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Compromisso Nacional costurado pelo Planalto abriga usinas da ‘lista suja’

Cortadores da Usina Santa Cruz não tinham carteira assinada nem equipamentos (Foto: PRT-1)
Cortadores da Usina Santa Cruz não tinham carteira assinada nem equipamentos (Foto: PRT-1)

Flagradas na exploração de mão-de-obra escrava, as usinas Agrisul, Dcoil e Itarumã se juntaram à lista de 323 empresas que prometem seguir “boas práticas” no campo. CPT e pesquisadora criticam Compromisso Nacional

Apresentado dentro e fora do país pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva como “novo paradigma” no sentido de melhorias para os cortadores em atividade no país, o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar abriga três usinas da “lista suja” do trabalho escravo. Por Maurício Hashizume*, da Agência de Notícias Repórter Brasil.

Flagradas na exploração de mão-de-obra escrava, as usinas Agrisul Agrícola Ltda. (conhecida como Debrasa, uma das unidades do reincidente Grupo José Pessoa), em Brasilândia (MS), a Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda. (Dcoil), pertencente ao médico do trabalho Nelson Donadel, em Iguatemi (MS), e a Energética do Cerrado Açúcar e Álcool Ltda. (constituída para viabilizar a Usina Itarumã), em Itarumã (GO), se juntaram à lista. Ao todo, 323 indústrias processadoras prometeram aplicar itens de “boas práticas” empresariais, como a contratação direta de trabalhadores rurais para plantio e corte da cana-de-açúcar, com o intuito de eliminar a intermediação dos “gatos” (aliciadores).

Fiscalização na Agrisul, em Brasilândia (MS), se deparou com 1011 trabalhadores (a maioria absoluta de indígenas) submetidos a condições análogas à escravidão, em novembro de 2007. Em junho de 2008, 55 cortadores de cana de outra usina do mesmo grupo, em Icém (SP), próximo à divisa com Minas Gerais, estavam sendo vítimas de servidão por dívida. Autorizada pela Justiça, diligência fiscal composta por representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF) encontrou documentos pessoais (RG, CPF, Título de Eleitor etc.) de empregados da Agrisul retidos numa mercearia da região. No início de junho, 280 pessoas – entre elas quatro adolescentes (três com 16 anos e um com apenas 13) e 22 mulheres – foram libertadas de área que produzia para a Usina Santa Cruz, em Campos dos Goytacazes (RJ), que também faz parte do Grupo José Pessoa.

A Dcoil também é reincidente no crime de escravidão. Da primeira vez (em 2007), fiscais autuaram a usina, que mantinha 409 escravos (sendo 150 indígenas). Em agosto de 2008, foi flagrada explorando 126 cortadores de cana. A maior parte deles era de migrantes nordestinos. Reinserida na “lista suja” na atualização semestral do último 21 de julho, a Energética do Cerrado, por sua vez, foi pega com 77 vítimas de escravidão vindas do Maranhão.

Para a Secretaria-Geral da Presidência da República, principal articuladora da negociação tripartite (governo, usineiros e trabalhadores) que resultou no Compromisso Nacional, não há contradição. “São ações complementares. O Ministério do Trabalho e Emprego é o órgão do Poder Executivo Federal encarregado de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista vigente, em todos os setores produtivos, urbanos e rurais, e de punir os infratores. Continuará a fazê-lo com o mesmo rigor, inclusive publicando a chamada ´lista suja´. Já o Compromisso Nacional prevê a adoção de medidas não exigidas pela legislação atual, que extrapolam as obrigações legais”.

Na prática, contudo, o acordo instaura um sistema de premiação pública de usinas, com o aval do Palácio do Planalto, completamente alheio ao passivo de irregularidades já cometidas recentemente pelas mesmas empresas. De 2003 até maio de 2009, fiscais do MTE encontraram quadros de escravidão em pelo menos outras 16 usinas que assinaram o Compromisso Nacional. Os empreendimentos flagrados estão espalhados por nove Estados distintos da Federação (Alagoas, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo).

Muitas das usinas fiscalizadas nos últimos anos podem ser incluídas nas próximas atualizações da “lista suja”, após a conclusão dos devidos processos administrativos no âmbito do MTE. As três usinas que já estão no cadastro, por exemplo, só poderão deixar oficialmente a lista em julho de 2010 (Dcoil) ou em dezembro de 2010 (Itarumã e Energética do Cerrado). Quem entra só é excluído após dois anos, sem que haja reincidência e após o pagamento de todos os débitos relativos às autuações. Como a validade do Compromisso Nacional também é de dois anos, essas três usinas signatárias passarão, caso não sejam beneficiados por liminares da Justiça, a maior parte do tempo de duração do Compromisso Nacional, que pode ser renovado, na “lista suja”.

As perguntas enviadas pela reportagem sobre a possibilidade de exigência de critérios mínimos ou de medidas emergenciais de minimização de passivos trabalhistas básicos (leia abaixo a parte sobre Realidade) para autorizar adesões ao Compromisso Nacional não foram respondidas pela assessoria de imprensa da Secretaria-Geral. O órgão apenas se limitou a alegar que “um compromisso dessa natureza só poderia ser de adesão voluntária”.

Também não foi explicada a opção pelo engajamento numa nova iniciativa – que exigirá auditoria, monitoramento e gestão custosos e à parte – em vez de intensificar a fiscalização pelo cumprimento da legislação em vigor, mais especificamente da Norma Regulamentadora (NR) 31, que trata do trabalho rural. No ano passado, o MTE encaminhou notificação em que adverte as usinas sobre as condições de trabalho exigidas por lei. Uma nova notificação reiterando as regras legais foi reenviada este ano às empresas sucroalcooleiras.

Sem respostas
Para além dos casos de descumprimento direto da legislação trabalhista, várias usinas flagradas com escravidão mantêm dívidas milionárias do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e figuram no grupo de empresas em que acidentes de trabalho causaram até três ou mais óbitos.

A “acumulação” de irregularidades também não mereceu atenção da Secretaria-Geral, que evitou se manifestar inclusive sobre o conteúdo do Compromisso Nacional. A Repórter Brasil não obteve a posição do governo a respeito da ausência do fornecimento de comida aos cortadores no acordo – sob alegação dos usineiros de que “o sistema de alimentação é caro e a logística, complicadíssima”, alegação essa não confirmada em dados concretos.

Apenas o fornecimento do recipiente térmico, a marmita, acabou como um dos itens obrigatórios do acordo. Não houve ainda posicionamento oficial a propósito do descaso com relação à proposta de mudança do regime de remuneração dos cortadores (definição de piso salarial e fim do pagamento por produção).

A Secretaria-Geral tampouco esclareceu como se dará a “auditoria independente para exercício das atividades de monitoramento do cumprimento das práticas empresariais” prevista no acordo tripartite. Apenas se limitou a declarar que “o cumprimento será fiscalizado por uma comissão tripartite, e as empresas que eventualmente descumprirem as medidas nele previstas serão excluídas”.

No caderno editado pela Secretaria-Geral (em três idiomas: Português, Inglês e Espanhol), o ministro Luiz Dulci prevê que o compromisso “vai possibilitar vigoroso salto de qualidade nas condições e relações de trabalho do setor sucroalcooleiro”. “O Compromisso Nacional nos dá a certeza de que as melhores práticas trabalhistas já existentes serão de fato universalizadas e novos direitos serão criados, modernizando em definitivo o setor e humanizando plenamente o trabalho canavieiro”, acrescenta o ministro, que ocupa o cargo desde 2003.

No lançamento do Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar em junho, o presidente Lula definiu o acordo como “um novo paradigma”. Em comentário posterior feito no final de julho durante o lançamento do Plano Safra da Agricultura Familiar, o mandatário reforçou a relevância do “acordo histórico”, forjado numa série de encontros convocados pela Secretaria-Geral entre julho de 2008 a junho de 2009.

Para Lula, acordo é um
Para Lula, acordo é um “novo paradigma”; CPT e pesquisadora discordam (Foto: Wilson Dias/ABr)

“É um tratado de adesão em que nós começamos com mais de 300 empresários aderindo à humanização do trabalho no corte de cana, que é ônibus de qualidade, que é água de qualidade (…), que é condições sanitárias para um cidadão ir a um banheiro, que é comida quente, que é administrar e fiscalizar (…) a quantidade de cana que o companheiro corta todo dia e que, muitas vezes, ele não vê nem a pesagem”, definiu Lula no ato de oficialização das medidas governamentais de fomento a pequenos produtores.

Representantes dos usineiros – União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e Fórum Nacional Sucroenergético – e dos trabalhadores – Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp) e Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), com suporte da Central Única dos Trabalhadores (CUT) – que participam do diálogo puxado pelo ministro Luiz Dulci continuam repetindo o discurso que lustra o acordo como um “passo inédito e consistente” para a melhoria do cotidiano dos cortadores em atividade no país. De acordo com dados da Unica, quase 850 mil trabalhadores rurais atuam no setor, em 20 diferentes Estados. Pelo menos 323 usinas (das 413 existentes no Brasil) já aderiram ao compromisso.

Combustível limpo?
No mesmo dia do lançamento do Compromisso Nacional, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou nota pública com críticas ao acordo de “melhores práticas”, que prevê a contratação direta (fim da terceirização), o acesso do diretor sindical aos locais do trabalho, o transporte seguro e gratuito, a adoção de mecanismo de aferição de produção previamente acertada com o trabalhador, além do fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Para a CPT, “o acordo não acrescenta nada às conquistas já existentes na legislação trabalhista e nos dissídios coletivos, os quais são descumpridos, de forma crônica e contínua, pelas empresas que empregam os canavieiros brasileiros”.

A nota da CPT coloca que os beneficiados do acordo mais uma vez serão “os usineiros, os mais recentes ´heróis nacionais´”. “De fato, o que se percebe com muita clareza é que o principal objetivo deste acordo precário é preparar o terreno para a certificação social da atividade canavieira pelas empresas, sem mudar suas práticas, mas atestando a ´qualidade´ das condições de trabalho no setor sucroalcooleiro no país, o que não existe”, ataca a entidade com atuação na área rural. O Compromisso Nacional, completa a CPT, “visa unicamente sanar a rejeição internacional ao etanol brasileiro, provocada pelas centenas de denúncias que comprovam a relação intrínseca entre a produção de agrocombustível com o trabalho escravo e a devastação do meio ambiente”.

O etanol somente é um combustível “limpo”, na visão da CPT, “do cano de escape do carro para fora, pois, até chegar lá, o chamado ´biocombustível´ incorpora um altíssimo custo social e ambiental”. Portanto, completa a organização religiosa, “não tem como ter certificação social se é inerente ao modelo de produção do etanol a superexploração do trabalho, a degradação ambiental, além da concentração da terra e da renda”.

“É hora de recolocar em pauta a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional PEC 438/2001, sempre protelada pela bancada ruralista do Congresso Nacional, que prevê a expropriação, para fins de Reforma Agrária, das terras em que forem encontrados trabalhadores em situação análoga à de escravos. É hora de acabar de vez com essa vergonha em nosso país ao invés de tentar ´maquiar´ a realidade de centenas de trabalhadores e trabalhadoras rurais nos mais distantes rincões do campo brasileiro, esquecidos por um governo que os encobre com falsos selos politicamente corretos na busca desenfreada por uma imagem socialmente limpa no mercado agroexportador”, conclui a CPT.

Realidade
Enquanto governo, usineiros e representações sindicais apresentavam o “acordo inédito” à sociedade, os trabalhadores da Destilaria Araguaia (antiga Destilaria Gameleira), uma das signatárias do Compromisso Nacional, esperavam o pagamento de salários atrasados. A Araguaia, do Grupo EQM (Eduardo Queiroz Monteiro) foi flagrada duas vezes com trabalho escravo, em 2003 e 2005, com 272 e 1003 libertações, respectivamente. Desde fevereiro deste ano, os salários da usina de cana-de-açúcar de Confresa (MT) estavam sendo parcelados.

Enquanto o presidente Lula recitava loas ao acordo inédito, cortadores ainda não tinham recebido os vencimentos de maio e junho. Mais de 200 pessoas da indústria e do campo – entre eles migrantes do Maranhão, Pernambuco e Alagoas – sofriam com a situação. Muitos já tinham deixado o local em busca de outras fontes de renda. Nessa hora, sempre aparecem atravessadores que “compram as dívidas” que os trabalhadores têm a receber.

Segundo Aparecida Barbosa da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Confresa (MT), a pressão das representações do Ministério Público do Trabalho (MPT) não bastava para que os pagamentos fossem feitos. Há dois anos, o próprio MPT assinara um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) prevendo condições adequadas de trabalho e remuneração. “Já fizemos greve e algumas das conquistas são frutos da mobilização dos trabalhadores, como é o caso do acordo coletivo”, emenda a sindicalista.

“De três em três meses, a água é analisada. Na última análise, a água não estava potável. Falta um poço artesiano”, testemunha Aparecida. Os patrões pagam 25% do valor da alimentação, que é fornecida no local. Não há, segundo ela, casos de servidão por dívida. “Eles [empregadores] têm gado na parte pecuária, emendada com a área da usina. Eles põem no nome de terceiros. O gado que tem ali já daria para quitar a dívida”, denuncia. Ela lembra que a última fiscalização do grupo móvel na propriedade se deu em 2005. “Este ano eles estão relaxando de novo. Nos últimos meses, muitas usinas da região fecharam. Eles [proprietários] não fecharam, mas também não pagaram”.

Estudiosa das condições de trabalho nos canaviais, Maria Aparecida de Moraes Silva, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), salienta que os dois pontos centrais que determinam a superexploração (baixos salários e pagamento por produção continuam intactos. Em média, os cortadores recebem R$ 3 por tonelada de cana e derrubam de 10 a 12 toneladas por dia. “Não vejo nenhuma razão para que haja melhoria real com esse Compromisso Nacional assinado em Brasília”.

Chancela
Até a contratação direta, apontada como grande conquista do acordo intersetorial, é vista com ressalvas pela pesquisadora. Ela relata que algumas usinas do Centro-Sul levam médicos – para fazer exames admissionais e selecionar os mais aptos para fazer esforço físico – e contratam cortadores de cana diretamente nos seus locais de origem, principalmente na Região Nordeste. Eles são registrados, transportados e alojados pelas próprias empresas.

A seleção, pondera Maria Aparecida, privilegia trabalhadores que possam viajar sozinhos para o “Sul Maravilha”. Ela diz ter encontrado trabalhadores nos municípios de Mendonça (SP) e Novo Horizonte (SP) que vieram ano passado com esposas e filhos e que não voltaram ao Nordeste. Esses cortadores, que optaram pelo convívio em família e não têm como voltar com todos, não foram contratados este ano. “As usinas preferem trabalhadores que migram sozinhos. Essa foi a forma que encontraram para inibir a vinda das famílias”, discorre. Como o período nos canaviais chega até a 10 ou 11 meses no ano, essa separação familiar provoca, de acordo com ela, vários efeitos negativos.

A professora da Unesp frisa que, por conta da imensidão dos canaviais, fica muito complicado fiscalizar as condições de trabalho. Por maior que seja o esforço, ela não vê como inibir os incontáveis casos de desrespeito às normas trabalhistas no setor. “É a primeira vez na vida que eu vejo alguém propor o fornecimento de marmita vazia. Isso só faz sentido se tiver a comida. Todo cortador já tem sua marmita. É um item básico”, acrescenta. O soro para reposição de potássio, fornecido por algumas usinas, pode ser entendida, na opinião de Maria Aparecida, como uma “grande hipocrisia”. “Se os trabalhadores precisam dessa reposição é porque se desgastam além dos limites. Quem trabalha o tempo todo assim, com suplementos alimentares? A cãibra deles é vista como normal e foi inclusive naturalizada”.

O avanço da mecanização não resulta apenas no corte de vagas, mas na intensificação do desgaste físico por parte dos cortadores. A cana crua (não queimada) e deitada acaba “sobrando” para os trabalhadores manuais. Antes de fazer o corte, é preciso levantar primeiro os pés do chão, o que demanda um esforço adicional considerável. Muitos trabalhadores trabalham domingos e feriados (não têm descanso semanal remunerado) e, no sistema de trabalho em vigor, a usina impõe o ritmo, completa a pesquisadora.

Procurada, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que atuou como representante dos cortadores em termos de país na negociação com os usineiros e com o governo, não atendeu aos pedidos de entrevista da Repórter Brasil. A professora Maria Aparecida lamenta a “chancela das representações sindicais” ao Compromisso Nacional. “Infelizmente, eles assinaram embaixo e até levaram trabalhadores para tirar foto ao lado do presidente e dos usineiros. Naquela mesma época do lançamento da iniciativa, dois cortadores foram mortos queimados em canaviais de São Paulo e houve ainda acidentes de ônibus que transportavam trabalhadores rurais”.

*Colaborou Maurício Reimberg

EcoDebate, 15/08/2009

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