina K. não poderia ter outro destino. Já não bastasse a dor da ausência do pai, agora perde também a mãe que, segundo ficamos sabendo, andava muito triste com o comportamento da filha que já é mais uma das vítimas da exploração sexual da BR 116.
Esse é apenas um quadro vivo dos problemas socio-políticos existentes na região, resultado da perpetuação de um modelo perverso de exploração das pessoas e de todo o ambiente. Na preparação para a Romaria houve uma semana de missões, na qual sessenta missionárias/os conviveram, visitaram, celebraram e refletiram com as comunidades cristãs do Município. Além de divulgar a Romaria mesma, com o auxílio de uma Cartilha, celebraram os missionários/as um tríduo com as comunidades visitadas. Levantaram com esse trabalho um rico diagnóstico dos problemas enfrentados pelos trabalhadores. Trouxeram também as experiências que são luz para a superação de tantos problemas.
A percepção da vida em Itinga partilhada pelos missionários, e documentada na Carta da 13ª Romaria, da qual foram distribuídas 10 mil cartas dos romeiros às comunidades, estão nos relatos emocionados que passaremos agora a enumerar. Em Itinga, hoje, vive um povo que acredita no Deus da vida, em sua maioria pobre de recursos materiais – até mesmo aqueles essenciais à vida – sobre um território extremamente rico e explorado de forma predatória e irresponsável pelas empresas e latifundiários. Dentre os minerais explorados na zona rural está o granito raro, rosa e azul. A explotação do minério causa impactos negativos sobre as nascentes de água, sobre a vegetação e o solo. Essa atividade econômica tem destruído os meios da agricultura familiar, mesmo nos distritos vizinhos às áreas exploradas, causando o desaparecimento de inúmeras nascentes de água. É intenso também o garimpo de cristais e pedras como a turmalina, de alto valor para a exportação.
A falta de água entristece a vida no ambiente. Nas cidades sofrem as periferias que ficam até três ou quatro dias sem abastecimento. Na zona rural, muitas vezes, o jeito de encontrar água para a sobrevivência é cavar cacimbas no leito seco de córregos e rios que, na época dos pais e avós, corriam de forma perene. Emocionados, os missionários contaram a história de famílias que buscam água nos potes de barro carregados na cabeça, ou de famílias que enterram latas na areia para retirar após longa espera uma água barrenta, a mesma disputada com os animais para a sua dessedentação.
O lixo e a falta de higiene são problemas de saúde pública visto em várias comunidades. Crianças que comem no mesmo prato com porcos e galinhas, bichos que vivem dentro das casas utilizando para ninho as mesmas camas onde dormem as pessoas. As sacolas de plástico e as garrafas pet abundam nas proximidades das casas e nas ruas de terra dos distritos. O lixo desliza sobre a superfície do Rio Jequitinhonha e nos córregos. Em todos os lugares a notícia é a da contaminação da água com os resíduos perigosos do garimpo e dos agrotóxicos.
A insuficiência da ação das associações comunitárias e do trabalho dos agentes sociais, seja das pastorais sociais da Igreja, seja dos órgãos públicos, tem refletido na falta do transporte público, no atendimento na área da saúde, na precarização das escolas e nas condições de moradia e renda das famílias. Um dos trabalhos que têm gerado uma renda mínima é o artesanato da colher de pau, gamelas e varetas de bambu para churrasco. Porém vemos que a matéria prima se escasseia na região sem que haja políticas de replantio ou de proteção às áreas de exploração. Na contramão o que se noticia é a chegada do eucalipto que vai ocupar os territórios onde indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais conseguem viver minimamente com a transformação dos bens naturais existentes como a madeira, o bambu e a argila.
Assim, à ausência do Estado são somados os crimes do latifúndio, que perpetua o trabalho similar ao escravo, a degradação do ambiente com as atividades minerárias, com a velha pecuária de extensão, a concentração da terra e o monopólio das decisões políticas. As famílias são mutiladas quando saem do Vale os braços roubados da agricultura familiar, para o corte da cana-de-açúcar, essa matéria prima do etanol, propagandeada pelo Governo como “energia limpa” e como a “salvadora da pátria” para gerar as divisas de que o Brasil necessita na exportação. As mulheres, não bastasse o sofrimento da eterna ausência dos maridos (as viúvas de marido vivo), carregam na cabeça, nos potes pesados, os míseros litros de água que têm direito para todas as necessidades diárias da família. Segundo narraram os missionários, aos jovens e crianças resta um sonho ilusório: ir embora. Não tendo recebido uma educação adequada para fazer trabalho qualificado, serão os próximos cortadores de cana-de-açúcar, substituindo os pais já triturados no trabalho desumano e descartados pelos usineiros, ou os ajudantes de pedreiro mundo afora. As meninas serão as empregadas domésticas ou as mulheres vítimas da exploração sexual.
Contudo, um facho de luz no Vale irradia a partir do povo sábio, artista e com uma fé inabalável. O esplendor da cultura popular marca indelevelmente todo mundo que o conhece pela arte: música, poesia, escultura; pelo artesanato etc. Existe uma luz que foi vista pelos missionários como um sinal de Deus presente no Vale. Por exemplo, no distrito de Jacaré, não se tem notícia de êxodo rural sazonal. Lá a Escola Família Agrícola – EFA Jacaré – com a Pedagogia da Alternância vem criando novas perspectivas para os jovens e famílias camponesas, considerando as efetivas necessidades dos trabalhadores locais e valorizando a cultura camponesa. Resultado, o trabalho dos homens acontece ao lado das esposas e filhos, na própria comunidade, gerando renda e planos para o futuro. Sem ter que migrar para cidade para estudar e buscar trabalho, os adolescentes e jovens estudam pensando em exercer suas profissões na própria terra. Foi nessa comunidade que os missionários viram também a prática dos melhores hábitos alimentares, casas asseadas e um povo com maior auto-estima. Talvez, na educação do campo pelo sistema EFA esteja um dos raios de luz para alternativas concretas de vida digna para os pobres do campo.
Desde o final dos anos 80 do século XX os camponeses e camponesas lutam sabiamente por este modelo de escola e elas somam 7 unidades somente no Médio Jequitinhonha, trazendo novas oportunidades para a juventude desta região, dirimindo a perversidade do êxodo pela expulsão e do ficar por fatalismo. Com a educação contextualizada das EFAs os jovens optam por ficar ou sair com dignidade.
A educação sem o chão da vida e das lutas sociais não serve para as mudanças. Esta luta pela educação contextualizada é reflexo de outras lutas. Ela está ligada às lutas dos movimentos sociais do Vale: o movimento sindical comprometido com os direitos sociais, com a reforma agrária, com a equidade de gênero; o movimento das mulheres; os assentamentos de reforma agrária e suas associações representativas; o movimento da agroecologia, da luta pela convivência com o semi-árido, puxada pelo CAV de Turmalina, ITAVALE, Cáritas, ASA, RESAB, CAMPO e tantas outras organizações culturais, artesanais presentes nesta região.
Hospitalidade, festa, alegria e espontaneidade são atributos fortes do povo do Jequitinhonha.
Uma grande riqueza, no campo econômico, são as feiras locais e municipais. Espaço de comércio solidário, tradicional e próprio do camponês, do encontro, da socialização. As feiras municipais do Vale são temas de estudos da Universidade de Lavras com livros e filmes publicados. Sem a feira não há como se sustentar economicamente e socialmente no Vale. É neste viés que as políticas públicas, entre tantas outras possibilidades, deveria atacar com grande força.
Enfim, à primeira vista, o Vale do Jequitinhonha parece um vale de ossos ressequidos, mas, se observamos bem, no Vale há muita gente como o Senhor João, um camponês de 70 anos que cultiva uma horta com enorme variedade de verduras e legumes e que expressou bem o seu sonho: não quer deixar a sua terra por nada neste mundo. Como brasas embaixo de cinzas, o Vale caminha entre trevas e luzes. Oxalá a 13ª Romaria das águas e da terra tenha sido um vento bom que assoprou mais as cinzas e reacender as brasas que insistem em aquecer com justiça e paz o povo do Vale.
Frei Gilvander Moreira, mestre em Exegese Bíblica; assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT; e-mail: gilvander{at}igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br
Delze dos Santos Laureano, Mestre em Direito Constitucional, doutoranda em Direito Internacional, professora de Direito Agrário e integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; e-mail: delzesantos{at}hotmail.com
3 Em 26 de março de 2004 foi inaugurada uma ponte estreita sobre o Rio Jequitinhonha, construída pela Companhia Vale, que ligou as duas partes da cidade, antes separadas pelo Rio. Se por um lado a ponte facilitou o trânsito das pessoas, por outro aumentou a degradação ambiental provocada pelas mineradoras, inclusive com a explotação do granito raro existente na região e desempregou os barqueiros que trabalhavam no Município.
EcoDebate, 21/08/2009
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Frei Gilvander e Delze,
Parabéns pelo excelente artigo!
Abraços, Regina Lima