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O futuro no ralo do desperdício: Consumo excessivo, uso indevido e falta de cuidado comprometem fornecimento de água

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Houve uma época, e isso já vai longe, em que os moradores das cidades supriam suas residências com água de poço, de mina e até mesmo de rio. Água de rua, como se diz agora no caso do fornecimento por meio de canos, era coisa para poucos, e o serviço, na maior parte das vezes, recaía sobre os ombros da municipalidade ou de entidades do tipo amigos do bairro”. Com a chegada desses primeiros serviços de encanamento, surgiram também os vazamentos e as torneiras que gotejavam por falta de reparo. Uma torneira aos pingos, explicam os entendidos, desperdiça cerca de 80 litros de água por dia; já um jorro fino e constante (1,6 mm de diâmetro) causa a perda de 180 litros diários.

Com o crescimento da população, as cidades incharam e a necessidade de água potável, sempre crescente, deu margem à criação de inúmeras empresas de saneamento e abastecimento de capital oficial, e o entendimento que se tinha das perdas protagonizadas no passado pelo gotejamento ganhou outros contornos. Hoje, em virtude da complexidade que envolve o sistema de captação, adução e distribuição, com a água sendo bombeada de pontos cada vez mais distantes – notadamente no caso de grandes metrópoles –, do custo elevado dessas operações e do sempre lembrado risco de desabastecimento, esse desperdício virou sinônimo de irresponsabilidade.

Um exemplo do drama: o consumo de água dos quase 20 milhões de habitantes da Grande São Paulo, um dos maiores aglomerados urbanos do planeta, é estarrecedor. De acordo com a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), na região metropolitana o sistema de abastecimento, que é integrado, opera por meio de oito grandes complexos, responsáveis pela oferta de 65 mil litros de água por segundo.

A grandiosidade dos números que representam o fornecimento de água só encontra paralelo naqueles que medem seu desperdício. “A Agência Nacional de Águas (ANA) calcula que para cada 100 litros de água captados, em torno de 43% se perdem da fonte até o destino final através dos encanamentos ou pela evaporação”, relata Maria Raquel Grassi Marques, gerente de Projetos e membro do Núcleo de Sustentabilidade e Responsabilidade Corporativa da Fundação Dom Cabral (FDC), de Belo Horizonte. “A irrigação apresenta o maior desperdício, e há casos em que até 50% da água utilizada não chega às plantações, perdida ora pela evaporação, ora pela infiltração no solo”, observa Haroldo Mattos de Lemos, presidente do Instituto Brasil Pnuma (Comitê Brasileiro do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Ele explica que a irrigação, aplicada em quase 20% das áreas aráveis no mundo, é responsável por 40% da produção mundial de alimentos. “Para produzir 1 tonelada de grãos são necessárias mil toneladas de água, e para 1 tonelada de arroz, é usado o dobro. É importante ressaltar também que sistemas de irrigação mal planejados e/ou mal operados podem provocar a salinização e a degradação dos solos.”

Lemos diz que, em virtude do crescimento da população e da urbanização nos países em desenvolvimento, a demanda pela água vai aumentar em pelo menos 50% nos próximos 20 anos. “A competição pela água poderá limitar significativamente sua disponibilidade para irrigação e, consequentemente, reduzir a produção de alimentos no mundo”, deduz. Ele aproveita para informar que a agricultura responde por 59% da água consumida no país, contra 70% no resto do mundo. Enquanto o uso doméstico no Brasil gira em torno de 22% da oferta, contra 10% fora do país, o consumo do setor industrial fica ao redor de 19%, contra 20% no exterior.

Em 2007, a Fundação Dom Cabral fez uma pesquisa com as 50 maiores empresas do país com o intuito de avaliar as principais questões ligadas à sustentabilidade e, de quebra, detectar como elas estavam incorporando esses temas em suas estratégias e indicadores. No ranking de 16 prioridades, a água ocupou, naquela oportunidade, apenas o nono lugar.

Oito gotinhas

Certas coisas precisam ser ditas à exaustão para que as pessoas se sensibilizem quanto à sua gravidade. É sabido que o indivíduo acostumado a escovar os dentes duas vezes ao dia com a torneira aberta, por dois minutos, consome apenas com isso quase 300 litros de água no mês. Que no apartamento, onde a pressão da água é maior, a lava-louças operando por 15 minutos pode gastar até 240 litros de água. Que lava-roupas para 5 quilos demandam em torno de 135 litros a cada lavagem, água que deveria ser reutilizada na limpeza do quintal, uma medida providencial que teria o mérito de descansar a mangueira e, com isso, reduzir o desperdício. Os enfronhados no assunto explicam que 15 minutos com
a mangueira ligada representam um consumo de 280 litros de água. “Um cano com vazamento contínuo através de um buraco de 2 mm (a largura de um palito de dentes) representa uma perda de 3,2 mil litros por dia. Ao longo de um mês, serão 96 mil litros”, expõe Heloísa Mello, gerente de Operações do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, organização não governamental criada em 15 de março de 2001, no Dia Mundial do Consumidor, no âmbito do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Ela faz um alerta: “Apesar de ser um recurso natural abundante, nem toda a água do mundo está disponível para consumo: 97,5% é salgada e, dos 2,5% restantes, apenas 0,007% é doce e pode ser encontrada em locais de fácil acesso, como rios e lagos”, esclarece. “Se o precioso líquido de que se pode dispor no planeta coubesse em um balde de 10 litros, toda a água doce existente somaria 243 mililitros. Só daria para encher cerca de metade de uma garrafa de meio litro. A água disponível para consumo, por sua vez, corresponderia a apenas oito gotinhas”, compara Heloísa.

O engenheiro Paulo Costa vai além, afirmando que a situação é extrema, “pois nossos estoques são praticamente os mesmos há 50 anos, mas, em contrapartida, a população aumentou de maneira significativa”. Especialista da empresa H2C, dedicada ao desenvolvimento de programas de racionalização de consumo de água, ele faz uma advertência: estamos tratando de um bem raro que é finito e não renovável. Isso, na realidade, é de conhecimento geral, mas não tem sido levado a sério por uma parcela importante da população e mesmo por gente do governo. Por isso, precisa ser sempre enfatizado. “A água é como a saúde, só é lembrada quando falta”, evidencia Costa.

Há um dado preocupante que, no caso do Brasil, passa em branco para as pessoas que, indiferentes ao caos que se avizinha, continuam gastando água em excesso. “O que não nos contaram nos anos em que cursamos a escola básica é que, apesar de o Brasil dispor de aproximadamente 12% da água do planeta, sua distribuição no país é um caso sério”, explica Maria Raquel, da FDC. A região norte abriga perto de 70% do estoque da água doce, mas apenas 6,98% dos brasileiros vivem ali. No centro-oeste, que serve de lar para 6,41% da população, o estoque corresponde a 15,7% do total; já nas regiões sul, sudeste e nordeste os números são, respectivamente, de 15,05% e 6,5%; 42,65% e 6%; e 28,91% e 3,3%. “Ao mesmo tempo em que temos locais com uma disponibilidade muito grande de água, há pontos que amargam índices críticos decorrentes da estiagem e da seca. E a região metropolitana de São Paulo já é considerada uma área de grande risco”, assinala Maria Raquel.

Banho demorado

A Organização das Nações Unidas (ONU), de acordo com Heloísa Mello, divulga que cada indivíduo necessita de 110 litros de água por dia para atender às suas necessidades de consumo e higiene. “No Brasil, a demanda diária por pessoa nos grandes centros urbanos pode passar de 200 litros”, ela esclarece. Há estudos, porém, que apontam números bem superiores, algo entre 250 e 400 litros por dia. “Gastar mais de 120 litros de água, diariamente, é jogar dinheiro fora e desperdiçar nossos recursos naturais”, diz Ronaldo Gonçalves, gestor do Programa de Uso Racional da Água (Pura), da Sabesp. “Além do hábito arraigado do banho demorado, talvez por influência indígena, o fato de o Brasil deter as maiores reservas de água do mundo, tanto superficiais quanto subterrâneas, induz à crença, errônea por sinal, de que não se trata aqui de um bem escasso”, afirma o especialista.

Heloísa Mello comenta que o dado infeliz das estatísticas é que cerca de 9 milhões de residências não têm acesso à água potável. “Gastar um excesso de água por dia é, a meu ver, mostrar descaso com um recurso natural que falta para muita gente”, lastima. Um dos piores exemplos de desperdício em solo brasileiro vem de Brasília, afirma o engenheiro Costa, da H2C. “Um bairro nobre da capital federal consome, diariamente, em torno de mil litros de água per capita”, destaca. Devido a esse consumo desproporcional, o Brasil detém o recorde mundial de desperdício por habitante, relata Maria Raquel. “Enquanto isso na Namíbia, no continente africano, as pessoas têm de se arranjar com 1 litro de água por dia”, diz. Ela conta que apenas cinco países atendem aos níveis de consumo per capita previstos pela ONU: Alemanha, Bélgica, Hungria, Portugal e República Tcheca. Um estudo publicado em 2002 alerta para o fato de que, se nada for feito para melhorar os números das estatísticas, em 2025 a escassez de água causará perdas anuais globais de 350 milhões de toneladas na produção de alimentos, o equivalente à colheita anual de grãos dos Estados Unidos.

O petróleo do século 21

Isso, porém, não é tudo. Maria Raquel adverte que os problemas locais fazem parte das questões globais e vice-versa, “ou seja, o mundo deve ser visto de forma sistêmica. Se faltar água em alguns pontos, não tenha dúvida, os lugares que ainda dispõem de estoque do precioso recurso serão alvo de disputas e quem sabe de guerras e invasões”. Haroldo Lemos avança um pouco mais. Ele diz que um documento elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização Meteorológica Mundial, intitulado “A Água no Mundo: Há o Bastante?”, divulgado ao final do I Fórum Mundial sobre a Água, realizado em Marrakech, no Marrocos, em março de 1997, concluiu que “a diminuição dos recursos hídricos, associada a uma maior demanda de água potável, ameaça transformar essa matéria em uma explosiva questão geopolítica, já que aproximadamente 200 bacias hidrológicas se localizam em áreas de fronteira de vários países”. O presidente do Instituto Brasil Pnuma diz que alguns especialistas comentam abertamente que as guerras futuras serão pela posse da água e não por motivos políticos. Em suma, e para ir logo ao ponto, segundo Lemos, “a água deverá desempenhar no século 21 um papel de relevância semelhante ao exercido pelo petróleo no século 20”.

Até agora, atirou-se nesses males apenas com palavras. No momento, o que se vê são frases de efeito com a intenção de chamar as pessoas à razão, algumas tentativas isoladas de estancar o desperdício e discursos, muitos, com o mesmo objetivo. Os entendidos dizem que as nações que estão colhendo bons resultados na guerra contra o esbanjamento são as que sabem tirar vantagem da difusão de informações, da educação ambiental e da reeducação da população adulta, um trabalho persistente que acaba, invariavelmente, mudando os hábitos das pessoas. A educação ambiental é, seguramente, um fator fundamental na mudança de comportamento. Por isso há quem veja no incremento da oferta de água um problema e não uma solução. “Ouvimos e lemos notícias sobre números astronômicos que balizam a produção de milhares de litros por segundo aqui e ali, mas esse, no meu entender, não é o cenário ideal para essa batalha”, interpreta o engenheiro Paulo Costa.

Ele afirma que produzir cada vez mais pode não ser o melhor caminho. É preciso enxergar mais longe. “Quanto maior for o consumo, menos teremos no futuro. De nada adianta a preocupação com o aumento da oferta se continuarmos fazendo vista grossa à demanda, pois um dia a água vai minguar.” Ele analisa que boa parte dos brasileiros imagina que nossas riquezas em relação à água são um salvo-conduto para o consumo indiscriminado. Esse é um modo equivocado de ver as coisas. “Quando ela começar a escassear, o que vamos fazer? Construir dutos de proporções gigantescas para abastecer os grandes centros populacionais que, no Brasil, dão guarida a 83% da população?”, pergunta Costa. O especialista da H2C vai mais longe. Diz que falta ao país uma política que penalize quem desperdiça. “Na Suíça, a taxa para o consumo básico de água é bastante acessível, mas, caso exceda um limite preestabelecido, o usuário arca com uma taxa muito mais elevada. Ademais, vale salientar, os países citados como bons exemplos investiram na individualização do consumo, ou seja, lá o custo do desperdício não é rateado”, explica.

Novos produtos

Um exemplo bem-acabado de consumo em que muitos pagam por poucos, independentemente da demanda de cada um, é dado pelos condomínios, uma situação que, invariavelmente, pode levar ao desperdício. “Muitos usuários que pagam o consumo de água dentro do valor condominial nem sempre demonstram uma preocupação imediata com o gasto, já que as contas são cobradas dividindo-se o volume total pelo número de apartamentos”, afirma Ronaldo Gonçalves, da Sabesp. Ele recomenda, nessa circunstância, a instalação de hidrômetros individuais, uma medida prática que tem o dom de “promover o uso otimizado da água, o controle do consumo, a economia de gastos e a justiça social”. Especula-se que 160 mil prédios em todo o Brasil já tenham aderido ao hidrômetro individual, investimento que, segundo consta, estaria garantindo uma redução de 20% na conta de água. Gonçalves destaca que a medição individualizada surgiu na Europa há 50 anos e que hoje, apoiada em tecnologias mais avançadas, é operacionalizada por empresas especializadas que fazem o serviço de leitura, rateio e manutenção do sistema. “No Brasil, a discussão do tema é recente e foi estimulada pela necessidade de redução de consumo nos períodos de racionamento de água”, ele acrescenta.

Os lançamentos de novos produtos e os debates em torno do assunto, cada vez mais animados, estão dando margem ao surgimento de iniciativas que buscam respostas ao risco representado pelo desperdício. Por exemplo, novidades até recentemente exclusivas de hotéis, shopping centers e aeroportos começam a ganhar espaços nas residências, como as torneiras de fechamento automático e as duchas com controle de vazão. E há a propositura de normas com o claro objetivo de conter a demanda elevada de água. O deputado estadual Miki Breier, do Rio Grande do Sul, é autor de um projeto de lei que estabelece a obrigatoriedade de tratamento e reutilização da água usada na lavagem de veículos pelos postos de combustíveis, lava-rápidos, transportadoras, empresas de ônibus urbanos e intermunicipais e frotas veiculares de locação ou revenda instalados no estado. “Não terei a arrogância de afirmar que redescobri a roda. Foi uma questão de oportunidade”, disse Breier à reportagem. “Um grupo de estudiosos do assunto me procurou e fez a apresentação de estudos que servem de fundamento a meu projeto. Acreditei e apostei na ideia”, finalizou.

Reportagem de Miguel Nítolo, na Revista Problemas Brasileiros, nº 394.

EcoDebate, 13/07/2009

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