O enfraquecimento tecnológico do estado e a perda de sua capacidade de planejar, decidir e contratar, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos
[EcoDebate] A retomada do crescimento nacional que vem sendo verificada nestes últimos anos (agora enfrentando as incertezas advindas da crise internacional) encontra o poder público planejador e contratante e a engenharia nacional fornecedora abalados por fenômenos estruturais recentes que os fragilizaram tecnologicamente e gerencialmente. É preciso que governo e empresas tenham esses fatos em conta para que essas perigosíssimas deficiências sejam devidamente entendidas, equacionadas e superadas.
O processo de privatização de empresas nacionais nas áreas de energia, telecomunicações, transportes e infra-estrutura em geral, ocorrido especialmente nos anos 90, trouxe a dissolução de equipes técnicas de altíssima capacitação e experiência constituídas nessas empresas ao longo de décadas, assim como uma temerária fragilização tecnológica de toda uma cadeia empresarial privada mobilizada por contratação das estatais e implicada na produção de estudos e projetos, na implantação dos empreendimentos e no fornecimento de insumos gerais, equipamentos e componentes. Não se está aqui colocando o processo de privatizações em questão, mas sim, focando uma sua decorrência que provavelmente não tenha sido devidamente considerada.
Essas equipes técnicas, formadas no âmbito da implantação de obras e instalações da mais alta complexidade tecnológica nas décadas de 50, 60 e 70, e contando com o entusiasmado e estratégico apoio de instituições públicas de pesquisa tecnológica do país, foram responsáveis por dominar, desenvolver e/ou induzir o desenvolvimento de uma Engenharia Nacional aplicada às características econômicas, sociais e fisiográficas próprias de nosso país e de suas diferentes regiões, guindando-a, reconhecidamente, ao nível da melhor Engenharia do primeiro mundo. De outra parte, as várias empresas privadas brasileiras de consultoria, projetos e serviços em Engenharia que se formaram a partir da demanda das empresas públicas para o atendimento de grandes obras, instalações e gerenciamento operacional, constituíram suas próprias equipes técnicas, respondendo induzidamente ao mesmo patamar de qualidade.
Hoje, uma pequeníssima parte das antigas equipes técnicas das estatais privatizadas foi aproveitada pelos grupos privados internacionais, via de regra vencedores das licitações de privatização. Grande parte dessas equipes se diluiu em tristes passamentos, aposentadorias com mudanças de ocupação profissional e em serviços autônomos de consultoria.
Quanto às empresas brasileiras privadas de consultoria e projetos, já anteriormente abaladas pela contínua redução dos investimentos públicos que caracterizou recessivamente as últimas décadas do séc. XX, e em parte já preteridas em favor de empresas de engenharia dos países de origem dos grupos multinacionais vencedores das licitações de privatização, muitas acabaram por se extinguir, outras desmobilizaram suas equipes permanentes optando por apenas constituir grupos técnicos transitórios para atendimento de escassos projetos específicos em campos técnicos limitados.
O mesmo fenômeno já atinge as grandes empreiteiras nacionais de obras e instalações e os fornecedores nacionais de equipamentos componentes, que, também respondendo a uma nova ordem operacional, preferem trabalhar utilizando-se ao máximo do temerário expediente da terceirização de serviços.
Do ponto de vista da capacitação tecnológica da administração pública contratante, cumpre lembrar que nos órgãos da Administração Direta o processo de enfraquecimento tecnológico, no caso dentro de uma outra, mas também perversa lógica, iniciou-se ainda nos anos 50, e de sua decorrência órgãos públicos que no passado constituíram-se em verdadeiras escolas da engenharia nacional hoje não são mais que meras estruturas burocráticas sem nenhuma consistência técnica.
Ao se analisar o processo de esvaziamento tecnológico da administração pública direta e indireta é fundamental considerar o especial e estratégico papel do poder público contratante, como indutor da qualidade das empresas contratadas e mobilizador da empresa nacional fornecedora de projetos, serviços e insumos. Mais, sem a devida competência sequer para as indispensáveis interlocuções tecnológicas entre contratante e contratados, a sociedade brasileira, na figura de sua administração pública, perde progressiva e rapidamente competência em planejar, priorizar e decidir sobre a implantação de empreendimentos e serviços públicos essenciais ao seu desenvolvimento técnico e econômico. Bom lembrar que cabe ao Estado contratante a missão de fixar já nos termos licitatórios as linhas e concepções tecnológicas básicas que mais interessarão ao país no que se refere ao aproveitamento máximo de suas vantagens comparativas e de sua estrutura empresarial. Perde-se a autonomia dessa decisão quando se perde a competência em defini-la.
As conseqüências negativas desse fenômeno são graves e podem ser facilmente imaginadas, seja no âmbito social, econômico ou até no âmbito estratégico da segurança nacional (perda de “intelligentsia”).
Sem dúvida, há já substância vital perdida irreparavelmente. Mas há muito a se preservar e muito a fazer para estancar ou, ao mínimo, reduzir os efeitos de tão danoso processo.
É indispensável que governo e empresa nacional, assim como a Engenharia Nacional através de suas entidades, discutam e reflitam sobre essas questões. Sem quaisquer partidarismos, com a disposição que a defesa desse estratégico patrimônio tecnológico tão nobremente construído exige.
Adiantando essa necessária discussão, destacaríamos duas providências imediatas indispensáveis: iniciar um processo orientado de recuperação da competência tecnológica de determinados órgãos e empresas públicas e promover uma mudança radical na postura doutrinária das Agências de Regulação, que as leve a preocupar-se estrategicamente com a memória tecnológica das empresas públicas privatizadas e serviços concessionados e com a viabilização de espaços para a Engenharia Nacional.
Essas providências têm as dimensões de um Projeto Estratégico Emergencial vital, sob todos os ângulos, para o presente e o futuro do país. Poderia, sem dúvida, ser considerado o “Genoma” da Engenharia Nacional.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro{at}uol.com.br)
· Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
· Foi Diretor Geral do DCET – Deptº de C&T da Secretaria de C&T do Est. de São Paulo
· Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”
· Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
· Criador da técnica Cal-Jet de proteção de solos contra a erosão
[EcoDebate, 03/04/2009]
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Quero parabenizar o Álvaro pelo feliz artigo que retrata uma situação de risco em várias áreas de conhecimento e inclusive da Engenharia Nacional. Temos conhecimento de inúmeros casos que se enquadram no contexto da notícia. Acompanhamos o menosprezo ao capital intelectual formado nas administrações públicas. Como se não bastasse o desemprego , a insanidade de alguns decide, muitas vezes, pelo esvaziamento de algo muito precioso : o saber. Se não contiverem essa onda, o país pagará muito caro por essas mazelas , se é que já não está pagando.