Governos não se prepararam para enfrentar crescente virulência da natureza, por Gabriel Brito e Valéria Nader
Com as torrenciais e seqüenciais chuvas que afligiram o Nordeste nas últimas semanas, mais uma vez a catástrofe nacional foi exposta sem atenuantes aos olhos de toda a população. Trata-se da segunda demonstração de fúria da natureza nos últimos seis meses, e em proporções similares à primeira, no caso as enchentes que atingiram impiedosamente o estado de Santa Catarina.
Atento ao fato de não se tratar de fenômenos isolados, o Correio da Cidadania conversou com Silvio Sant’Ana, diretor do Grupo Esquel, que estuda alternativas de sustentabilidade econômica, reconhecido pelo Centro Nacional de Pesquisa – CNPq.
Além de confirmar que não se trata de acontecimentos meramente ocasionais e inevitáveis, Sant’Ana reforça a crescente idéia de não ser possível manter os atuais conceitos de desenvolvimento e modo de vida da humanidade. Por fim, critica o governo, que não costuma levar devidamente a sério os alertas do IPCC, trabalhando em “baixo-nulo estado de alerta”.
Correio da Cidadania: Primeiramente, o que você diria que levou à ocorrência de chuvas tão violentas no Norte/Nordeste brasileiro? Acredita que estejam associadas primordialmente a contingências naturais ou há outros fatores preponderantes envolvidos?
Silvio Sant’Ana: Creio que devemos debitar estes fenômenos na conta das mudanças climáticas. Veja que historicamente ocorreram enchentes no sertão e grandes cheias no norte. Mas não na freqüência e no volume que estamos vendo (pelo menos no caso do Nordeste). Existem modelos e cenários bastante seguros que prevêem este tipo de ocorrência.
CC: O meteorologista Carlos Nobre, do Instituto de Pesquisas Espaciais, disse realmente que, apesar das secas e chuvas intensas no norte, os “fenômenos são mais fortes do que no passado. Esse é um quadro muito característico de um planeta que está esquentando”. Sendo assim, essas chuvas podem ser consideradas uma das primeiras grandes conseqüências vividas pelo país por conta do aquecimento global?
SS: As chuvas são reflexo disso, mas também as secas e os ciclones no Sul. Há também indicativos de maior instabilidade e variedade no regime de chuvas no Centro-Oeste, bem como significativos aumentos de temperatura (principalmente nas mínimas).
CC: Como o fenômeno, ou desastre, se associa às secas no Sul?
SS: Não tenho tantos conhecimentos nesse sentido. Tradicionalmente se dizia que um “El Niño” no Nordeste implicava em secas, e no sul em enchentes; e, com “La Niña”, teríamos o contrário. Ora, não houve configuração clara de um “niño” ou “niña” e estamos com secas e enchentes como se tivéssemos vivendo uma “La Niña”. Os amigos do INPE poderiam esclarecer isto com mais segurança.
CC: Apesar de o volume de chuvas ser realmente altíssimo, os serviços meteorológicos já previam, há cerca de pelo menos dois meses, que elas seriam fortes. Podemos dizer que estamos diante de mais um capítulo da famigerada tradição nacional de só tratar dos problemas após os desastres se consumarem?
SS: Neste assunto temos um problema complexo. Nossos sistemas de previsão ainda estão deficientes. Não conseguimos prever com segurança volumes exatos, estimamos que podem ser “abaixo” ou “acima” da média, mas não temos segurança para afirmar quanto mais acima ou abaixo.
Por outro lado, serviços governamentais quase sempre esperam que previsões negativas não se confirmem e, portanto, se mantêm, no melhor dos casos, em “baixo-nulo estado de alerta”. Argumentam, por exemplo, que, se avisarem sobre uma “alta probabilidade de enchente”, agentes econômicos e sociais podem paralisar suas atividades, gerando desemprego etc. E caso o fenômeno não se confirme, poderão culpabilizar o órgão governamental pelos prejuízos.
Parece que após as tragédias fica mais fácil para o governo atuar.
CC: Como, ademais, o atual governo se associa a esta tradição a seu ver? Estando a região localizada na chamada zona intertropical, não haveria como ter sido realizado um trabalho preventivo, que incluísse infra-estrutura, há muito tempo?
SS: Salvo algumas ilhas de excelência, o atual governo herdou uma estrutura institucional “montada”. No melhor dizer, desmontada, fragilizada. E ainda está tentando reorganizar o Estado brasileiro. Na questão da mudança climática, a política geral que vinha sendo implantada (desde 1992) continuou preocupada com o tema da redução de emissões e desleixou quase completamente a questão de preparação da população, redução de vulnerabilidade (em geral), e o desenvolvimento de mecanismos de adaptação às mudanças.
Em segundo lugar, a dimensão, freqüência e virulência dos fenômenos são cada vez maiores. Isto significa que as “culturas” corporativas das instituições e órgãos vinculados a estas questões estavam “sucateadas” e/ou continuam operando como se estes fenômenos fossem iguais aos anteriores.
Esta situação se repete em várias instâncias do governo atual. Muitos planejadores, gestores de políticas, formadores de opinião, não conseguem nem perceber a gravidade do problema. Tem muita gente no governo que ainda acredita que os cenários do IPCC são falsos (futurologia barata), “coisa de ONGs ambientalistas”, ou que no futuro a humanidade descobrirá uma meio de mudar tudo isso.
CC: O que pensa, de todo modo, das medidas emergenciais que estão sendo agora forçosamente tomadas pelo governo?
SS: São convencionais e têm ainda pouca aderência com propostas de adaptação e redução de vulnerabilidade. O exemplo que me parece trágico é o de você abrigar famílias em escolas; milhares, talvez milhões, de estudantes já estão com este ano acadêmico destruído. Os prejuízos sociais e econômicos são imensos.
Ora, estes fenômenos serão mais freqüentes, repetir-se-ão (se não for enchente, pode ser uma seca ou um ciclone). Continuaremos usando escolas como abrigos? Como assegurar a segurança alimentar de uma população? – não só a “flagelada”. Fazendo campanhas públicas de coletas de alimentos ou repensando a rede de armazenamento e estocagem do país?
CC: Há como solucionar de fato, a longo prazo, essa ordem de catástrofes ambientais sem uma mudança de mentalidade sobre o desenvolvimento? Você acredita que a humanidade possa caminhar para essa mudança?
SS: Na há possibilidade. Continuar operando como se as coisas fossem “seguir como sempre” é uma ilusão. Estamos sendo obrigados a repensar todo nosso modo de vida. E se não atuarmos desde já, os efeitos serão devastadores.
Não se pode perder de vista que o fenômeno é global. Não é algo que acontece aqui ou ali. Acontece em todos os locais e ao mesmo tempo. Muita gente pode pensar que o degelo dos Andes nada tem a ver com o Brasil. Mas como milhões de irmãos latino-americanos vão sobreviver sem as áreas irrigadas com as águas do degelo?
Acredito que conseguiremos – como humanidade – caminhar para esta mudança. Já começamos, afirmando que um novo mundo é possível.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
* Entrevista publicada no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[EcoDebate, 27/05/2009]
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