Agricultura orgânica em áreas urbanas e periurbanas com base na agroecologia
Challenges of organic agriculture in urban and suburban areas
Adriana Maria de Aquino; Renato Linhares de Assis
Pesquisadores, Embrapa Agrobiologia
RESUMO
A agricultura orgânica com base na agroecologia é o mote tecnológico adequado à realidade dos agroecossistemas urbanos. Este artigo ressalta a necessidade de se desenvolver tecnologias e insumos específicos. A partir de experiências com agricultura urbana em diferentes países em desenvolvimento, evidencia-se a necessidade de se buscar capacidades locais e apoio do poder público, especialmente nas iniciativas da sociedade organizada e mobilizada para a produção agrícola urbana.
Palavras-chave: Agricultura urbana. Agroecologia. Segurança alimentar. Sustentabilidade.
ABSTRACT
This article presents organic agriculture, based on agroecology, as the appropriate technology for the urban agro-ecosystem. It also points out the need for appropriate technologies and amendments development. Looking at experiences with urban agriculture in development countries, it shows the need for local capacity development and a search for the public sector support, specially of organized groups mobilized for urban agriculture production.
Keywords: Urban agriculture. Agroecology. Food security. Sustainability.
1 Introdução
A urbanização não planejada se apresenta como um dos principais problemas da humanidade. A Fao–Sofa (1998) estima que, para o ano de 2015, mais de 26 cidades em todo o mundo estarão com mais de 10 milhves de habitantes. Para alimentar essa população, de acordo com a Fao (1998), seria necessário importar pelo menos 6.000 toneladas de alimentos por dia. Dessa crescente urbanização, além do fornecimento de alimentos, resultam outros problemas como a preservação ambiental e a oferta de empregos.
A associação quase instantônea que é feita entre agricultura e meio rural pode levar a uma impressão de incompatibilidade entre agricultura e meio urbano. Entretanto, a agricultura urbana não é uma atividade recente e, de alguma forma, sempre se expressou nas áreas urbanas, mesmo que timidamente. Essa atividade tem despertado um elevado e crescente interesse, tanto dos urbanitas quanto dos pesquisadores e responsáveis por elaboração de políticas, na medida em que, onde se estabeleceu com eficiência, desempenhou um papel muito importante na alimentação das populações urbanas, garantindo a sua sobrevivência (FAO, 1999).
Nesse sentido, a agroecologia é um instrumento importante na implementação de estratégias para viabilizar produções agrícolas em pequena escala sob administração familiar, em função principalmente da baixa dependência de insumos externos dos sistemas de produção preconizados, que procuram manter ou recuperar a paisagem e a biodiversidade dos agroecossistemas.
Pretende–se aqui estabelecer uma discussão a partir da hipótese de que “a agricultura orgânica com base na agroecologia pode oferecer instrumental tecnológico adequado para a agricultura urbana”. Para tanto, inicialmente faz–se um rápido debate acerca dos conceitos de agroecologia e agricultura orgânica, suas similaridades e diferenças, apresentando a primeira como uma ciência e a segunda como uma prática agrícola.
Posteriormente, discute–se como a opção pela agroecologia como referencial teórico para a prática da agricultura urbana vincula esta a sistemas de produção orgânicos baseados em processos biológicos e sócio–econômicos locais, e sua importôncia na segurança alimentar e na implementação do desenvolvimento sustentável. Finaliza–se com a apresentação de algumas experiências em agricultura urbana no Brasil e em outros países, com destaque para o grupo de países subdesenvolvidos, em especial Cuba que, sem dúvida, representa hoje a experiência mais relevante em agricultura urbana.
2 Agroecologia e agricultura orgânica
Sistemas de produção agrícola, além de processos ecológicos, envolvem também processos sociais, sendo a agricultura o resultado da co–evolução de sistemas naturais e sociais. É com esse entendimento que a agroecologia, na busca de agroecossistemas sustentáveis, procura estabelecer a base científica para uma agricultura que tenha como princípios básicos a menor dependência possível de insumos externos à unidade de produção agrícola e a conservação dos recursos naturais. Para isto, os sistemas agroecológicos procuram maximizar a reciclagem de energia e nutrientes, como forma de minimizar a perda destes recursos durante os processos produtivos.
De acordo com Altieri (1998), na agroecologia a produção sustentável deriva do equilíbrio entre plantas, solo, nutrientes, luz solar, umidade e outros organismos co–existentes. O agroecossistema é produtivo e saudável quando essas condições de crescimento ricas e equilibradas prevalecem, e quando as plantas possuem ou desenvolvem, a partir do manejo, tolerôncia a estresses e adversidades. Essa estratégia é viabilizada com o desenho de sistemas produtivos complexos e diversificados que pressuponham a manutenção de policultivos anuais e perenes associados com criações.
Assim, sistemas de produção de base agroecológica caracterizam–se pela utilização de tecnologias que respeitem a natureza, para, trabalhando com ela, manter ou alterar pouco as condições de equilíbrio entre os organismos participantes no processo de produção, bem como do ambiente. Como base na utilização destes princípios, foram desenvolvidas diferentes correntes de produção agrícola não industrial. Entre essas, a agricultura orgânica tem sido a mais difundida2, sendo reconhecida junto ao mercado como sinônimo de todas as outras (ASSIS; ROMEIRO, 2002).
A agricultura orgânica tem por princípio estabelecer sistemas de produção com base em tecnologias de processos, ou seja, um conjunto de procedimentos que envolvam a planta, o solo e as condições climáticas, produzindo um alimento sadio e com suas características e sabor originais, que atenda às expectativas do consumidor (PENTEADO, 2000). Estas expectativas, no entanto, determinam, conforme observa Canuto (1998), características de mercado e demandas de consumo que influenciam diretamente a tecnologia de produção, reduzindo procedimentos e minimizando a questão ecológica. Isso se dá a partir da produção com base em normas de acesso a mercados especiais, onde a certificação que se observa é a do produto em detrimento do sistema de produção como um todo.
Essa (re)interpretação do que seja a agricultura orgânica, com foco prioritário no chamado “mercado de produtos orgânicos”, tem favorecido o estabelecimento de sistemas de produção tidos como orgânicos, baseados em tecnologias de produtos. Em outras palavras, sistemas de produção que se limitam a evitar, ou excluir amplamente, o uso de fertilizantes sintéticos, pesticidas, reguladores de crescimento e aditivos para a alimentação animal, na medida em que esta é a demanda do mercado a ser atendido. Neste caso, a lógica de organização da produção mantém–se a mesma dos sistemas de produção industriais, como verifica–se em alguns casos de produções orgânicas monoculturais, que visam o aumento constante de produtividade, através do aporte de insumos externos à unidade de produção (ASSIS; ROMEIRO, 2002).
No caso deste texto, a agricultura orgânica que se idealiza para as áreas urbanas sustenta–se nos princípios da agroecologia, cujo esteio é o uso responsável do equilíbrio biológico da natureza, uma agricultura orgânica que, como colocam Lattuca et al. (2002), possibilita obter bons níveis de produtividade, evitando ao mesmo tempo todo tipo de risco de contaminação química para o agricultor urbano e os consumidores, bem como do meio ambiente. Por outra parte, ela incorpora os avanços da ciência, promovendo a participação criativa dos agricultores, respeitando os conhecimentos, culturas e experiências locais.
3 Agricultura orgânica em áreas urbanas com base na agroecologia
Embora o conceito de agricultura urbana esteja em construção, já vem sendo utilizado por organismos internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), além de diversas organizações não governamentais e governos do mundo inteiro.
A questão conceitual da Agricultura Urbana passa pelo questionamento sobre o que há de próprio na agricultura urbana, para que ela seja considerada objeto de investigação e de políticas específicas. Nesse sentido, os principais elementos de definição da agricultura urbana são: os tipos de atividades econômicas desenvolvidas; as categorias e subcategorias de produtos (alimentares e não alimentares); característica locacional (intraurbano e periurbano); tipos de áreas onde é praticada; tipos de sistemas de produção e destino dos produtos e escala de produção (MOUGEOT, 2000).
Embora haja muita controvérsia em torno do tema, o elemento mais comum nas definições sobre a agricultura urbana tem sido a localização em relação à proximidade das cidades (intra ou periurbana). Entretanto, não é a localização urbana que distingue a agricultura urbana da agricultura rural, senão o fato de que está integrada e interage com o ecossistema urbano. Como exemplo, podemos citar a possibilidade dos sistemas urbanos de produção agrícola apresentarem, como um destino nobre, a produção de resíduos orgânicos, tanto de origem doméstica quanto de áreas comerciais e industriais disponíveis em áreas urbanas, como padarias, açougues, cervejaria, bagaço de cana–de–açúcar, restos de cozinha, etc.
Para isto, a sustentabilidade da agricultura urbana deve estar apoiada no manejo agroecológico, que inclui o uso de substratos e manejo orgânico do solo, técnicas de rotação e associações de cultivos e manejo fitossanitário alternativo ao convencionalmente utilizado, bem como na utilização de todo espaço disponível, para maior produção o ano todo, e integração interdisciplinar e interinstitucional para acessorar a produção (COMPANIONI et al., 2001).
Com esse enfoque, entende–se aqui agricultura urbana como sendo a produção de alimentos dentro de perímetro urbano e periurbano, aplicando métodos intensivos, tendo em conta a inter–relação homem – cultivo – animal – meio ambiente e as facilidades da infraestrutura urbanística que propiciam a estabilidade da força de trabalho e a produção diversificada de cultivos e animais durante todo o ano, baseadas em práticas sustentáveis que permitem a reciclagem dos resíduos (GNAU, 2002).
Nesse sentido é que a agroecologia é considerada especialmente apropriada para o entorno urbano, posto que sistemas de produção orgânicos com foco agroecológico caracterizam–se como um instrumento interessante para viabilização da agricultura em pequena escala, em regime de administração familiar, tanto em sistemas de parcelas individuais como em explorações associativas, posto que a baixa dependência de insumos externos facilita a adoção dessa forma de produção por esse tipo de agricultor (ASSIS, 2003). Além disso, os sistemas agrícolas conduzidos através do manejo orgânico com enfoque agroecológico têm o compromisso de manter e/ou recuperar a biodiversidade dos agroecossistemas e do entorno, ao mesmo tempo em que possibilitam aumento de renda para a família ao agregar valor aos produtos e ampliar o mercado, facilitando a comercialização.
De acordo com Assis e Romeiro (2002), para o sucesso de sistemas agroecológicos, a primeira preocupação deve ser, na implementação, relacionada ao solo, no que se refere à recuperação e manutenção do seu equilíbrio biológico, pois este influenciará em grande medida suas características físicas e químicas. Portanto, conforme Almeida (1998), há que se desenvolver e aplicar soluções criativas para minimizar o uso de insumos industrializados e maximizar o uso dos recursos naturais, tendo como base a preocupação com o controle da erosão e a conservação da fertilidade e da biota do sistema solo/planta.
A garantia do fornecimento de insumos orgânicos, a adequação de novos substratos à produção de mudas, o resgate e a preservação de cultivares adaptados às condições locais, a adequação das épocas de plantio, o uso de defensivos alternativos que não sejam poluentes, bem como a geração e adaptação de sistemas de produção ao ecossistema urbano são desafios fundamentais a serem vencidos, visando o sucesso da produção agrícola em área urbana.
No que se refere ao aproveitamento dos resíduos orgânicos urbanos como adubo para a produção agrícola, verifica–se a necessidade de geração de conhecimentos que possibilitem a adequada forma de prepará–los, garantindo um produto estabilizado e de boa qualidade, que forneça nutrientes e condicione o solo de forma adequada.
No tocante à produção de mudas, a utilização de substratos alternativos aos comerciais é fundamental para o estabelecimento em áreas urbanas de sistemas orgânicos familiares de produção com base na agroecologia, na medida em que sistemas com essas características determinam a necessidade de que hajam tecnologias de baixo custo adaptados à realidade em questão.
Em relação à ocorrência de pragas e doenças vegetais, a produção agrícola tem um dos principais limitantes ao seu desempenho. Ao longo das últimas décadas, a utilização de agrotóxicos no Brasil tem sido a base através da qual o setor agrícola vem enfrentando a questão. O consumo de agrotóxicos no país – herbicidas e fungicidas, entre outros, tem sido crescente, alcançando hoje vendas anuais que superam U$ 2,5 bilhves. Esse aspecto é muito sério em áreas urbanas, não somente pelo elevado custo, mas também pela proximidade das residências, aumentando o risco de contaminação. A solução que se vislumbra é a utilização de defensivos alternativos que incluem: agentes de biocontrole, diversos fertilizantes líquidos, as caldas sulfocálcica, viçosa e bordalesa, feromônios, extratos de plantas, entre outros.
Em relação à disponibilidade de água, mesmo quando abundante, o acesso pode muitas vezes ser limitado por fatores geográficos e econômicos. A água não está ao alcance de todos e, nas áreas urbanas, é cada vez menos acessível. Com a crescente densidade populacional nas grandes cidades, aumenta–se a produção de esgoto e lixo; muitas atividades industriais também demandam recursos hídricos e descarregam muita poluição nos rios. O fornecimento de água para as populações de muitas nações industrializadas é fortemente prejudicado pela poluição da água e pela falta de planejamento urbano. Acrescenta–se a isso a questão da utilização de agrotóxicos e fertilizantes solúveis na água de irrigação em áreas urbanas e periurbanas, muitas vezes em doses elevadas, acarretando além da poluição do lençol freático e do solo, aumento do custo de produção (HANS–RUDOLF; SEYDON, 2006). Nesse sentido, as atividades domésticas e agrícolas em áreas urbanas acabam competindo por água de qualidade.
Por ser a única fonte de água existente, a utilização das águas residuais na agricultura urbana é uma realidade em muitas regives áridas e semi–áridas. A utilização das águas residuais é muito interessante, contudo a falta de tratamento adequado dessas águas pode acarretar numa série de problemas de saúde (BUECHLER et al., 2003). Esse aspecto da agricultura em áreas urbanas e periurbanas merece muito destaque e atenção de políticas públicas específicas para tratamento de cada fonte de água.
Em relação ao solo, Gaynor (2003) recomenda levantar informações sobre o uso anterior da área em função da utilização generalizada no passado dos organoclorados e a sua persistência no meio ambiente, bem como a possível contaminação por mercúrio, chumbo, cádmio e outros em decorrência do tipo de material que poderia estar armazenado no local. Conforme orienta a autora, o ideal seria o reconhecimento, pelas autoridades locais, sobre os problemas da agricultura urbana relacionados à contaminação do solo, cuja resposta não seja a proibição de se produzirem alimentos nessas áreas e, sim, formas de se buscar ajuda técnica para a produção segura de alimentos, sem ameaça à saúde, e que possa trazer benefícios econômicos e vários outros.
A produção agrícola em áreas urbanas já é uma realidade, e vários aspectos relacionados à água e ao solo, referidos anteriormente e sintetizados na Figura 1, sugerem o levantamento, por parte de órgãos competentes, de medidas que assegurem a saúde da população e que sejam urgentemente implementadas por políticas públicas.
4 Agricultura urbana, segurança alimentar, meio ambiente e desenvolvimento sustentável
De acordo com Drescher (2001), a crise econômica global, o rápido crescimento populacional, aliado ao êxodo rural, e a deterioração das economias nacionais com persistentes dificuldades são condições prévias para o início da atividade de produção agrícola nas cidades em muitos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Não obstante, esta produção teria uma importôncia muito menor se não existisse uma escassez de oportunidades adequadas e acessíveis para obtenção de renda, aliada a uma demanda não satisfeita nas áreas urbanas de produtos agrícolas em quantidades e qualidade suficientes.
Destarte, as experiências urbanas com agricultura se dirigem à valorização de espaços limitados, onde residem populações socialmente marginalizadas, para uma produção voltada ao autoconsumo, possibilitando o aumento da disponibilidade de alimentos e a diversificação da dieta das famílias. Além disso, o exercício da agricultura urbana vem permitindo que as famílias envolvidas fortaleçam seus laços de vida comunitária, condição indispensável para a emergência de estratégias coletivas para fazer frente aos riscos de insegurança alimentar e nutricional (WEID, 2004).
Com o surgimento das metrópoles, uma grande parte da responsabilidade comunitária foi transferida ao poder público ou mesmo a grandes empresas. A agricultura nas cidades, no plano comunitário, é uma boa ferramenta para a autogestão dos recursos e para alcançar uma biodiversidade máxima e ótima (SMIT, 2001).
O uso produtivo de espaços urbanos proporciona a limpeza destas áreas e uma melhoria considerável ao ambiente local, com impacto positivo na sanitização pública. Materiais como embalagens, pneus e entulhos são utilizados para a contenção de pequenas encostas e canteiros e, resíduos orgânicos domiciliares são aproveitados na produção de composto utilizado como adubo (ALMEIDA, 2004).
Para Madaleno (2002), a promoção da agricultura no meio urbano tem contribuído para tornar as cidades mais produtivas e auto–suficientes, isto aliado ao apelo ambiental que esta atividade apresenta, resgatando a comunhão do ser humano com a biodiversidade natural e a agricultura, mesmo em tempo parcial.
Nesse sentido, os resultados positivos podem ser verificados pela redução na importação de alimentos de outras regives e ocupação de áreas desabitadas e inaproveitáveis. Da mesma maneira, verificam–se alguns resultados positivos de fácil percepção junto aos atores diretamente envolvidos na atividade, como melhoria da renda das famílias participantes e da qualidade dos alimentos consumidos, bem como outros não tão facilmente tangíveis como agregação das famílias.
A agricultura urbana refere–se não somente à produção vegetal, mas também à criação animal (aves, abelhas, peixes, coelhos e outros). O sistema agrícola urbano pode ser uma combinação de muitas atividades diferentes, incluindo desde a horticultura e o cultivo de cereais como milho e feijão à integração com a produção animal, aproveitando–se restos vegetais na alimentação destes, através de compostagem isoladamente ou em conjunto com o esterco oriundo das criações.
5 Análise de algumas experiências com agricultura urbana, com ênfase nos casos brasileiro e cubano
5.1 Experiências brasileiras
De acordo com Monteiro e Mendonça (2004), ao se abordar o tema da agricultura nas cidades, é comum a imediata referência às hortas comunitárias. Isso ocorre porque a palavra horta é entendida como sinônimo de cultivo de hortaliças em canteiros. A perspectiva agroecológica, no entanto, não restringe o olhar a um sistema padronizado de produção, com espécies predefinidas, mas procura incorporar ampla diversidade às condições específicas de cada espaço disponível.
De acordo com Almeida (2004), analisando a experiência de Belo Horizonte (MG), a produção agrícola nos espaços urbanos conduziu a melhores hábitos alimentares, sobretudo por ter evidenciado a relação que há entre alimentação e saúde. Assim, as famílias envolvidas passaram a se preocupar mais com plantio e o consumo de alimentos sem contaminações de origem química ou biológica, com a qualidade da água utilizada na irrigação, com o aproveitamento integral e o valor nutricional dos produtos, bem como a priorizar o consumo de alimentos da época e da região. Do ponto de vista econômico, a pequena produção tem contribuído para a renda familiar, através da diminiução dos gastos com alimentação e saúde, das redes de troca e, eventualmente, da transformação e comercialização de excedentes de produção.
Na cidade do Rio de Janeiro (RJ), a despeito de sua minúscula expressão em termos espaciais, os quintais domésticos representam verdadeiros redutos para o exercício de práticas de produção alimentar ainda bastante presentes nas referências culturais de sua população, conforme demonstrou o diagnóstico participativo realizado no Loteamento Ana Gonzaga, sob coordenação de uma ONG (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa – AS–PTA). Na mesma localidade foram identificadas, dentre as famílias mais vulneráveis à pobreza, diversas sem renda mensal e muitas outras com renda de até R$ 200,00, diagnosticando–se que cerca de 50% das famílias ficam até três semanas sem consumir hortaliças ou carnes (MONTEIRO; MENDONÇA, 2004).
Em Belém (PA), Madaleno (2002) verificou que a atividade agrícola intra–urbana minora os gastos com alimentação nas classes média e média–baixa, e ajuda a subsistência das famílias de baixa renda, as quais gastam entre 1/3 e 2/3 do seu rendimento mensal na alimentação. Destacou, ainda, que essa atividade beneficia o meio urbano do ponto de vista ambiental na medida em que, além de gerar áreas verdes, favorece a melhor infiltração das águas de chuva e viabiliza a reciclagem de resíduos, anotando que o maior apoio da municipalidade é fundamental para o incremento da atividade agrícola entre os belenenses e o conseqüente aumento de seus benefícios sociais e ambientais.
A importôncia do apoio do poder público às iniciativas de sucesso de produção agrícola nas cidades pode ser constatada junto às experiências de Brasília (DF) e Teresina (PI). Em relação ao primeiro caso, podemos citar o caso do “Programa de Verticalização da Pequena Produção Agrícola” (PROVE). Esse programa governamental foi criado em 1995 com o objetivo de promover a pequena produção agrícola, seu processamento e comercialização, em áreas urbanas e periurbanas do Distrito Federal, envolvendo sistemas de hortas, frutas e criação de animais. Neste caso, o apoio governamental foi fundamental para criar oportunidades para pequenas agroindústrias, na medida em que foi necessário revisar e reformular a legislação para inspeção de produtos animais e também vegetais (CARVALHO, 2002).
No segundo caso, na capital piauiense tem–se a experiência do “Programa Hortas”, idealizado inicialmente no ômbito da prefeitura municipal com a finalidade de formação e terapia ocupacional de crianças carentes. Com o tempo, o público alvo foi sendo ampliado para a família como um todo, sendo um projeto com demanda crescente, principalmente na zona de expansão do perímetro urbano onde se concentram as famílias de baixa renda. Hoje, tendo recebido vários prêmios, o “Projeto Multissetorial Integrado Vila–Bairro” é referência nacional, viabilizando o aproveitamento de áreas improdutivas e atendendo a 2.503 famílias com renda entre 1 a 2 salários mínimos, em 117 ha de 38 hortas, através de um sistema de co–gestão entre prefeitura e comunidade (SMPCG, 1999).
Ainda no Brasil, têm–se conhecimento de algumas outras iniciativas, como por exemplo, as que ocorrem em Porto Alegre–RS, Fortaleza–CE, Presidente Prudente–SP, Niterói–RJ e Campos dos Goitacazes–RJ. Mas existem poucas publicações formais sobre essas experiências e, possivelmente, de muitas outras no Brasil. Uma das limitações, muitas vezes, refere–se à da continuidade do trabalho, como foi o caso do PROVE no DF, pela dependência da vontade do poder público, cujo interesse varia entre o período de um mandatário e outro.
5.2 A experiência de Cuba
Estando a agricultura urbana organizada com o comprometimento de todos os setores governamentais e da sociedade, Cuba se apresenta como o país mais bem organizado e mais bem sucedido. Com o modelo adotado, a produção de hortaliças nesse país, que em 1994 era de 4.200 toneladas por ano, deu um salto para 2 milhves de toneladas em 2001 (MINAG, 1999; 2000; 2001). Sendo toda esta produção oriunda de sistemas de produção orgânicos adaptados à realidade da agricultura urbana no país.
A agricultura urbana em Cuba iniciou–se com a etapa crítica do processo revolucionário, que ocorreu com a queda do socialismo em outros países em fins de 1989 e início de 1990 e, principalmente com o desmantelamento da União Soviética, com quem mantinha 85% de seu intercômbio comercial, aliado à manutenção do forte bloqueio comercial dos Estados Unidos. Além disso, Cuba não dispve de recursos energéticos suficientes e nem de capital abundante (FUNES, 2001). Em 1991, quando ocorreram fortes carências na alimentação, transporte, ausência quase total de roupas e calçados, agravamento da situação de moradias, escassez de produtos necessários à higiene pessoal e coletiva, acarretando um violento decréscimo do nível de vida alcançado na década de 1980, o governo decretou o chamado “Período especial em tempos de paz”. No início deste “Período especial”, a produção de hortaliças em Cuba representava 1 g per capita diária, quando a recomendação da FAO é de no mínimo 300 g/dia.
Desde os anos 1950, a agricultura cubana havia se modernizado e os monocultivos de exportação tinham maior importôncia que a produção de alimentos. Além disso, os métodos de produção dependiam de insumos e matérias–prima importadas, e muitos componentes dos produtos agrícolas eram também importados, o que intensificava a dependência das importações.
Antes do “Período especial”, alguns pesquisadores do INIFAT (“Instituto de Investigaciones Fundamentales em Agricultura Tropical”) já vinham realizando pesquisas utilizando substratos orgânicos para a produção agrícola, mas como em todos países com grande oferta de produtos químicos que facilitam a produção, até então resultados dessas pesquisas não tinham muita repercussão no país. Com a crise, esses pesquisadores foram envolvidos pelo governo cubano na produção de alimentos numa nova ótica e a produção urbana e periurbana de alimentos em Cuba tomou um grande impulso.
A Agricultura Urbana estende–se por todo país da seguinte forma: toda a Província de Ciudad de La Habana, a área no raio de 10 km das cidades capitais de províncias e em Manzanillo, cidade da província de Holguín, a área no raio de 5 km das cidades sedes de municípios, a área a 2 km de outras cidades e povoados (mais de mil habitantes) e a área imediata em assentamentos (com mais de 15 casas) correspondendo à produção de auto–abastecimento.
O movimento de Agricultura Urbana em Cuba é dirigido pelo Grupo Nacional de Agricultura Urbana (GNAU), sendo apoiado por todos os setores envolvidos na produção de alimentos. O Ministério da Agricultura e as organizações de massa trabalham em conjunto, procurando dar soluções locais a cada problema em particular e com os próprios recursos. O GNAU, composto por 26 integrantes (representando 17 Instituições Científicas e 7 Ministérios), executa suas atividades através de diferentes subprogramas. Com o avanço da Agricultura Urbana, os subprogramas têm se ampliado a cada ano, e atualmente são 28, sendo 12 de cultivos (hortaliças e condimentos frescos; plantas medicinais e condimentos secos; plantas ornamentais e flores; frutas; cultivo protegido; arroz popular; florestais, café e cacau; banana; raízes e tubérculos tropicais; oleaginosas; feijão; milho e sorgo), 7 de pecuária (apicultura; avicultura; cunicultura; ovino–caprinocultura; suinocultura; bovinocultura; psicultura) e 9 de apoio (controle, uso e conservação de solo; matéria orgânica; sementes; irrigação e drenagem; nutrição animal; comercialização; pequena agroindústria; ciência, tecnologia e capacitação; meio ambiente).
A produção de hortaliças e condimentos frescos foi a primeira atividade realizada pela Agricultura Urbana em Cuba, por isso hoje é a mais desenvolvida. Existem várias modalidades de produção de Agricultura Urbana em Cuba: Organopônicos, Hortas Intensivas, Pátios, Parcelas etc. Os organopônicos e hortas intensivas constituem as modalidades mais destacadas nos últimos anos em todo o país, contribuindo de maneira significativa para o resgate do acervo hortícola, sendo considerado um exemplo de como se deve acionar, de forma conjunta, os cientistas e os produtores (MINAG, 2000).
Os organopônicos constituem um sistema fechado de produção de hortaliças e condimentos, sem vinculação direta com o solo. São construídos em áreas improdutivas, planas, próximas ao destinatário da produção final (MINAG, 2000). Algumas estruturas para hidropônicos em Cuba foram aproveitadas para produção em “organopônicos”. Como a hidroponia é o cultivo em água, organopônicos seria o cultivo em substrato orgânico. Assim, acredita–se que esse nome pouco comum tenha sido derivado da hidroponia.
As hortas intensivas, ao contrário dos organopônicos, se desenvolvem em solos de boa fertilidade, em que as propriedades físicas facilitam a drenagem e friabilidade. De acordo com MINAG (2000), as áreas não devem estar propensas a inundações ou arrastes de águas superficiais, devendo estar livres de sombra excessiva provocada por árvores ou edifícios, e apresentando acesso fácil ao fluxo dos destinatários da produção final.
Tanto em hortas intensivas como nos organopônicos, objetiva–se obter o máximo de aproveitamento da área, como por exemplo plantando na periferia, aproveitando a cerca para cultivos hortícolas trepadores, entre outras.
O uso intensivo da matéria orgânica é o fator determinante para a produção com altos rendimentos na Agricultura Urbana em Cuba. Devido à importôncia dessa atividade, existe um subprograma de Matéria orgânica com o objetivo de organizar, fomentar e desenvolver toda essa atividade. Esse subprograma tem trabalhado para a criação de centros específicos para assegurar o processamento e a distribuição da matéria orgânica em diferentes províncias, municípios e conselhos populares, sendo a minhocultura muito desenvolvida e muito disseminada em Cuba.
Outro aspecto importante para a Agricultura Urbana incide sobre o controle de pragas e doenças. O principal aspecto considerado para o bom controle reside primeiramente na saúde da planta bem nutrida. Além disso, outras medidas preventivas incluem a instalação em todos os locais de “pontos de desinfecção de pés e mãos”, especialmente nos organopônicos, ausência de plantas espontôneas nos canteiros e ao redor, proibição de fumar e manipular plantas sem lavar mãos para evitar ataque do vírus mosaico, fundamentalmente de tomate, pimentão e outras plantas suscetíveis, plantio de nim (Azadiracha indica) como planta repelente, e plantio de milho para atrair inimigos naturais (GNAU, 2000). Para controle, os biopraguicidas também são muito usados. Dentre esses destacam–se os preparados à base de frutos e folhas de nim (Cubanim, Cuba Nim–T, Neo Nim, etc.) e de resíduos de tabaco (tabaquina).
Atualmente, verifica–se que toda produção cubana de hortaliças é orgânica e proveniente da agricultura urbana (AQUINO, 2002). Considerando que quase 80% da população cubana é urbana (HERNÁNDEZ, 1999), essa forma de produção traz vantagens para a população, como a garantia de abastecimento durante todo o ano e em todo o país, economia de combustível para o transporte, melhor qualidade dos alimentos, maior produtividade e maior oferta de emprego (COMPANIONI et al., 2001).
5.3 As experiências de outros países
Atualmente, a agricultura urbana constitui um fenômeno socioeconômico crescente em todo o mundo. Nos países desenvolvidos, constitui um sistema de produção importante e altamente competitivo, enquanto que nos países subdesenvolvidos, tradicionalmente, tem se apresentado como uma estratégia de sobrevivência dos mais pobres, já que fornece alimento e emprego a uma parcela significativa da população, representando nas cidades africanas importante complemento da renda familiar e relevante fonte de proteínas e vitaminas, conforme relatado por Madaleno (2002).
Mais recentemente, nos países subdesenvolvidos, a produção agrícola nas cidades se disseminou como uma resposta às fortes crises econômicas e às políticas de ajuste estrutural, introduzidas nestes países, as quais geraram aumento dos preços dos alimentos, redução dos salários reais, redundôncia no mercado formal de emprego, entre outros. México, Argentina, Chile, dentre outros, são exemplos de países onde os movimentos de agricultura urbana surgiram em função das crises políticas e sócio–econômicas.
A seguir é apresentado breve relato de experiências de agricultura urbana em alguns países subdesenvolvidos (CABANNES; DUBBELING, 2001; LATTUCA et al., 2002; DANSO et al., 2002; KITILA; MIAMBO, 2002):
a) Programa com instituições e grupos comunitários, iniciado em 1998, para a produção e comercialização de hortaliças, frutas, grãos, adubos e pequenos animais, no município de Cuenca (Equador), tendo a atividade sido incorporada no ordenamento territorial e na legislação urbana;
b) Programa na cidade do México, que busca gerar emprego e garantir alimentos à população, revitalizando a atividade agrícola e evitando que terrenos úteis se urbanizem. Para isto, criou–se em 1997 um Departamento de Desenvolvimento Rural que gerencia recursos, promove capacitação, apóia a organização de produtores e aprova microcréditos para projetos produtivos;
c) Em Camilo Aldao (Argentina), desenvolve–se uma política ativa de agricultura urbana que integra a comunidade em projetos sociais, ambientais, educacionais e produtivos. Os agricultores recebem assessoria e capacitação em técnicas adaptadas à realidade local de recursos econômicos escassos e fácil aplicação. Como resultado, verifica–se a comercialização de hortaliças orgânicas, com marca própria, diretamente com os consumidores ou junto a pequenos varejistas;
d) Em Kumasi (Gana) 90% de toda produção de alfaces e cebolas de primavera e cerca de 75% do leite fresco consumido pelos residentes urbanos são produzidos na própria cidade, com uso intensivo de estercos/fertilizantes e agrotóxicos. Neste sentido, a Rede de Agricultura Urbana de Gana tem procurado difundir os métodos de produção biológica, especialmente o manejo integrado de pragas e a compostagem, sem grande sucesso até o momento em função da exigência por mão–de–obra que estas práticas demandam; e
e) Em 1992, a cidade de Dar Es Salaam (Tanzônia) adotou a Estratégia de Planejamento e Manejo Ambiental (EPMA) na Consulta Urbana. Esta estratégia tem sido a motivadora de mudanças em muitos aspectos relacionados com a agricultura urbana. A EPMA pressupve o diálogo e planejamento urbano participativos. Com este enfoque, organizou–se uma mini–consulta em 1993 para deliberar sobre agricultura urbana, quando então criou–se um Grupo de Trabalho para elaborar estratégias para incluir a agricultura urbana na agenda municipal.
6 Considerações finais
Nos chamados países em desenvolvimento, até a primeira metade do século XX, as zonas rurais concentravam os maiores níveis de pobreza. Com o intenso processo migratório das áreas rurais para as áreas urbanas ocorrido nesses países naquele século, houve uma inversão nesse sentido. Com o intenso processo de urbanização, verificou–se, nas cidades, uma demanda crescente por melhores oportunidades e melhoria da qualidade de vida, bem como a necessidade de alimentar, em condições adequadas, uma população cada vez mais desvinculada da produção de alimentos.
É nesse sentido que percebe–se hoje a oportunidade de que os espaços urbanos sejam (re)valorizados como áreas destinadas a uma produção de alimentos para autoconsumo e eventuais excedentes para comercialização, como diversas experiências com agricultura urbana têm demonstrado. A partir dessas experiências, verifica–se também o importante papel que a produção agrícola urbana pode representar na melhoria qualitativa da dieta das famílias envolvidas, aliado ao favorecimento à (re)inserção social de populações marginalizadas bem como melhorias nas condições ambientais.
Apresenta–se, neste artigo, evidências da crescente importôncia da agricultura urbana enquanto fenômeno sócio–econômico, caracterizando–se a opção por sistemas de produção com base na agroecologia como mais adequados à realidade dos agroecossistemas urbanos, confirmando–se a hipótese inicialmente apresentada de que “a agricultura orgânica com base na agroecologia pode oferecer instrumental tecnológico adequado para a agricultura urbana”. Isto é feito, porém, com a demarcação de limites para a difusão da agricultura urbana, expressos em demandas por tecnologias e insumos específicos, adaptados a esta realidade, especialmente no que se refere ao melhor aproveitamento de resíduos orgânicos urbanos como adubos, à disponibilidade de substratos e de mecanismos de controle de pragas e doenças vegetais de baixo custo e de baixo impacto ambiental.
Finalizando, destaca–se ainda a necessidade de desenvolver capacidades locais e apoiar o desenvolvimento de novos enfoques institucionais interdisciplinares e mais eficientes, para o que, o apoio consistente e persistente do poder público tem demonstrado ser fundamental, com políticas e ações que visem a promoção da agricultura urbana. No entanto, é fundamental observar, que a eficiência das iniciativas do poder público, nesse sentido, é em muito potencalizada quando se dá junto a iniciativas da sociedade mobilizada e organizada.
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Notas
2 Além da agricultura orgânica podemos citar: agricultura biológica, agricultura biodinômica, agricultura natural, agricultura alternativa, agricultura ecológica, permacultura e agricultura regenerativa. Para mais detalhes ver Assis (2004), Darolt (2000) e Jesus (1985).
Autores para correspondência:
Adriana Maria de Aquino, Renato Linhares de Assis
Embrapa Agrobiologia
CP 74.505, CEP 23850–970
Seropédica, RJ, Brasil
E–mail: adriana{at}cnpab.embrapa.br, renato{at}cnpab.embrapa.br
AQUINO, Adriana Maria de; ASSIS, Renato Linhares de. Agricultura orgânica em áreas urbanas e periurbanas com base na agroecologia. Ambient. soc., Campinas, v. 10, n. 1, June 2007 . Available from . access on17 Aug. 2009. doi: 10.1590/S1414-753X2007000100009.
EcoDebate, 18/08/2009
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