Fibroína de seda é base de biomateriais
Ela vem sendo testada em válvulas cardíacas e nodesenvolvimentode culturas de tecidos e células
Bicho-da-seda da espécie Bombyx mori (Foto: Antoninho Perri/ Divulgação)
Pesquisadores da Unicamp vêm obtendo resultados promissores no desenvolvimento de biomateriais com fibroína de seda, que já começam a ser testados no Instituto do Coração (InCor) da USP para proteger válvulas cardíacas da calcificação, e na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para a cultura de células e tecidos in vitro. A fibroína de seda ainda é pouco estudada na área de biomateriais, inclusive mundialmente, e motivou uma linha de pesquisa da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) que corre há apenas quatro anos.
Aranha da espécie Nephila clavipes (Foto: Antoninho Perri)
Segundo a professora Marisa Masumi Beppu, da FEQ, a origem dos estudos que ela coordena está na necessidade de aumentar a vida útil e a eficácia das válvulas cardíacas, que geralmente são recortadas do pericárdio (tecido que reveste o coração) bovino ou suíno e implantadas assim, diretamente. “A maior causa de falhas nas válvulas é a calcificação. A idéia inicial do InCor era desenvolver um processo de secagem do material orgânico, permitindo seu armazenamento até o transplante, mas o resultado foi uma superfície extremamente rugosa que favorece a calcificação”.
Surgiu daí um projeto temático financiado pela Fapesp visando meios de recobrir o pericárdio com biopolímeros para protegê-lo da calcificação. Dele participam a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP (com os professores Bronislaw Polakievicz e Ronaldo Pitombo), InCor, Unicamp e Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). “Um biopolímero com propriedades mecânicas e químicas adequadas e que evite a rugosidade vai dar maior sobrevida à válvula cardíaca. Na FEQ, testamos também a quitosana, mas os estudos evoluíram com a fibroína de seda”.
Marisa Beppu orientou o primeiro estudo brasileiro focando a fibroína como biomaterial, no mestrado da pesquisadora Grinia Michelle Nogueira, que defendeu doutorado sobre o mesmo tema no início deste ano e agora faz o pós-doutorado no MIT (Massachusetts Institute of Technology, EUA). Suas pesquisas resultaram em patentes do método de isolamento da fibroína e de uma membrana de seda porosa junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).
A docente da Unicamp explica que o fio de seda é composto por duas proteínas: a fibroína, responsável pela resistência mecânica, e a sericina, espécie de goma que faz a liga entre fios. Enquanto a literatura descreve processos demorados e complicados para produzir membranas de fibroína, Grinia Nogueira conseguiu reduzir o tempo de separação de quatro dias para meia hora, permitindo o uso do material em escala industrial, e sem recorrer a elementos tóxicos, o que assegura a biocompatibilidade.
Além da membrana de seda porosa, interessante por possibilitar a semeadura de células em sua superfície, também foi produzida uma membrana densa – a que está em testes como cobertura das válvulas cardíacas de pericárdio animal. “Ainda não temos resultados conclusivos in vivo do InCor, que está avaliando a reação do material recobrindo implantes feitos em carneiros. O que posso afirmar é que os nossos ensaios in vitro indicaram uma diminuição expressiva da calcificação”.
No dia anterior a esta entrevista, Marisa Beppu recebeu mensagem dos pesquisadores da Unifesp informando que estavam iniciando os testes de crescimento celular sobre a membrana de seda porosa. É um trabalho que se dá no contexto do INCT – Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia – em Biofabricação (Biofrabris), lançado recentemente pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). “Eles tentarão semear células-tronco retiradas de adultos nos poros da membrana. A expectativa é grande em relação a esse resultado”.
Da esq. pra dir., Raquel Farias Weska, Mariana Ferreira Silva e Mariana Agostini de Moraes: linha de pesquisa gera teses e dissertações (Foto: Antoninho Perri)
A professora e sua equipe, futuramente, esperam produzir uma parede de coração ou uma pele, mas há dentistas no projeto interessados em fazer crescer, por exemplo, um dente, que possui várias camadas de tecidos diferentes. “O que a engenharia tecidual busca hoje são os chamados scaffolds – matrizes tridimensionais cheias de poros para as células crescerem. O sonho de todo pesquisador da área é colocar este suporte com as células no interior de um pequeno biorreator e ver sair uma orelha ou nariz”, brinca.
Seguimento
Raquel Farias Weska, que está iniciando o doutorado, seguiu os passos de Grinia Nogueira e dedicou parte do seu mestrado ao estudo da reação das membranas de seda à esterilização. Um grande problema nos biopolímeros é que a maioria não tolera temperaturas acima de 60 graus. “As membranas passaram por cinco métodos de esterilização usados comumente e, basicamente, não ocorreu degradação; apenas uma mudança na conformação molecular da fibroína, o que pode ser uma característica interessante, dependendo da aplicação”.
As membranas resistiram inclusive à autoclavagem, processo em que o material é submetido a vapor com temperatura de 121ºC e que dura de 15 a 30 minutos – e, por isso, mais utilizada para a esterilização de instrumentos cirúrgicos. “Se colocarmos o pericárdio bovino ou suíno na autoclave, ele vai cozinhar, literalmente. As membranas de fribroína mostraram-se realmente versáteis”, observa a professora Marisa Beppu.
Na outra parte do mestrado concluído no início do ano, Raquel Weska estudou a deposição de fosfato de cálcio nas membranas densa e porosa, avaliando sua possível aplicação como biomaterial da parte óssea, posteriormente in vivo. “Agora, no doutorado, vou continuar pesquisando a fibroína de seda, provavelmente na área de scaffolds para engenharia tecidual”.
Blendas
A professora Marisa Masumi Beppu (acima), coordenadora das pesquisas: “Nossos ensaios in vitro indicaram uma diminuição expressiva da calcificação” (Foto: Antoninho Perri)
Mariana Agostini de Moraes, também integrante do grupo de pesquisa, está começando o mestrado no propósito de misturar a fibroína com o alginato (extraído de algas), outro biopolímero que apresenta grande potencial para o crescimento de tecidos. “A mistura é uma tentativa de conjugar propriedades das duas proteínas. Já existem curativos comercializados com o alginato, devido à sua resposta bastante satisfatória na cicatrização de feridas, assim como a fibroína. Juntas, a resposta pode ser ainda melhor”.
Para produzir as blendas, Mariana Moraes vem misturando as soluções dissolvidas e, também, incorporando fios de fibroína à solução de alginato a fim de aprimorar a resistência mecânica. A associação da fibroína de seda com outros biopolímeros é uma área de pesquisa praticamente inédita e, de acordo com Marisa Beppu, os resultados têm sido animadores. “É possível chegar a um curativo com boa resistência e que contenha um princípio ativo que acelere a regeneração”.
Mariana Ferreira Silva, aluna de iniciação científica, vai cuidar de outro viés da linha de pesquisa mesclando a fibroína com plastificantes. O objetivo é aumentar a plasticidade da membrana de seda que, por ser densa, se rompe quando esticada. Com a propriedade de deformação que os plásticos possuem, a aplicação da fibroína de seda se tornaria mais interessante.
A professora Marisa Beppu atenta que estas pesquisas, em boa parte, ainda se limitam a desbravar as propriedades que a fibroína pode oferecer, resultando em material para testes in vitro ou in vivo em instituições parceiras. “Tudo isso nasceu em 2005, mas já notamos a boa repercussão em congressos no exterior. Acredito que logo teremos muitos pesquisadores se embrenhando nos componentes da seda”.
Aranhas
Em sua dissertação de mestrado, a pesquisadora Raquel Weska conta que as sedas produzidas pelo bicho-da-seda domesticado (Bombyx mori) e por aranhas do gênero Nephila, como a Nephila clavipes, são as mais estudadas no intuito de compreender o mecanismo de processamento e explorar as propriedades destas proteínas como biomaterial. Elas apresentam propriedades mecânicas surpreendentes, além de serem biocompatíveis e modificáveis quimicamente.
A professora Marisa Beppu trabalhava em uma multinacional da área química, quando a empresa tentou reproduzir a fibroína de aranha em laboratório. “Na época, só se falava em fibroína e suas propriedades. Imaginavam uma corda feita de teia, superresistente, mas acabaram desistindo porque é muito difícil replicar o que a aranha faz naturalmente: alinhar todas as moléculas de maneira a dar resistência mecânica ao material”.
Imagem microscópica : superfície da membrana porosa de fibroína de seda, que facilita o depósito e o crescimento de células (Foto: Divulgação)
De qualquer forma, a natureza das aranhas inviabiliza seu confinamento e a extração de fibroína em escala. Já os fios do bicho-da-seda são utilizados comercialmente para suturas biomédicas há décadas, e na produção têxtil há séculos, graças a grandes safras da atividade que ganhou até denominação própria: a sericultura, facilitada pelo fato de que as larvas poderem ser mantidas em altas densidades.
Dados levantados por Raquel Weska apontam que a produção mundial de seda subiu de cerca de 100 mil toneladas em 2000 para 150 mil toneladas em 2008, sendo que a China responde por 70% do total. “Embora venha bem abaixo, o Brasil ocupa o segundo lugar, tendo o Paraná como maior produtor, seguido de São Paulo e Mato Grosso do Sul”.
Afora a área médica, a fibroína de seda está praticamente limitada à área têxtil, onde o consumo já havia caído consideravelmente quando o náilon invadiu o mercado. Entretanto, na opinião de Marisa Beppu, a baixa produção não seria um fator limitante, caso os biomateriais em estudo sejam viabilizados economicamente. “Certamente, surgiriam várias cooperativas voltadas a uma cultura relativamente simples, que pede basicamente as folhas da amoreira e as larvas”.
Em seu laboratório na FEQ, a docente recebe seda de uma cooperativa de Bastos (SP), mas afirma que as membranas de fibroína podem ser produzidas apenas com o que seria considerado como refugo do produto. “Se a indústria têxtil necessita de fios longos para a fiação, nós preferimos justamente as rebarbas para solubilizá-las e realizar os demais processos de laboratório ”.
Matéria de Luiz Sugimoto, do Jornal da Unicamp, publicada pelo EcoDebate, 24/06/2009
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