Reflexões sobre o Código Florestal e uma proposta de mudança, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
[EcoDebate] O Código Florestal brasileiro, versão de 1965, foi e continua sendo um ilustre desconhecido, assim como centenas e talvez milhares de outras leis. Se é da natureza humana certa ojeriza aos instrumentos de controle, também, no nosso caso, nem os especialistas conseguem dar conta de acompanhar a profusão com que as leis são criadas. Sem falar nas resoluções e portarias, nas superposições e no excesso de detalhamento. Parece que nossos legisladores não fazem leis para a sociedade, mas para satisfação de suas próprias vaidades e/ou interesses.
O Código Florestal, com 45 anos de vida, se já divorciado de conhecimentos científicos da época, tem artigos que ficariam muito bem num relato histórico para mostrar os avanços da ciência e da tecnologia. Se quando foi feito, as larguras das faixas de proteção de rios e córregos, por exemplo, foram estabelecidas no chute, imaginem os seus significados nos dias de hoje, com os instrumentos e conhecimentos que temos par caracterizar os ecossistemas brasileiros e determinar os procedimentos necessários para suas conservações. Qualquer pessoa, com um mínimo de informações sobre as variabilidades das paisagens brasileiras, será capaz de estranhar que uma mesma regra seja aplicável ao país inteiro. O próprio ministro do Meio Ambiente já disse, há pouco, que “o Brasil não é um samba de uma nota só, o verde da bandeira não é apenas da Amazônia, é do Pantanal, da Caatinga, do Cerrado, da Mata Atlântica e do Pampa”. Se pudermos colocar de lado as paixões, as ideologias, as teimosias e até mesmo os falsos especialistas, que sempre aparecem quando um assunto vira moda, poderemos usar conhecimentos científicos já disponíveis para embasar as sugestões que vamos dar nos parágrafos seguintes.
Para resolver problemas urgentes e relativos às dificuldades e até mesmo impossibilidades de aplicação de alguns artigos do atual Código Florestal, poderão ser feitas pequenas adaptações, com propostas já aceitas, pelo menos em parte, pelos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. O Congresso tem feito debates frequentes sobre o assunto e é até possível que alguma coisa apareça ainda este ano, já que alguns artigos do Código não resistem mais às pressões de parte da sociedade e, o mais importante, não se sustentam sob aspectos científicos e técnicos.
Mas o assunto não poderá morrer com os prováveis remendos. Temos que partir para a aprovação de um Código Ambiental Brasileiro que estabeleça diretrizes gerais, descentralizando a formulação de exigências relativas a ecossistemas específicos de diferentes regiões brasileiras. Não dá mais para o meio ambiente ser tratado por algumas poucas cabeças coroadas de Brasília. Um bom exemplo de descentralização, elogiado até pelos mais embirrados defensores do atual Código Florestal, é o da Lei das Águas (Lei Federal No 9.433), que por ser bem mais recente, 1997, traz conceitos e concepções baseados em entendimentos modernos de gerenciamento ambiental, ou seja, delega a Comitês, formados por representantes (eleitos) de instituições públicas, de empresas e de segmentos da sociedade organizada, a tarefa de definir o que pode ou não pode ser feito, as prioridades, as formas de execução das medidas aprovadas e a fiscalização dos procedimentos executados.
Com base na experiência citada, o Código Ambiental poderia adotar os biomas, por exemplo, como unidades básicas de planejamento, assim como a Lei das Águas indica a bacia hidrográfica para tal. Os seis grandes biomas reconhecidos atualmente (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal) poderiam ser subdivididos em ecossistemas ou outras formas de arranjos ambientais (as grandes bacias hidrográficas, por exemplo, são subdivididas em sub-bacias). Cada unidade teria um Comitê Ambiental, responsável por detalhar o Código para sua área de influência, criando uma política de uso racional dos recursos naturais, as exigências e as normas, ou seja, as “leis” referentes às respectivas unidades e que passariam a compor Anexos do Código.
O novo Código, portanto, com participação da sociedade envolvida naquele ambiente, eliminaria, por exemplo, a reclamação de muitos produtores rurais, que desejam colaborar, mas que não aceitam ser só deles a responsabilidade de dar respostas ambientais, enquanto os urbanos apenas ficam na cobrança e adquirindo, às vezes, mais um carro para a família ajudar na poluição, desperdiçando recursos e, ao mesmo tempo, aplaudindo reportagens que vendem a necessidade de punir um produtor rural que cortou uma árvore em sua propriedade, mesmo que já tenha plantado muitas outras; os urbanos compram um apartamento em um prédio que, para ser construído, precisou eliminar um pequeno bosque e acham natural; jogam detritos nos córregos e rios, desmontam morros para construírem casas e, depois, cobram matas ciliares e de topos de morros, desde que situadas no meio rural. Constroem praticamente dentro dos leitos dos cursos d’água e exigem que, no meio rural, haja uma faixa de proteção de no mínimo 60 metros em torno dos mesmos. Trazendo essas discussões para um fórum (os Comitês Ambientais) onde todos poderão estar representados, ficará mais fácil discutir tudo isso democraticamente e dirimir as controvérsias pertinentes, gerando um Código Ambiental eficiente e justo, que possa servir à conservação sem inibir a produção.
Quem deve discutir a Amazônia, por exemplo, são, em primeiro lugar, os povos de lá, e não quem está distante e acha muito bonito viver da floresta, desde que não seja obrigado a fazê-lo; não são as Ongs que não exigem a reposição florestal em seus países de origem, que eliminaram todas as florestas de encostas, cultivam todas elas e não têm quase nenhuma cobertura de mata nativa.
Para eliminar o temor de a descentralização gerar uma bagunça, ficará mantido, é claro, um órgão federal, que poderá ser o próprio Conama, devidamente reformulado para diminuir as possibilidades de formação de feudos ou de excessos de poder do estado. Ele será o guardião dos princípios fundamentais do Código, mantendo os postulados básicos da federação.
Como exemplo de que sociedade e poder público podem participar de programas de conservação, com sucesso e sem o estresse que o assunto causa no Brasil, vale mencionar o caso de Catskill, região de montanhosa dos Estados Unidos, mostrada em reportagem recente do programa Globo Rural, e fornecedora de água para a cidade de Nova York. Apesar de ser uma região composta de bacias hidrográficas produtoras de água para abastecimento, é ocupada e explorada por propriedades rurais que produzem leite, madeira de matas nativas etc., tudo dentro de critérios de conservação, estabelecidos por negociações e regulados por contratos de parcerias. Não há, portanto, leis puramente restritivas, mas uma colaboração mútua e atividades planejadas e tecnicamente executadas. Lá, por exemplo, o repórter viu um córrego isolado da pastagem por cercas. Percebeu, entretanto, que, de um lado, a cerca estava bem perto do córrego e, do outro, mais longe. Perguntou a razão e recebeu, como resposta, que tinha sido uma decisão técnica, com base nas necessidades ambientais das duas margens. E mais, que pela superfície isolada, o produtor rural recebe uma compensação financeira anual. Viu caminhões transportando madeira de florestas nativas e recebeu informações a respeito de tecnologias de manejo e exploração que são utilizadas para que tais atividades possam ser exercidas concomitantemente com a produção de água de qualidade. Por que, então, uma lei brasileira, o Código Ambiental, não poderá apenas estabelecer que as áreas ciliares são de interesse hidrológico ou ambiental, deixando aos Comitês dos biomas a responsabilidade de definir onde elas deverão estar, as larguras necessárias e as possibilidades e/ou restrições de usos; mas tudo com base em conhecimentos científicos e tecnológicos. Ou o país não acredita nos profissionais que forma, na ciência que desenvolve ou na capacidade de a sociedade definir rumos e prioridades? Por que tudo tem de estar em artigos de leis, que de tantas e tão cheias de prescrições inúteis e não aplicáveis, acabam não “pegando”. A Lei das Águas, mais moderna e conceitual, está provocando reações mais eficientes do que o Código Florestal, já desfocado da realidade e científica e tecnologicamente ultrapassado.
Um país que tem dificuldade de reestruturar as suas políticas públicas, que não acredita na capacidade profissional de seus técnicos, que fica preso a ideologias que prioriza a fiscalização em detrimento da assistência técnica e dá excessiva atenção às suspeitas pressões externas, não será capaz, nunca, de desenvolver um sistema apropriado de convivência conservação/produção. Vamos deixar que a sociedade substitua as cabeças coroadas e decida a maneira mais adequada de utilização de nossos recursos naturais.
Por último, eu quero dizer que o importante desta proposta é a ideia de descentralização e que, certamente, alternativas devem existir para isso. Todos nós sabemos que a conservação do meio ambiente tem de ser fruto da ação cooperativa de toda a sociedade, mas há segmentos dessa mesma sociedade que acreditam ser detentores de procuração geral para impor desejos e ditar normas. Temos de arrombar as portas e ocuparmos as salas de decisões.
Osvaldo Ferreira Valente é Engenheiro Florestal, Especialista em Hidrologia e Manejo de Pequenas Bacias Hidrográficas e Professor Titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); colaborador e articulista do EcoDebate ovalente{at}tdnet.com.br
[EcoDebate, 06/05/2009]
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Esta matéria sim, é uma realidade para uma proposta ou a base de uma conciência mutua nas discuões de um novo processo de mudanças, ou melhor de revisão do código flerestal, já á tempo ultrapassado e desgastado, pelo simples fato, que os tempos mudaram.
Defendo,lógico,a hipótese de modernização do Código,uma renovada seria de bom grado,ua vez que a nossa contemporaneidade precise…o meio ambiente sempre sofrera degradações,e conscomitantemente o homem fora aclimatando-se às mudanças.E portanto,um novo código sob uma visão moderna teria plena eficiência.
Apresento o meu protesto contra essa estúpida Lei Ambiental, terrivelmente nociva à produção nacional de grãos, um dos esteios da economia brasileira, contrariando os direitos adquiridos dos nossos agricultores, garantidos na Constituição, provocando fatalmente o desemprego na agricultura do país.
Enquanto isso, nosso ilustríssimo, honestíssimo e laboriosíssimo Congresso Nacional, orgulho do povo brasileiro, permanece omisso cogitando, antes, aprovar o vergonhoso cartão de crédito dos deputados, verdadeiros sanguessugas do povo brasileiro.
Por outro lado, nosso profícuo Poder Judiciário, totalmente despido de bom senso e sensibilidade, decidiu aplicar uma Lei de 1965 criminalizando o agricultor que cultiva a terra há dezenas e dezenas de anos, sem prejuízo do meio ambiente, enquanto os madeireiros destroem criminosamente a Amazônia. Mas lá, o caso é decidido à bala. Sobra então para o desprotegido agricultor.
Autor: Agnaldo Nunes de Araujo
Solicitação de confirmação de autoria enviada em 26 de Maio de 2009, 22:11. Confirmação recebida em 29 de Maio de 2009, 01:35
Resposta do EcoDebate:
Não temos como prática responder aos comentários, ainda assim julgamos que, excepcionalmente, podemos fazer algumas observações.
Muitos protestam contra a ‘repentina’ exigência de cumprimento do Código Florestal. Afinal, estamos em 2009 e o código ‘apenas’ foi aprovado em 1965. É, evidentemente, muito repentino.
Em 1965 a expansão da fronteira agropecuária praticamente não atingia o Cerrado e a Amazônia. De 1965 para cá quem desmatou além do permitido sabia que estava desmatando ilegalmente e o fez deliberadamente. Não é uma vítima inocente de uma lei injusta aprovada ‘ontem’.
A Constituição brasileira ou de qualquer lugar do mundo não garante direitos adquiridos pela ilegalidade.
Nos últimos 10 anos centenas de nascentes e olhos d’água foram simplesmente esgotados, apenas no entorno do DF. Incontáveis áreas de recarga de aquíferos foram devastadas ou contaminadas com agrotóxicos, muitos dos quais ilegais. Tudo em nome da “ produção nacional de grãos, um dos esteios da economia brasileira”…
Estas são questões que discutimos no editorial A ‘guerra’ ruralista contra o meio ambiente.
No período de 2005 a 2008 foram desmatados ao menos 102.938 hectares de cobertura florestal nativa da Mata Atlântica, ou dois terços do tamanho da cidade de São Paulo. Não se pode dizer que de 2005 a 2008 tenha sido ‘pouco’ depois de 1965.
Pode-se discutir a situação anterior à vigência do Código Florestal, mas não há o que discutir quanto ao desmatamento ilegal após 1965. Nem que seja porque ilegalidade não se relativiza.
Nossa perspectiva foi melhor detalhada no editorial “A guerra contra o Código Florestal ‘recentemente’ aprovado (em 1965)”
Henrique Cortez, henriquecortez@ecodebate.com.br
coordenador do EcoDebate