Reduzir a área de proteção permanente na Amazônia beneficiará proprietários privados, ao preço do sacrifício público, artigo de Alain Ruellan
[Valor Econômico] Solos: riquezas desperdiçadas – O solo é um bem precioso para as sociedades humanas, uma das fontes fundamentais do bem-estar dos povos. As sociedades humanas vivem sobre os solos e enraizadas dentro dos solos. É possível dizer que elas vivem dos solos: elas se alimentam a partir deles, acham nos solos diversos materiais de que precisam para se vestir, morar, se cuidar, fabricar os instrumentos da vida quotidiana, e também para expressar a sua cultura e as suas crenças. E é o solo que, em grande parte, gera a dinâmica e a qualidade das águas necessárias para os seres vivos, determina a composição da atmosfera e acolhe a biodiversidade do mundo.
Portanto, as “coberturas de solos” asseguram funções essenciais, para a vida em geral e para a vida dos homens em particular: o bem-estar das sociedades humanas depende do bem-estar dos solos. Mas também o bem-estar dos solos depende muito da maneira como são tratados pela sociedade.
Na escala do planeta, o solo é aparentemente pouca coisa: apenas uma película, uma fina camada de “terra” localizada na superfície dos continentes, cuja espessura varia de alguns centímetros a alguns metros. Daí sua grande fragilidade.
Os solos se formam devagar, em relação estreita com os outros atores do meio terrestre: água, ar, vida, rochas. Hoje as atividades humanas podem transformar os solos muito rápido, até mesmo destruí-los, com consequências graves, locais e mundiais, sobre os outros atores: água, ar, vida, homens e a Terra inteira.
Qualquer intervenção humana sobre o meio ambiente, qualquer uso dos solos pelas sociedades humanas, modifica os solos e as suas funções. As mudanças podem ser positivas: na Amazônia, a “terra preta do índio” é um exemplo importante da capacidade de os homens melhorarem a qualidade dos solos. Outros exemplos são os terraços de cultivo sobre vertentes com forte declividade, os pôlderes das planícies costeiras, os groves, os enriquecimentos orgânicos e minerais pelos adubos e estrumes.
Mas, em geral, as transformações dos solos em consequência das atividades humanas são negativas: acontece degradação dos solos, de suas características e funções e, consequentemente, ocorre também degradação das águas, do ar, da biodiversidade. É claro que o conjunto dessas degradações atinge o bem-estar das populações humanas que vivem nesses e desses solos. O resultado é a poluição dos solos e das águas, com as suas consequências sanitárias; destruição da estrutura superficial do solo, o que facilita os escoamentos, as inundações, a erosão das camadas superiores e as mais ricas do solo. Todo este processo incide negativamente na qualidade do ar e na salinização da terra e da água.
Os custos desta destruição raramente são tomados em consideração no balanço econômico e social dos resultados do manejo de uma região. Na Bretanha (França), por exemplo, a política agrícola aplicada desde os anos 1970 propiciou a destruição das cercas vivas do Bocage. Em seu lugar surgiu o milho (produto mal adaptado à região), voltado à criação animal estabulada, intensiva e produtora de imensa quantidade de esterco líquido. Durante alguns anos, a política enriqueceu os mais prósperos entre os agricultores, mas empobreceu o conjunto da sociedade, rural e urbana, e degradou o meio natural. Os prejuízos apareceram sob a forma de poluição, pelos nitratos do lençol freático, de eutroficação dos meios costeiros, de diminuição das biodiversidades, de compactação e erosão dos solos. Isso custa caro e é pago por todos os membros da sociedade, atual e futura.
Na Amazônia, a substituição da floresta por uma agricultura inadaptada se traduz também em um grande e pouco recuperável empobrecimento dos solos. A matéria orgânica evapora na atmosfera na forma de CO2, contribuindo assim para o aquecimento climático. Além da perda de matéria orgânica, ocorre a lixiviação muita rápida dos já fracos teores em nutrientes minerais. Isso para não falar do empobrecimento biológico e da erosão. Como os solos são bastante espessos, leva tempo para que desapareçam. Mas os primeiros anos de erosão destroem os horizontes superiores que são os mais ricos.
Um cálculo econômico tem que ser feito: as perdas em “capitais naturais”, os empobrecimentos em grande parte irreversíveis, devem ser avaliados. Não se pode continuar a calcular as vantagens e os inconvenientes da substituição da floresta pela agricultura e pelo gado sem incluir nesses cálculos as perdas em riquezas naturais, em particular as perdas de solos e as consequências disso sobre o bem-estar atual e futuro dos meios e das sociedades. De fato, quem vai pagar as consequências do empobrecimento em matéria orgânica e mineral, as consequências das erosões dos solos, das mudanças hidrológicas, das mudanças climáticas locais e regionais? Os que vivem nessas regiões, e não os que já se beneficiaram da exploração.
O solo é uma das mais geniais invenções da nossa Terra. Criado e formado pela vida, de maneira contínua, é o solo que permite o nascimento, o desenvolvimento, a diversificação e a renovação da vida dos continentes. E é o solo que permite que a vida resista às condições desfavoráveis da sua história (secas, inundações, temperaturas excessivas). A vida faz o solo e o solo permite a continuidade da vida: o solo permite que a vida se diferencie e se perpetue; a vida assegura ao solo a continuidade da sua formação e da sua evolução; o solo assegura a vida o essencial do seu “bem-estar”, do seu conforto, particularmente para as sociedades humanas.
Portanto, qualquer empobrecimento, morfológico, físico, químico, biológico dos solos tem um custo que, na maior parte das vezes, não é assumido pelos “proprietários”, e sim pela sociedade em geral.
Reduzir a área de proteção permanente das propriedades na Amazônia, como algumas correntes preconizam, significa beneficiar proprietários privados, ao preço de um sacrifício público presente e futuro cujos custos para a sociedade e para a natureza são muito maiores que os ganhos particulares eventualmente alcançados com sua implantação.
Alain Ruellan, professor emérito de Ciência do Solo, AgroCampus Rennes, ex- presidente da Associação Internacional de Ciência do Solo e diretor do Programa Meio Ambiente do Conselho Nacional da Pesquisa Científica e Tecnológica (França)
* Artigo originalmente publicado no Valor Econômico, 25/03/2009.
[EcoDebate, 26/03/2009]
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