As consequências do rei carro e do imperador presunto. Entrevista especial com Luc Vankrunkelsven
Luc Vankrunkelsven concedeu a entrevista que segue à IHU On-Line, por e-mail, sobre o consumo de carne no mundo e a sua relação com os problemas ambientais. Segundo ele, este problema é globalizado e o aumento do consumo de carne está diretamente relacionado ao poder aquisitivo das pessoas. “Comer (muita) carne é um símbolo de prosperidade. Depois da guerra mundial, os europeus do Oeste começaram a comer mais carne (e usar mais produtos derivados do leite). Depois da queda do muro de Berlim, o que fizeram os povos da Europa do Leste? Começaram a comer mais carne e queijo também! E agora, o que faz a Ásia? Comem mais carne”, apresenta.
Luc revela ainda que o problema em relação ao consumo de carne vai além da cultura do gado, frango ou porco. A partir do surgimento da “aquacultura”, os peixes também passaram a comer ração composta por milho, farelo de soja e farelo de peixe. Ele aponta que “o salmão da aquacultura na Noruega está barato no Carrefour da Bélgica, porque a ração deste salmão é composta por: 50% de soja do Brasil/Argentina (que ficam entre 10 mil até 12 mil quilômetros de distância) e 50% de farinha de peixe das costas do Peru (15 mil quilômetros de distância)”. E isso está aumentando drasticamente o problema ambiental no mundo.
Luc Vankrunkelsven é filósofo e teólogo. Viveu na rua, entre os pobres de Antuérpia, de 1981 e 1983. Em 1990, fundou um grupo de trabalho para uma agricultura justa e sustentável. Desde 2003 vive e trabalha no Brasil e na Europa. É consultor independente da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil, atuando diretamente na formação de lideranças populares, com especialidade na questão da soja e capazes de atuar junto à Organização Mundial do Comércio – OMC.
Confira a entrevista
IHU On-Line – Onde o problema da carne no mundo se concentra e traz maiores consequências?
Luc Vankrunkelsven – O problema é globalizado. Para mim, a “soja” é uma metáfora da globalização, mas podemos falar também, por exemplo, do frango. Todas as partes do frango são usadas e vão a todos os cantos do mundo. De acordo com a OMC (Organização Mundial do Comércio), em 1994 os países do hemisfério Sul deveriam diminuir a alfândega na importação. Desde esta época, muitas indústrias de frango do Brasil (Sadia-Perdigão e outros) exportam para Europa. Os Europeus comem o peito do frango e exportam parcelas com menor valor, por exemplo, para Senegal. Lá, na cultura deles, a posição da mulher era/é vinculada à produção do frango caipira. Nas festas, as mulheres vendem os frangos e isso é muito importante nesta cultura, mas agora esta carne é mais barata e é impossível para a economia local concorrer com este mercado.
A história da carne tem relação também com a história da ração animal. Nesta história, o Brasil tem um lugar importante desde os anos 1970. Por exemplo: a Europa importa 50 milhões de toneladas de elementos de ração (soja, mandioca da Tailândia, farinha de peixe dos oceanos, amendoim de Senegal, etc). Desde os anos 1950, se produz 39 milhões de toneladas de soja no mundo. Deste total, 20 toneladas são produzidas no Brasil. Nos últimos anos, a China importa ainda mais soja do que a Europa.
IHU On-Line – Só o fato de diminuirmos a quantidade de carne em nossos pratos vai trazer que tipo de mudanças para o clima do planeta?
Luc Vankrunkelsven – Comer carne é um símbolo de riqueza. Quando um país tem mais poder econômico, o povo vai comer mais carne. Há também uma “hierarquia” no consumo de carne: boi, suíno ou frango. Quando a posição econômica de uma pessoa é ainda mais forte, busca carnes raras, como por exemplo, um antílope da África.
Comer (muita) carne é um símbolo de prosperidade. Depois da II Guerra Mundial, os europeus do Oeste começaram a comer mais carne (e usar mais produtos derivados do leite). Depois da queda do muro de Berlim, o que fizeram os povos da Europa do Leste? Começaram a comer mais carne e queijo também! E agora, o que faz a Ásia? Comem mais carne. Vinte anos atrás, o consumidor na China comia 20 quilos de carne por ano. Agora é 38 quilos de carne por ano e isso vem crescendo. Os brasileiros de classe média comem mais carne, mas o problema é que os chineses são 20% da população mundial.
O problema planetário é que a população mundial dobrou nos últimos 50 anos e o consumo de carne e peixe quintuplicou e vai dobrar de novo em 20 anos. Para este consumo precisamos de dois ou três planetas Terra, mas temos só um. E se queremos proteger ainda os ecossistemas no mundo, precisamos repensar nossos processos.
A produção de carne é uma questão de terra, água e muita energia e também de mudanças de clima. Com o desmatamento da Amazônia, muito carbono vai para ar. Também os fertilizantes e as máquinas exigem muita energia/carbono. Há fogos e desmatamento para produção da soja e da cana de açúcar, mas agora a Amazônia ainda sofre as consequências da presença do gado. Há mais bois no Brasil do que brasileiros! E pode-se dizer que o efeito climático do metano de um boi é comparável com um carro pequeno. O efeito do metano para o aquecimento do mundo é 23 vezes mais forte do que o carbono… Sim, diminuir a carne no nosso prato é muito efetivo. O trânsito no mundo tem 14 % de responsabilidade nas mudanças do clima, mas a produção de carne até 18 %.
IHU On-Line – Cada vez mais investidores estrangeiros buscam comprar terras no Brasil. Porque as terras do país são tão procuradas por empresários não brasileiros? Quais as diferenças entre o Brasil e outros países em relação ao agronegócio?
Luc Vankrunkelsven – Já desde os anos 1960, empresas e pessoas privadas compraram muitas terras no Brasil. Mas, sim, nos últimos anos isso vem crescendo. Acho que há dois fatores importantes: “o rei carro e o imperador presunto”. Existe uma demanda nos Estudos Unidos e na Europa para o combustível “verde”. O carro-chefe do programa biodiesel do governo Lula está relacionado à produção de combustível a partir da soja. Agora no grão da soja encontram-se os dois símbolos da sociedade capitalista, agora globalizada: o carro individual e um consumo alto de carne.
Desde os anos 1970, há o Pró-Álcool no Brasil, mas nos últimos anos houve uma expansão enorme porque começou esta demanda pelo etanol no mundo. E Lula disse: “temos terra para a comida e para agrocombustível”. Eu tenho muitas perguntas sobre esta ideia que o Brasil tem sobre a vocação alimentar do mundo, como os Estados Unidos pensavam já no século XIX.
Um elemento nesta história de centenas de novas fábricas de álcool é o painel na OMC do Brasil, Tailândia e Austrália contra a Comunidade Européia e sua política de açúcar. O Brasil e estes outros países ganharam este painel e a Europa devia mudar a política de açúcar. Nos últimos anos, muitas fábricas de açúcar fecharam na Europa (com subsídios da Comissão Européia e agora os agricultores europeus têm um problema de renda e de diversificação) e o capital fugiu para Brasil, Austrália e outros países que investiram em fábricas de álcool. Por exemplo, a multinacional Bunge nunca teve negócios no açúcar, mas começou agora com fábricas e plantações de cana de açúcar. Neste ano, visitei um “projeto” da Bunge em Tocantins: vi muita monocultura de cana e isso ainda vai crescer. É só um exemplo.
Os chineses compõem 20% da população do mundo, mas têm apenas 6% da terra arável e 6% da água doce. Os brasileiros têm tudo: muitas terras, muita água (cerca de 20% da água do mundo ou mais). Os indianos começam a entrar no paraíso do Mc’Donalds. Eles eram, desde muitos séculos atrás, vegetarianos, mas agora muitos deles começam a comer carne. E, em 20 anos, haverá mais indianos que chineses. Pense que os indianos têm ainda menos terra e água por pessoa do que os chineses. Então, quando estes povos mudam o hábito de comer, sentimos isso no mundo inteiro, sobretudo no Brasil, porque o país tem muita terra e água. Quando você consome carne, precisa de muito mais terra e água do que quando consome verduras, grãos, frutas, nozes, etc. Com o boom econômico da China, agora eles têm muito dinheiro para, por exemplo, comprar terras. Eles compram no Brasil e na África e muito barato!
IHU On-Line – A recessão global teve ou pode ter algum impacto sobre o problema ambiental do mundo?
Luc Vankrunkelsven – Sim, agora tem menos consumo de petróleo e de matérias primas, mas é só até o fim da crise. Neste momento, o preço do petróleo vem crescendo de novo e o consumo, obviamente, também. É só um período de recessão com menos impacto, mas depois o impacto vai ser ainda maior. A população do mundo, o consumo da carne, a quantidade de carros… Tudo está crescendo. Precisamos de um novo paradigma de desenvolvimento e de consumo. É bom os bens do mundo serem “democratizados”, mas a Terra tem limites. Porém, é democratizando que um bilhão de pessoas tem fome. Há dois anos, eram “apenas” 855 milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, temos o problema de centenas de milhões de pessoas com obesidade.
IHU On-Line – A concentração de rebanhos pode levar ao surgimento de novas pandemias? Podemos prever quais poderiam ser essas pandemias?
Luc Vankrunkelsven – Eu não sou um profeta do futuro, mas posso dizer que muitas doenças estão ligadas à produção (industrial) de carne e à globalização. Existem estas gripes aviária, suína… Não vão parar de surgir, mas sim vão se multiplicar. Há uma esperança: o peakoil [1]. Quando em 15 ou 30 anos o petróleo acabar, o sistema internacional do agronegócio e de outro comércio vai mudar. O modelo capitalista, exportador do agronegócio, não tem futuro.
IHU On-Line – E para uma real mudança do cenário que preveem para o planeta, como a identificação da origem da carne pelo consumidor pode ajudar?
Luc Vankrunkelsven – Comer menos carne e peixe é algo muito importante. Também peixe? Sim, os oceanos estão vazios e, nos últimos anos, aconteceu o surgimento da aquacultura. Estes peixes comem também ração (milho, farelo de soja, farelo de peixe). Por exemplo, o salmão da aquacultura na Noruega está barato no Carrefour da Bélgica, porque a ração deste salmão é composta por: 50% de soja do Brasil/Argentina (que ficam entre 10 mil até 12 mil quilômetros) e 50% de farinha de peixe das costas do Peru (15 mil quilômetros de distância). A consequência, portanto, é imensa.
Notas:
[1] A teoria do Pico do Petróleo (Peakoil) proclama o inevitável declínio e subsequente término da produção de petróleo em qualquer área geográfica em questão. De acordo com a teoria, seja em apenas um poço de petróleo ou no planeta inteiro, a taxa de produção tende a seguir uma curva normal. No início da curva (pré-pico), a produção aumenta com o acréscimo de infra-estrutura produtiva. Já na fase posterior (pós-pico), a produção diminui devido ao esgotamento gradual do recurso.
(Ecodebate, 15/08/2009) publicado pelo IHU On-line, 13/08/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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