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Uma outra visão para a Amazônia, artigo de Washington Novaes

A Amazônia não pode continuar a ser vista apenas como local da geração de commodities e de outros itens exportáveis para países que não querem arcar com seus custos ambientais e sociais. Nem como desaguadouro de problemas sociais internos, que se traduzem em levas migratórias (para trabalhar com a borracha, em garimpos, em assentamentos da reforma agrária, etc.). Precisa e merece mais.

[O Estado de S.Paulo] Já há algumas décadas, dizia um diplomata, numa assembleia da ONU, que “cada vez que morre um velho chefe de um grupo étnico na África é como se desaparecesse uma biblioteca com todos os valiosos conhecimentos de uma cultura” – porque nelas, como nas nossas culturas indígenas que não têm linguagem escrita, o chefe é o que mais sabe, o que conhece a história do povo, seus costumes e tradições, seus conhecimentos sobre a natureza que os cerca. Imagine-se, então, a perda cultural sofrida pelo Brasil, onde só no século 20 desapareceram mais de cem línguas indígenas. E hoje, só na Amazônia, estão ameaçadas de extinção 21% das línguas, muitas delas faladas apenas por um número reduzido de pessoas (Agência Fapesp, 17/7). Por isso – concluiu um grupo de discussão na 61ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Manaus – é indispensável formular uma política linguística para o País, que esteja voltada também para a ciência, dadas as implicações para mais de 225 etnias, somente na Amazônia e nos Estados confinantes.

Só no Estado do Amazonas, informou-se nessa discussão, há mais de 50 etnias, a maioria com menos de cem indivíduos e baixa taxa de transmissão de conhecimentos tradicionais para as novas gerações (em algumas, taxa zero). No Pará são 26 etnias, com um número de línguas equivalente ao de todos os países da Europa Ocidental. Em Roraima são 61 povos. Na cidade de Manaus vivem pessoas de 40 etnias diferentes. E não se sabe exatamente quantos grupos ainda vivem isolados, sem contato com outras culturas. A própria Funai admite que possa haver mais de 60, que somariam seus componentes aos outros 460 mil indígenas (0,25% da população nacional) reconhecidos.

Mergulhados em muitos dramas, os indígenas têm hoje uma taxa de suicídio oito vezes maior que a média nacional, diz o Distrito de Saúde Indígena do Alto Solimões (fora assassinatos, que vitimaram 60 índios no ano passado). Causa: “crise de identidade” em razão do contato fora de suas culturas – o índio deixa de ter como viver à maneira tradicional e não tem qualificação para se inserir no mundo externo. E a situação tende a se agravar: 48 obras do PAC na Amazônia – disse o bispo Erwin Krautler, do Conselho Indigenista Missionário – ameaçam terras indígenas, principalmente hidrelétricas, além de outras no Tocantins e das próprias obras de transposição de águas do Rio São Francisco. E pouco se resolverá enquanto não se avançar na discussão do Estatuto dos Povos Indígenas, que inclui exploração de minérios e outros itens em suas terras, e na regulamentação de seus direitos na área do acesso aos recursos da biodiversidade, recursos genéticos, etc. Mas, não bastassem os problemas conhecidos, tem-se agora no Congresso proposta de emenda constitucional que retira da Funai e do Executivo a atribuição de demarcar terras indígenas.

Essa discussão levou um índio, num fórum recente, a perguntar: “Quem descobriu o Brasil? O PAC ou o índio?” E um professor universitário relembrou o ensinamento do extraordinário antropólogo Claude Lévi-Strauss: por que os índios brasileiros não massacraram os portugueses recém-chegados? Estes eram dezenas de indivíduos e os índios, milhões; mas eles trataram os recém-chegados (entre eles assassinos, ladrões, etc.) como fidalgos, porque nas culturas do índio está sempre prevista a chegada do outro – e o outro é o limite da liberdade de cada indivíduo, nessas culturas em que não há delegação de poder e ninguém dá ordens a ninguém.

Todo esse contexto torna importante o conhecimento de obras como Awapá – Nosso Canto, em que as professoras Lila Rosa S. Ferro e Jaqueline Medeiros de França relatam os cantos, a língua e outros ângulos da cultura yawalapiti (Alto Xingu), que elas mesmas ajudam a recuperar num belo trabalho, após a constatação de que apenas oito indivíduos ainda falavam a língua originária. Ou Índios do Tocantins, do professor Orlando Sampaio Silva, que relata “a turbulência do contato e sua ressonância na construção identitária dos povos”.

Da mesma forma, desperta muita esperança a criação do Museu da Amazônia, também discutida na reunião da SBPC. O próprio conceito básico dessa instituição – “Viver juntos” -, apoiada pelo governo do Amazonas e coordenada pelo professor Ennio Candotti, ex-presidente da SBPC, demonstra os rumos básicos pretendidos: não só reunir acervos arqueológicos, antropológicos e de outras áreas científicas, mas buscar a convivência com as culturas amazônicas e com a biodiversidade das várias regiões desse bioma. Será também um “museu de território”, implantado na Reserva Ducke (100 km2, ao lado de Manaus), que pretende oferecer ao visitante uma percepção sensorial (“Como eu vejo o macaco? Como o macaco me vê?”), visão das culturas amazônicas e muito mais, além dos laboratórios de pesquisa, oficinas educacionais, redes de trilhas, etc.

Tudo isso tem extraordinária importância. Como pergunta o escritor Márcio Souza: onde está a visão das culturas populares que permitiu manter a floresta em pé durante séculos? Onde está o seu conhecimento – e não apenas o seu folclore? Esse conhecimento é fundamental no momento em que se começa a discutir uma estratégia para a Amazônia, que não seja fundada só nos interesses econômicos, políticos e sociais externos (de outras regiões do País e do exterior). E no momento em que a conservação da Amazônia está no centro das discussões sobre a própria sorte do planeta, em razão do clima e da crise de recursos naturais.

A Amazônia não pode continuar a ser vista apenas como local da geração de commodities e de outros itens exportáveis para países que não querem arcar com seus custos ambientais e sociais. Nem como desaguadouro de problemas sociais internos, que se traduzem em levas migratórias (para trabalhar com a borracha, em garimpos, em assentamentos da reforma agrária, etc.). Precisa e merece mais.

Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes{at}uol.com.br

* Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo.

EcoDebate, 03/08/2009

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