Patrimônio Cultural: um aspecto negligenciado nos Estudos de Impacto Ambiental, artigo de Marcos Paulo de Souza Miranda
[EcoDebate] Como se sabe, o ordenamento jurídico brasileiro, por força do princípio da prevenção, exige a elaboração de estudo prévio de impacto ao meio ambiente para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental (art. 225, § 1º, IV da CF/88 e art. 10, caput, da Lei 6.938/81).
Como instrumento jurídico composto por elementos técnicos interdisciplinares o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) tem como objetivo prever e prevenir danos ambientais, norteando a escolha da melhor alternativa para se evitar, eliminar ou reduzir os efeitos prejudiciais decorrentes do empreendimento proposto
Tendo em vista que o patrimônio cultural integra o conceito amplo de meio ambiente, obviamente que todos os impactos sobre os bens culturais materiais (tais como cavernas, sítios arqueológicos e paleontológicos, prédios históricos, conjuntos urbanos, monumentos paisagísticos e geológicos) e imateriais1 (tais como os modos de viver, de fazer e se expressar tradicionais, os lugares e referenciais de memória) devem ser devidamente avaliados para se averiguar a viabilidade do empreendimento e para se propor as correspondentes medidas mitigadoras e compensatórias. Em razão disso, podemos afirmar que o processo de licenciamento ambiental é um instrumento de acautelamento e proteção também do patrimônio cultural, encontrando fundamento no art. 216, § 1º, in fine, c/c art. 225, § 1º, IV da nossa Carta Magna.
A destruição de ruínas históricas para a abertura de uma rodovia; a alteração dos modos de vida tradicionais e das relações socioculturais em decorrência do reassentamento de uma comunidade inteira para a construção de uma hidrelétrica; os impactos paisagísticos e a perda de referenciais geográficos e de memória da cultura popular provocados em uma montanha por atividades minerárias; a supressão de uma cachoeira que constitui importante atrativo turístico e ponto de convivência social para a construção de um dique, são alguns casos concretos em que restam evidentes danos em detrimento do chamado meio ambiente cultural.
Exatamente por isso a Resolução CONAMA 01/86 estabelece em seu art. 6º. que o estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas: I – Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto, considerando: … c) o meio sócio-econômico – o uso e ocupação do solo, os usos da água e a sócio-economia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos.
Entretanto, apesar da expressa previsão legal, percebe-se que na maioria das vezes os estudos de impacto ambiental negligenciam a análise dos impactos negativos causados aos bens culturais, relegando-os a uma condição de segunda importância. Também se verifica que muitas das equipes técnicas responsáveis pelos levantamentos não contam com profissionais capacitados para detectar adequadamente esses impactos (tais como arqueólogos, historiadores, antropólogos, arquitetos, geógrafos etc), apesar da expressa exigência legal da multidisciplinariedade técnica e da habilitação constante do art. 7º da Res. CONAMA 01/86 e art. 11 da Res. 237/97.
Esse tipo de conduta é extremamente grave na medida em que expõe a risco o direito da coletividade conhecer e fruir integralmente, de forma hígida, o seu patrimônio cultural, bem expressamente protegido pela Constituição Federal vigente.
Uma vez comprovada a omissão ou negligência, tal fato pode redundar na suspensão ou cassação administrativa da licença ambiental indevidamente concedida (art. 19, II, da Res. CONAMA 237/97) ou mesmo no reconhecimento judicial de nulidade dos estudos de impacto ambiental, porque pode e deve o Poder Judiciário efetuar o controle sobre o conteúdo do EIA2, inclusive no tocante à consistência técnica e científica das análises empreendidas pela equipe que o elaborou, uma vez que:
A realização de todas as análises e avaliações previstas na Resolução 001/86 do CONAMA como integrantes do conteúdo do estudo de impacto ambiental mostra-se de fundamental importância, pois o descuido do EIA no tocante a qualquer dos pontos indicados nos arts. 5º e 6º compromete, no final das contas, a validade de todo o processo de licenciamento ambiental ao qual se encontra atrelado.
Com efeito, via de regra, o estudo de impacto ambiental é exigido como condição para o licenciamento de obras, atividades e empreendimentos potencialmente causadores de significativa degradação ambiental. O EIA, assim,, integra o processo de licenciamento ambiental previstos nos arts. 9°, IV, e 10 da Lei 6938/81, nos arts. 17 e 19 do Decreto 99.274/90 e na Resolução 237/97 do CONAMA, devendo ser exigido para a expedição da denominada licença ambiental prévia, ato administrativo inicial do procedimento que atesta a viabilidade ambiental do empreendimento.
Assim, a ausência do EIA, quando exigível, ou a sua inadequada realização, pela inobservância do seu conteúdo mínimo obrigatório, acarreta a possibilidade de invalidação de todo o processo de licenciamento em andamento ou já concluído e, por via de conseqüência, da instalação, da entrada em operação e do prosseguimento da obra ou atividade licenciada.
Tanto no caso de inexistência do EIA, quanto no caso de insuficiência do EIA, o vício que essas irregularidades acarretam ao processo de licenciamento é de natureza substancial. Conseqüentemente, inexistente ou insuficiente o estudo de impacto, não pode a obra ou atividade ser licenciada e se, por acaso, já tiver havido o licenciamento, este será inválido.3
Ademais disso, tal conduta pode ainda implicar na responsabilização penal dos empreendedores e profissionais incumbidos dos estudos de impacto ambiental (art. 69-A da Lei 9605/98, com pena de reclusão de três a seis anos e multa4), sem prejuízo da responsabilização cível, na modalidade objetiva, pelos danos materiais e morais eventualmente causados.
Quanto à exigência de licenciamento ambiental, as Resoluções CONAMA 01/86 e 237/97 enumeram, exemplificativamente, algumas atividades e empreendimentos que demandam a obtenção do mesmo, tais como: lavra a céu aberto, inclusive de aluvião, com ou sem beneficiamento; fabricação de aço e de produtos siderúrgicos; barragens e diques.
Entretanto, existem alguns locais e ambientes que, pelas suas peculiaridades, vulnerabilidade e relevância, sempre vão exigir a realização de EIA/RIMA para a implantação e desenvolvimento de quaisquer empreendimentos ou atividades impactantes.
É esse o caso5 das Áreas de Relevância do Patrimônio Natural e Cultural (picos e/ou monumentos naturais; núcleos históricos, ruínas e sítios arqueológicos);6 Terrenos Cársticos (formados pela dissolução das rochas pelas águas, onde ocorrem cavernas e rios subterrâneos7); Áreas de ocorrência de populações tradicionais (áreas, demarcadas ou não, onde ocorrem populações indígenas, remanescentes de quilombos e outros grupos sociais organizados de forma tradicional e historicamente ligados a uma região).
Os estudos de impacto ambiental são de fundamental importância para se verificar a viabilidade locacional de determinado empreendimento (v.g., indicar a necessidade da adequação do local de barramento de uma hidrelétrica para se evitar a destruição de um sítio arqueológico de grande importância), bem como para se estabelecer medidas mitigadoras (v.g., implantação subterrânea de linha de transmissão elétrica para minimizar o impacto paisagístico a um sítio de valor cultural e turístico), e compensatórias (v.g. a restauração de uma construção histórica, de reconhecido valor cultural, como compensação pelo desmonte de um sítio arqueológico), de forma a compatibilizar o exercício das atividades econômicas com a preservação do patrimônio cultural brasileiro8 (pertencente às presentes e futuras gerações), alcançando-se, desta forma, o desejável desenvolvimento sustentável.
CONCLUSÕES:
No processo de licenciamento ambiental deverão ser obrigatoriamente analisados todos os impactos sobre os bens culturais materiais e imateriais para se averiguar a viabilidade do empreendimento e se propor as correspondentes medidas mitigadoras e compensatórias.
As equipes técnicas responsáveis pelos estudos ambientais devem obrigatoriamente contar com profissionais capacitados para detectar adequadamente os impactos ao patrimônio cultural (tais como arqueólogos, historiadores, antropólogos, arquitetos, geógrafos etc).
A omissão ou análise insuficiente dos impactos causados ao patrimônio cultural pode redundar na suspensão ou cassação administrativa da licença ambiental indevidamente concedida, no reconhecimento judicial de nulidade dos estudos de impacto ambiental, na responsabilização penal dos empreendedores e profissionais incumbidos dos estudos, sem prejuízo da responsabilização cível, na modalidade objetiva, pelos danos materiais e morais eventualmente causados.
Existem alguns locais e ambientes que, pelas suas peculiaridades, vulnerabilidade e relevância, sempre vão exigir a realização de EIA/RIMA para a implantação e desenvolvimento de quaisquer empreendimentos ou atividades impactantes. É esse o caso das Áreas de Relevância do Patrimônio Natural e Cultural (picos e/ou monumentos naturais; núcleos históricos, zona costeira, ruínas e sítios arqueológicos); Terrenos Cársticos (formados pela dissolução das rochas pelas águas, onde ocorrem cavernas e rios subterrâneos); Áreas de ocorrência de populações tradicionais (áreas, demarcadas ou não, onde ocorrem populações indígenas, remanescentes de quilombos e outros grupos sociais organizados de forma tradicional e historicamente ligados a uma região).
Os estudos de impacto ambiental – com a devida análise dos aspectos relativos ao patrimônio cultural – são de fundamental importância para se verificar a viabilidade locacional de determinado empreendimento bem como para se estabelecer medidas mitigadoras e compensatórias, de forma a compatibilizar o exercício das atividades econômicas com a preservação do patrimônio ambiental e cultural brasileiro, alcançando-se o desejável desenvolvimento sustentável.
1 Em meados da década de 1980 analistas do Banco Mundial escreviam: “o número extremamente pequeno de projetos nos quais se reconheceu a necessidade de examinar fenômenos culturais mostra que a questão não se resume a desenvolver uma política ou um conjunto adequado de diretrizes para tratar do tema, mas é necessária maior conscientização sobre a importância do patrimônio cultural na formulação de projetos” GOODLAND, R. e WEBB, M. The management of cultural property in World-Bank assisted projects Archaelogical, historical, religious, and natural unique sites. World Bank Technical papel, n. 62, p. 102, 1987.
2 Revelando-se o custo social, na relação entre custo e benefício de empreendimento econômico impactante no meio ambiente, superior ao proveito econômico particular, deve prevalecer a preservação ambiental. Em linha de princípio, o Poder Judiciário controla somente o aspecto da legalidade estrita do ato administrativo, ou seja, o plano da validade do mesmo. Todavia, em se tratando de direitos da terceira geração, envolvendo interesses difusos e coletivos, como ocorre com afetação negativa do meio ambiente, o controle deve ser da legalidade ampla. Se o ato administrativo afronta princípio constitucional, não pode prevalecer. (TJMG – Ap. Civ. 1.0194.03.031452-1/004(1) – Rel. Des. Caetano Levi – j. 14/02/2006).
3 MIRRA, Álva Luiz Valery. O controle judicial do conteúdo dos estudos de impacto ambiental. In: Direito Ambiental em Evolução 4. Coord: FREITAS, Vladimir Passos de. Curitiba: Juruá, 2005. p. 47.
4 Elaborar ou apresentar, no licenciamento, concessão florestal ou qualquer outro procedimento administrativo, estudo, laudo ou relatório ambiental total ou parcialmente falso ou enganoso, inclusive por omissão.
5 Manual de Normas e Procedimentos para Licenciamento Ambiental no Setor de Extração Mineral, 2001, apud SANCHES, Luis Enrique. Avaliação de Impacto Ambiental. Conceitos e Métodos. São Paulo: Oficina de Textos. 2006. p. 118.
6 De acordo com o art. 2º. da Resolução CONAMA 13/90, nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota, deverá ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental competente, com prévia autorização do responsável pela administração da Unidade de Conservação. A Lei 7661/88 exige EIA/RIMA para empreendimentos e atividades que pretendam se localizar na Zona Costeira, onde se assegura prioridade à conservação e proteção dos “monumentos que integrem o patrimônio natural, histórico, paleontológico, espeleológico, étnico, cultural e paisagístico”. A Resolução CONAMA nº 010, de 14 de dezembro de 1988, que dispõe sobre as Áreas de Proteção Ambiental (APAs), estabelece: Art. 6º – Não são permitidas nas APA’S as atividades de terraplanagem, mineração, dragagem e escavação que venham a causar danos ou degradação do meio ambiente e/ou perigo para pessoas ou para a biota. Parágrafo Único – As atividades acima referidas, num raio mínimo de 1.000 (mil) metros no entorno de cavernas, corredeiras, cachoeiras, monumentos naturais, testemunhos geológicos e outras situações semelhantes, dependerão de prévia aprovação de estudos de impacto ambiental e de licenciamento especial, pela entidade administradora da APA.
7 O Decreto 99.556/90 reconhece a obrigatoriedade de elaboração de estudo de impacto ambiental para as ações ou os empreendimentos previstos em áreas de ocorrência de cavidades naturais subterrâneas ou de potencial espeleológico.
8 AÇÃO CIVIL PÚBLICA – LIMINAR DEFERIDA – PARALISAÇÃO DE OBRAS DESTINADAS AO REFLORESTAMENTO DE PINUS – INDÍCIOS DE SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS – DECISÃO CONFIRMADA AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO – I – O dever de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do qual faz parte o patrimônio público cultural, incumbe ao Poder Público, em todas as esferas, federal, estadual e municipal e à toda coletividade. II – Constatada na Fazenda Três Pinheiros, de propriedade da agravante, indícios de sítios arqueológicos, a paralisação das obras de reflorestamento, deve ser mantida, até que fique demonstrada que a sua retomada não causa prejuízo ao estudo e pesquisa do patrimônio público cultural. (TJPR – Ag. Instr. 0149999-2 – (24371) – Arapoti – 2ª C.Cív. – Rel. Des. Hirosê Zeni – DJPR 06.12.2004).
* Artigo enviado por Fernando Barreto Junior, Promotor de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural do Ministério Público do Maranhão, colaborador e articulista do EcoDebate
[EcoDebate, 12/05/2009]
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