Escravidão persiste no Brasil
Trabalho escravo de 2004 a 2008
Só no ano passado, 5 mil pessoas exploradas por seus empregadores foram libertadas no país. Frente parlamentar tenta aprovar emenda que prevê expropriação de terras onde o crime for constatado
Quando assinou a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel provavelmente não imaginava que, cerca de 121 anos depois, milhares de pessoas continuariam sendo escravizadas no Brasil. Nos dois primeiros meses deste ano, 173 trabalhadores foram libertados por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Eram explorados em 21 fazendas onde viviam em condições degradantes, sem carteira assinada, impedidos de deixar o serviço e recebendo apenas comida como pagamento. No ano passado, mais de 5 mil operários foram localizados nessas condições, consideradas criminosas há mais de 60 anos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma frente parlamentar conjunta formada na semana passada no Congresso tentará aprovar até maio a emenda que prevê a expropriação de fazendas onde forem constatadas situações desse tipo. Matéria de Leonel Rocham do Correio Braziliense, 18/03/2009.
Nos últimos oito anos, pouco mais de 31 mil pessoas foram libertadas pelo grupo móvel do MTE, que constatou a ilegalidade em mais de 1.700 fazendas. Quanto mais o governo apertou a fiscalização, mais descobriu escravos (veja quadro). Nesse período, os fiscais lavraram multas de quase R$ 48 milhões, questionadas na Justiça pelos fazendeiros. O Brasil reconheceu, há cinco anos, perante a Organização das Nações Unidas (ONU), que existem pelo menos 25 mil pessoas reduzidas anualmente à condição de escravos no país. Mas as entidades públicas e privadas admitem que é difícil quantificar o número preciso dessas vítimas.
A estimativa foi feita pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, e acatada como a projeção mais precisa, uma vez que a entidade recebe as denúncias e acompanha as libertações nos locais mais distantes. A maioria dos casos ocorre nas áreas de fronteira agrícola, onde os trabalhadores são recrutados por intermediários chamados de “gatos”. Normalmente, as pessoas exploradas são chamadas para trabalhar informalmente na abertura de novas áreas para a agricultura. Segundo dados oficiais, a escravidão moderna concentra-se em fazendas de sete estados: Pará, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Bahia, Piauí e Minas Gerais.
Somente no ano passado, foram libertados mais de 5 mil trabalhadores em todo o país. Desses, quase 600 eram escravizados em fazendas do Pará. Dados da fiscalização mostram que trabalhadores rurais, pobres e desempregados, ou favelados das periferias das capitais do Nordeste e do Norte, são as vítimas preferenciais dos “gatos”. O recrutamento é feito pelos intermediários que prometem ocupação imediata, mas terminam cobrando o transporte, a comida, as roupas e até as ferramentas usadas por quem foi aliciado. Além disso, como os locais de trabalho são geralmente muito distantes de cidades e longe do acesso ao sistema público de transporte, o escravizado termina impedido de deixar o local para onde foi levado.
Hoje, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e a ONG Repórter Brasil realizam um seminário em São Paulo para avaliar os resultados de quatro anos da assinatura do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Nesse período, mais de 180 empresários foram incluídos na “lista suja” do MTE por terem escravizado funcionários. Os empresários e organizadores do pacto pretendem aprovar no seminário um código de conduta para que companhias brasileiras não comprem produtos de fornecedores acusados da prática ilegal.
Impasse
O crime de trabalho escravo é caracterizado por três situações: jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e restrição à liberdade em razão de dívida contraída com o empregador ou seu superior. “Socialmente, esse é o problema mais vergonhoso do país, o que mais viola a integridade das pessoas”, lamenta Cláudio Montesso, presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra). Até os fiscais do trabalho correm risco. Em janeiro de 2004 três deles foram assassinados por fazendeiros em Unaí,(MG). Em uma situação inusitada, há três semanas a Justiça Federal do Pará condenou 27 pessoas pelo crime.
Apesar disso, há quase 14 anos senadores e deputados não conseguem resolver o impasse sobre a inclusão do termo “expropriação” da propriedade como punição constitucional da prática de escravidão. É a mesma sanção prevista para propriedades onde são cultivadas plantas psicotrópicas, como a maconha.
Para pressionar o Congresso a votar a emenda, o movimento pela erradicação do trabalho escravo já conta com mais de 200 mil assinaturas exigindo a votação imediata do texto. Criada por ONGs que lutam para acabar com o crime, a mobilização conta com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do escritório da OIT no Brasil.
Na quinta-feira passada, o presidente da Câmara, deputado Michael Temer (PMDB-SP), prometeu incluir a emenda na lista de prioridades para votação. O texto foi aprovado pelo Senado em 2004 e, no mesmo ano, em primeiro turno pelos deputados. Desde lá, no entanto, a Câmara não consegue votar o segundo turno exigido pelas normas de funcionamento do Legislativo. O impasse foi provocado pela bancada ruralista, que não admite a expropriação das propriedades onde a escravidão for flagrada e impede a votação (leia abaixo).
O senador José Nery (PSol-PA ) é o principal negociador entre os parlamentares para tentar aprovar a emenda. Ele defende a classificação do crime como grave violação aos direitos humanos. “Já é passada a hora de termos coragem e o devido rigor para enfrentarmos esses casos como uma violação de direitos humanos, que é exatamente o que eles significam”, afirma.
[EcoDebate, 19/03/2009]
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