Longe de uma matriz elétrica sustentável, artigo de Osvaldo Soliano Pereira
“Considerando os avanços da tecnologia, que o último leilão de eólica aconteceu há quase cinco anos e a constatação de que o potencial do país é gigantesco, dever-se-ia pensar num leilão de grande porte”
[Valor Econômico] Em 2002, com a sanção da Lei 10.438, foi outorgado o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa), garantindo que uma parcela do crescimento da demanda de energia elétrica seria atendida com fontes novas e renováveis e definindo metas anuais e de longo prazo.
Foi realizado o primeiro leilão, mas não se sinalizou o cumprimento das metas anuais e ficou difícil atingir a meta do índice de nacionalização requerido, o que dificultou a implantação da primeira fase – e isso dá mais combustível para não se iniciar a segunda fase. Paulatinamente foram se solucionando os problemas, mas até hoje o programa não foi integralmente implementado.
Com o novo modelo do setor elétrico implantado em 2004, abriu-se mão desta conquista que contemplava duas grandes externalidades: contribuir para a manutenção de uma matriz limpa e abrir oportunidades para o desenvolvimento tecnológico nacional. O modelo, além de vir lutando para garantir a segurança energética a qualquer custo econômico e ambiental, não tem conseguido garantir a modicidade tarifária, como mostraram os reajustes tarifários do setor elétrico.
Sabe-se hoje que o impacto tarifário teria sido menor se os leilões já realizados tivessem optado por um pouco mais de fontes limpas com baixíssimos custos operacionais, ao invés de dar preferência aos baixos custos de investimentos e elevados custos operacionais de algumas termelétricas.
Mais grave é o resultado do ponto de vista ambiental, porque mais de 70% da energia arrematada nos leilões provém de fonte fóssil, e não necessariamente da fóssil mais limpa – o gás natural -, mas óleo e carvão mineral. E o impacto ambiental se espraia em várias direções, pois as emissões de gases de efeito estufa, que formalmente o país não tem obrigação de reduzir – apesar de isso o colocar na contramão mundial -, poluem o ambiente local e regional.
As restrições quanto aos níveis de emissão de poluentes no país são muito menores que aqueles tolerados em países mais desenvolvidos, e isto ficou bastante evidenciado no imbróglio das emissões do diesel no setor de transportes – combustível que será usado em algumas termelétricas.
Alguns Estados já estabeleceram limites mais rigorosos nas emissões toleradas, mas outros ainda veem as termelétricas a óleo como uma fonte de desenvolvimento local. Elas estão sendo concentradas em alguns Estados do Nordeste, e o custo ambiental está sendo transferido das tarifas de energia elétrica para os contribuintes dos Estados mais carentes. Desta forma, nada mais justo que a sociedade seja compensada por ter que absorver todo este volume de emissões.
O resultado final é tão deletério que começou a incomodar ministros e executivos de órgãos governamentais, além dos especialistas. Em recente artigo publicado na “Folha de S. Paulo”, Rogério Cerqueira Leite qualificou o resultado final destes quatro anos de leilão como “crime perfeito”, pois sistematicamente tem-se atribuído a predominância dos projetos termelétricos dos últimos leilões à demora e exigências dos órgãos ambientais no licenciamento das hidrelétricas. O que falta, na verdade, é vontade política para contornar a questão do licenciamento das hidrelétricas.
Os cenários futuros também não são promissores quando se analisa o Plano Decenal de Energia Elétrica que sinaliza para o ano de 2017: mais geração de energia elétrica com óleo diesel do que com energia eólica. Enquanto a participação da eólica sai de 0,3% em 2008 para 0,9% em 2017, o óleo combustível passa de 0,9% para 5,7%.
Caso se efetivem as previsões desse Plano, em 2017 o Brasil terá menos geração eólica do que a Índia tem hoje. Também o cenário para 2030 sinaliza uma maior participação de óleo do que das novas renováveis.
Uma medida, ainda que tímida, para compensar tantas emissões, foi anunciada pelo Ministério do Meio Ambiente, mas já começa a ser bombardeada pelos grandes emissores. Espera-se que não haja retrocesso e que seu efeitos sejam ampliados do Ibama para todos os órgãos licenciadores estaduais.
Outras ações importantes para manter a matriz mais limpa foram tomadas com os leilões dos projetos estruturantes no Rio Madeira e o da usina de Belo Monte, a ser realizado este ano. Estes exemplos são prova de que esforços concentrados podem resultar em sucesso, lição a ser replicada nos leilões A-5, onde se deveria adquirir energia oriunda de hidrelétricas e não reproduzir exatamente o que acontece nos leilões A-3. O leilão de reserva da biomassa realizado em 2008 representou um avanço e espera-se um leilão significativo para energia eólica em 2009, e não um piloto, como se tem mencionado.
Considerando os avanços da tecnologia, que o último leilão de eólica aconteceu há quase cinco anos e a constatação de que o potencial do país é gigantesco, dever-se-ia pensar num leilão de grande porte, acompanhado de um programa que sinalizasse aquisições periódicas para fazer crescer o parque produtivo nacional e baratear os preços finais da energia.
Hoje não restam dúvidas que o potencial nacional da energia eólica é algumas vezes maior que o potencial da energia hidrelétrica, algo na faixa de algumas centenas de GW. Este potencial precisa ser melhor inventariado, de forma a que se assemelhe ao levantamento feito dos recursos hidráulicos e permita planejar cenários futuros de oferta baseados em análises estocásticas, com séries históricas e sintéticas, avaliando a complementaridade entre regiões e entre os recursos disponíveis e os reservatórios existentes.
Assim, faz cada vez mais sentido planejar o setor energético, e não deixar ao sabor do mercado o resultado dos leilões, como vem acontecendo nos últimos cinco anos.
Só desta forma será possível atingir uma matriz elétrica nacional sustentável em que a hidroeletricidade continue tendo um papel preponderante, mas com um avanço crescente da energia eólica, que pode alcançar índice de participação superior a 30%, ao lado de uma complementação térmica baseada em gás natural. Nesta transição, ações agressivas poderão reduzir a demanda entre 10% e 20% do hoje requerido.
Osvaldo Soliano Pereira é presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético (SBPE) e professor da Universidade Salvador (UNIFACS).
* Artigo originalmente publicado no Valor Econômico
EcoDebate, 31/07/2009
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