Trabalho escravo: um problema que persiste. Entrevista especial com Marcos Pedlowski
Marcos Pedlowski, nesta entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone, tratou do trabalho escravo e do trabalho degradante. Ao tratar desses dois problemas, ele diferenciou-os e relacionou as formas como estão ocorrendo no país, revelando que não apenas na Amazônia há a ocorrência desses crimes, mas também em estados economicamente ricos, como São Paulo e Rio de Janeiro, ou culturalmente reconhecidos, como o Rio Grande do Sul e Paraná. Além disso, Marcos criticou duramente a MP 458, já conhecida como MP da grilagem. “Ela é um prêmio à grilagem”, definiu. O professor revelou também que há uma PEC parada há pelo menos cinco anos e que, se aprovada, certamente diminuiria ocorrências de trabalho escravo por aumentar a pressão e a repressão contra aqueles que cultivam esse problema. “Ela está sendo bloqueada pelo agronegócio com o beneplácito do governo Lula. Não há vontade política porque essa PEC trata de uma punição mais severa aos casos de trabalho escravo”, disse Marcos.
Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marcos Pedlowski é doutor em Environmental Design And Planning, pela Virginia Tech, nos Estados Unidos, e pós-doutor pela Fairfield University, localizada no mesmo país. Atualmente, é professor na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma a medida provisória 458 influenciará as ações no combate ao trabalho escravo?
Marcos Pedlowski – Da forma como a MP 458 está sendo colocada, pode incentivar a disseminação do trabalho escravo. Eu sou totalmente contrário a essa MP, pois ela é um prêmio à grilagem. Temos um problema grave no Brasil, que são as chamadas terras devolutas, onde a grilagem é muito mais forte. Por exemplo, em São Paulo, a região do Pontal do Paranapanema, todo o conflito é em cima do fato de que as grandes fazendas foram feitas sobre terras devolutas. A MP 458, para mim, é uma concessão do governo Lula ao agronegócio e ela não vai, de maneira alguma, resolver a questão da terra na Amazônia. Passei 15 anos em Rondônia e não há disposição nem do governo federal, nem do governo estadual, e muito menos do municipal, de enfrentar o problema da ocupação de terras dentro de áreas de conservação, ou de áreas indígenas. Nesse sentido, a MP 458 não só é um prêmio à grilagem como vai agravar os conflitos dentro da Amazônia e, em relação ao trabalho escravo, só vai piorar. Ela não tem qualquer controle de quem é um posseiro legítimo. Isso é um completo descalabro.
IHU On-Line – E a PEC 438, pode sair?
Marcos Pedlowski – Existe todo um movimento que está concentrado na internet, neste momento, pelo desengavetamento da PEC 438, porque ela já tem um longo período de gestação e até hoje não saiu. Ela está sendo bloqueada pelo agronegócio com o beneplácito do governo Lula. Não há vontade política, porque essa PEC trata de uma punição mais severa aos casos de trabalho escravo. Ela já foi aprovada em primeiro turno; o problema é que nunca chegou ao segundo turno ou à consideração do presidente Lula. Essa PEC é de 2001, mas você sabe quando foi apresentada a primeira proposta de emenda constitucional em relação a isso? Foi em 1995. Era a PEC 232. A Comissão Especial do Trabalho Escravo aprovou em 2004 essa formulação da PEC 438, ou seja, estão há cinco anos com ela parada. Até o momento o que nós temos para aqueles empresários ou proprietários de terras que são pegos com escravos caracterizados pela lei, é a emissao de multas. Em muitos casos, eles recontratam os escravos, com o beneplácito do Ministério do Trabalho que ainda dá as carteiras de trabalho.
IHU On-Line – A PEC 438 trata também do trabalho degradante?
Marcos Pedlowski – Acredito que a PEC 438 seria mais abrangente se falasse no trabalho degradante, mas ela pune mais severamente a questão do trabalho escravo. Ela desapropria e o “patrão” não ganharia nada com a desapropriação. Com a lei atual, o “cara” é desapropriado e ainda sai ganhando dinheiro. Temos que mudar a legislação e deixar de tornar a questão do trabalho escravo como um prêmio para o escravocrata. A PEC não seria o ideal, a solução definitiva, pois esse problema é muito mais profundo, mas puniria mais claramente. Por isso mesmo ela está parada.
IHU On-Line – Como o senhor vê as posições do governo em meio a essa questão?
Marcos Pedlowski – Eu penso, friamente, que o governo Lula está prisioneiro das suas alianças políticas. Trata-se de um governo neoliberal, com discurso de esquerda, bastante conservador. Um governo assim depende do balanço de poder que tem dentro do Congresso. O governo federal, nesse momento, está prisioneiro dos seus acordos políticos e retrocedeu. Quando Lula assumiu, FHC tinha deixado um Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, uma base sobre a qual o governo Lula poderia ter avançado. Mas não, ele se mantém numa postura de retrocesso que se tinha no governo anterior. Outra coisa: o Ministério dos Direitos Humanos dissolveu questões fundamentais. O direito ao trabalho é fundamental; você tem que ter como trabalhar em condições dignas, mas temos uma agenda de direitos humanos que é meio performática. Mas a secretária nacional de direitos humanos não falou nada sobre trabalho escravo e isso, para mim, é uma omissão muito séria.
IHU On-Line – Aonde está o trabalho escravo?
Marcos Pedlowski – Saiu uma lista suja do trabalho escravo em julho de 2009 que indica bem essa questão. Muitas vezes o trabalho escravo está caracterizado como trabalho degradante e isso faz com que tenhamos eventos como os que tivemos recentemente aqui no norte fluminense, em que 500 pessoas foram libertadas. Tivemos também eventos como esse na Bahia, que é um estado com muitos casos de libertação de escravos. Além disso, há registros de casos no Paraná, São Paulo – onde o problema é muito grave – e também no Rio Grande do Sul. Isso, para mim, não é surpreendente e demonstra que a questão do trabalho escravo não está resumida aos rincões da Amazônia. Na verdade, quando se fala, parece que é só na Amazônia onde há registros de trabalho escravo e não em outros estados brasileiros. Temos trabalho escravo na primeira economia do país, que é São Paulo. Temos também na segunda economia do país, que é o Rio de Janeiro. Além de estados considerados mais desenvolvidos culturalmente e politicamente, ainda que muitas vezes apareçam sob o rótulo de trabalho degradante.
Como a fronteira do escravo e degradante é, para mim, falsa, o trabalho escravo pode estar efetivamente em qualquer lugar do Brasil, dadas as condições que temos de punição, repressão e identificação, pois estamos muito atrasados.
IHU On-Line – Por que os grandes agricultores – que concentram o maior número de trabalhadores escravizados – são também aqueles que mais recebem votos nas eleições?
Marcos Pedlowski – É porque nós temos, no Brasil, diversas heranças malditas. Nós nunca tratamos corretamente da questão da escravidão no país. A primeira menção ao uso social da terra aqui é de 1946 por força do Partido Comunista Brasileiro. Isso dá conta de que a modernização conservadora brasileira nunca resolveu problemas fundamentais da herança colonial. Aí você tem um padrão de modernização do Estado com bases podres, porque ela nunca se direciona a resolver dívidas históricas. Essa última fase das políticas de cotas e compensatórias não resolve isso, que tem a ver com o balanço político do país. Ou seja, se você fizer uma análise da economia política da formação do Estado brasileiro terá a explicação de porque o setor escravocrata é tão forte no Congresso. É porque, na verdade, houve uma modernização da economia, mas não houve uma modernização política e isso explica porque o latifúndio é tão forte no país.
Não adianta nós termos esses “badulaques hightechs” se a base das relações políticas são ancoradas no atraso. Temos uma sociedade moderna atrasada. Isso repercute não apenas no trabalho escravo, mas em qualquer faceta, na distribuição de renda, no acesso à saúde, educação, habitação. Não é à toa que a sociedade brasileira é uma das mais desiguais do planeta, pois não fizemos essa negociação histórica com nosso passado colonial.
IHU On-Line – Por que o trabalho escravo na Amazônia é tão preocupante?
Marcos Pedlowski – Eu conheço bem a Amazônia. E vejo que há o desconhecimento de como o trabalho escravo está disseminado. O brasileiro é um grande desconhecedor do seu próprio país. Isso não acontece só conosco. Os estadunidenses são assim também. Então, o brasileiro que não mora no estado amazônico tem uma relação meio mitológica com a Amazônia, ela ocupa muito do imaginário da população. A falta de soberania na Amazônia faz isso. Acho que se superdimensiona o problema do trabalho escravo na Amazônia e obscurece o problema no restante do país. Agora, que a questão do trabalho escravo na Amazônia é muito séria, isso é! Porque, efetivamente, se o Estado nacional brasileiro é frágil em outras regiões, imagina na região que deixamos fora do processo efetivo até a década de 1970. A Amazônia representa 2/3 do país. Como fiscalizar uma região tão grande, com tão poucas pessoas, que sofrem ameaças dos grandes proprietários rurais, que muitas vezes são aliados dos políticos? Esse problema é muito grave na Amazônia, mas também em outras regiões do Brasil.
IHU On-Line – Como podemos entender as diferenças entre trabalho escravo e trabalho degradante?
Marcos Pedlowski – Essa é uma boa pergunta. Para mim, da forma como está tipificado, essa diferença é tênue. O trabalhador está dentro de uma propriedade com guarda armada, não pode sair dela, está endividado, abusado na extração da sua força de trabalho, está sendo fisicamente colocado em condições de extremo cansaço, mas está coagido a não sair. Isso é trabalho escravo. O trabalhador que está na mesma condição do primeiro exemplo e pode sair, só não sai porque está endividado até o último fio de cabelo, é vítima do trabalho degradante.
IHU On-Line – O que a lista suja do trabalho escravo fala sobre a política brasileira?
Marcos Pedlowski – Ela não pode ser totalmente negativa. Ela é um avanço porque permite que as empresas que compram a produção dessas fazendas possam ir rotineiramente verificar se a origem do seu produto não está associada ao trabalho escravo. Para mim, ela não é suficiente. Existem casos em que o produtor consegue se retirar da lista. A Petrobrás, por exemplo, pode identificar um produtor de etanol que faz uso do trabalho escravo e não compra mais esse produto dele. Agora, o Wall Mart e o Mc’Donalds decidiram não comprar mais da área de gado não certificada ou que tenha trabalho escravo. Essa lista ajuda, nesse sentido. Ainda assim, ela não contempla o conjunto dos eventos da escravidão. Ela é um avanço, mas não é suficiente.
(Ecodebate, 13/08/2009) publicado pelo IHU On-line, 11/08/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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