Crítica à certificação entre Governo e Usinas
Semana passada, o Governo Federal anunciou a assinatura do “Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar”. De acordo com o Governo, a iniciativa visa garantir “melhores práticas” nas relações de trabalho no monocultivo. Em entrevista para a Comissão Pastoral da Terra – Regional NE, Xavier Plassat, membro da coordenação da Campanha Nacional da CPT de Combate ao Trabalho Escravo, faz criticas ao acordo e questiona a sua eficácia para modificar as relações de trabalho na produção da cana.
CPT: O que você acha deste acordo firmado pelo presidente Lula com produtores de etanol?
Xavier Plassat: O texto hoje proposto à livre adesão dos usineiros não merece o qualificativo nem de acordo nem de compromisso: acordo é para selar um conjunto de regras inovadoras, compromisso é para gerar mudanças e até rupturas com uma situação anterior a ser superada. E quando há compromisso tem de haver contrapartidas, controles e sanções em caso de não-observação. Não há nada disso no texto. Passado o primeiro artigo da declaração – aquele que ratifica o propósito dos empregadores de “contratar diretamente os seus trabalhadores para as atividades manuais de plantio e corte da cana-de-açúcar, com registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS”, ou seja, de acabar com a terceirização (via gatos) que tem sido a regra habitual nessa matéria.
Não vejo nenhum artigo que traga inovação substancial em relação a obrigações que já constam na CLT e no conjunto de normas regulamentadoras aplicáveis no setor. Ou seja: temos aqui uma declaração pela qual o sujeito se limita a confirmar sua adesão ao ordenamento legal do país, não de imediato, inclusive, mas com prazos e maneiras. Alguém imagina conseguir atestado de boa conduta somente confirmando sua (boa) intenção de dirigir só com habilitação, orientando-se pelas regras do trânsito, sem derrubar os transeuntes? Os espanhóis dizem: “Parieron los montes, y nació um ratoncito”. Detenho-me somente ao plano das condições de trabalho, todo mundo sabe que o problema maior no canavial é a questão da produção, do pagamento por produção, da exaustão transformada em meta diária para milhares de cortadores, uma prática que envenenou literalmente o ambiente de trabalho e até as pautas de negociação. Segundo Maria Aparecida de Moraes, especialista: “Durante a década de 1980 a média de produtividade exigida no canavial era de 5 a 6 toneladas diárias; esses números passaram para 10 durante os anos de 1990, e atualmente giram em torno de 12 a 15. A elevação continuada da média induz ao sofrimento, à dor, a doenças e até mesmo à morte. Há registros do uso de drogas como maconha e crack para o aumento da capacidade de trabalho durante o corte da cana.”. O tal acordo não toca neste assunto, a não ser quando prevê “eliminar a vinculação da remuneração dos serviços de transporte de trabalhadores, administração e fiscalização, executados pelas próprias empresas ou por terceiros, à remuneração dos trabalhadores no corte manual da cana-de-açúcar”, reduzindo desse “tantinho” o círculo das sanguessugas.
CPT – Você acha que o acordo vai inibir o trabalho escravo que vem cada vez mais aumentando nos canaviais? Este pacto vai contribuir na atuação do grupo móvel?
XP: Metade dos trabalhadores resgatados da escravidão no Brasil pelo Grupo Móvel de Fiscalização foi retirada de canaviais. Foram 3.060 em 2007 (51%), 2.553 em 2008 (48%) e já são 951 em 2009 (52%), uma progressão considerável se comparada aos anos anteriores (1.605 cortadores de cana haviam sido libertados entre 2003 e 2006, ou 10% dos escravos resgatados neste período) e um sinal forte quanto à gravidade do problema e à necessidade de intensificar a fiscalização ainda mais. Constatar a jornada exaustiva e as condições degradantes em que se realiza o corte da cana virou rotina em Goiás, Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Pernambuco e não poupou até o Pará. Quando flagrada, essa situação, nos termos do Código Penal Brasileiro (art. 149), entre outras mais, atrai a qualificação legal de situação análoga à de escravo, justificando a interrupção imediata dos trabalhos e a rescisão dos contratos pelo Grupo Móvel de Fiscalização, cujas missões envolvem fiscais do trabalho, procuradores e policiais federais. Só vejo um aspecto pelo qual este acordo poderia contribuir na concretização das normas protetoras e na efetivação do seu controle: ninguém poderá alegar a ignorância da norma (se é que podia antes!). Confessamos que isso é de menos. Espero que este falso pacto não venha servir de pretexto para justificar a priori seus assinantes e dispensar a fiscalização. Seria o cúmulo. Qualquer acordo judicial ou qualquer compromisso firmado via Termo de Ajustamento de Conduta prevê, pelo menos, alguma contrapartida e sanciona a não-observância das chamadas “obrigações de fazer ou não fazer”. Inibir o avanço do trabalho escravo sem tocar no bojo da exploração (a produtividade) é sonho. Não bastaria inclusive inibir: queremos é erradicar. Para isso a mobilização social, a organização da categoria, a prevenção, a fiscalização e a repressão são incontornáveis. Como faziam antigamente certos setores da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) no Pará (com seu apelo ao princípio da dupla visita: na primeira, o fiscal não autua, mas orienta o produtor… a não escravizar; na segunda, sim, se persistir o crime, ele autua), os usineiros gostariam de encontrar mais mansidão na atuação dos fiscais e hoje são violentas as pressões para atenuar o rigor da fiscalização do Grupo Móvel. Há quem sugira a substituição do fiscal do Grupo Móvel por um procurador do Ministério Público do Trabalho (cuja competência obviamente é outra) e quem sonhe em manter ambos longe do canavial, pela magia da assinatura de um cheque em branco.
CPT – Na sua avaliação o governo tem instrumentos capazes de monitorar este pacto?
XP: O que há mesmo para ser monitorado neste “pacto”? Que a lei do Brasil está sendo cumprida em todo o seu território! Os instrumentos disponíveis para averiguar o cumprimento da lei são os bem conhecidos, dos quais não há como abrir mão: vigilância dos trabalhadores, dos sindicatos, da sociedade; atenção redobrada do poder público, na figura do órgão fiscalizador do trabalho e do Ministério Público do Trabalho (guardião dos direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis dos trabalhadores). É preciso acionar o poder público por meio de denúncias consistentes e cobrar uma capacidade de fiscalização à altura do desafio. Ainda estamos longe disso.
CPT- O que seria importante para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores submetidos, por falta de alternativas, à migração e a trabalho análogo ao de escravo?
XP: Dentro do modelo de produção sucroalcooleiro brasileiro, historicamente estabelecido em base concentrada, poderosamente entranhado no Estado, totalmente voltado para a garantia do lucro máximo, sem dor pelos impactos ambientais e sociais, as chances de melhoria são mínimas. Gerar alternativas de vida digna – não somente decente – nas regiões de origem desses “escravos da precisão” seria uma primeira necessidade que, por sua vez, ecoa em outras: reforma agrária, educação e desenvolvimento local. Abolir o pagamento por produção seria outra. Definir pisos nacionais garantidos. Rever fundamentalmente o modelo de produção, em termos compatíveis com o equilíbrio ambiental e as exigências de dignidade para trabalhadores/as e suas famílias. Na questão do trabalho escravo como um todo, a solução não pode vir da eliminação dos efeitos colaterais, mas sim das causas.
Entrevista da CPT/NE, Comissão Pastoral da Terra – Regional NE, publicada pelo EcoDebate, 02/07/2009
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As críticas estão corretas.Faltou, porém, analisar a participação da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp)nesse conluio.