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Regularização fundiária na Amazônia: enfim, uma solução? artigo de Ronaldo Pereira Santos

“Outro ponto de estrangulamento na Medida Provisória é a retomada das posses daqueles acima de 2.500 ha. É praticável onde a bala é o imperador?”

A regularização fundiária ou legitimação de posse é um conjunto de medidas jurídico-administrativas que visa ordenar o domínio, a propriedade ou a posse de particulares em terras públicas. Estas ações indicam quem é dono de qual terra, onde se encontra, tamanho e – o mais importante – quais as regras para que seu uso seja compatível com as leis vigentes.

Este tema é de primeira necessidade para o maior patrimônio do Brasil: a Amazônia. A posse das terras públicas na região tem ocorrido à revelia da lei, tendo a grilagem (invasão e uso de terra pública) como patrocinador. Como herança, cerca de 150 milhões de hectares de terras públicas estão ilegalmente em posse de particulares – 30% do total na Amazônia.

Toda esta situação fomenta uma cascata de outros problemas sérios: degradação ambiental, pistolagem, problemas de acesso à biodiversidade, barreiras à pesquisa e à inovação tecnológica e frustração aos possíveis arranjos econômicos para proveito dos benefícios oriundos dos serviços ambientais da floresta.

A regularização de posses na Amazônia é fundamental por mais dois motivos: (i) a garantia da propriedade e o estado de direito social – princípios da Constituição (Art 5o, XXII e XXIII) – são premissas da função socioambiental do imóvel rural; e (ii) para garantir os investimentos em pesquisa e atividades sustentáveis.

Muita regra, pouco resultado

Boa parte dos problemas da legitimação de posses na Amazônia advém das macropolíticas das décadas de 60-70. Além disso, contribuiu o avanço da fronteira agrícola sobre a região nos últimos 30 anos, fruto das profundas mudanças no perfil agropecuário brasileiro.

No inicio era possível regularizar imóveis em áreas públicas na Amazônia de 100 hectares (ha); depois o limite aumento para até 500 ha. Em 2008, passou-se a admitir a regularização até 1.500 ha – nos três casos sem licitação. A medida foi veementemente criticada pela sociedade civil, sendo apelidada de “PAC da grilagem”.

O limite constitucional máximo de ser regularizado é de até 2.500 ha. Acima deste, ouve-se o Congresso Nacional. Contudo, qualquer cidadão pode adquirir legalmente extensões de terra maiores que os 2.500 há – não oriundas de bancos de terras públicas.

Apesar de todo o conjunto de regras pouco se avançava: apenas 4% das posses estão regularizadas. Parte disso porque os posseiros ou o desrespeitam ou não o conhecem, mas também pelo excesso e complexidade das leis.

Mudanças na legislação: a medida provisória (MP) 458

O governo federal anunciou, em fevereiro de 2009, o programa “Terra Legal”. Trata-se de um conjunto de ações para ordenar a posse e o uso das terras públicas da Amazônia Legal. Como primeira medida, a mudança nas regras: edição da Medida Provisória (MP) 458.

A MP indica que as áreas passíveis de regularização são todas aquelas de poder da União (as terras na faixa lateral de 100 km nas Rodovias Federais, faixa de fronteira, e as arrecadadas e ainda a serem arrecadadas pelo Incra). Estão fora as áreas militares, indígenas, quilombolas, de populações tradicionais e as unidades de conservação.

Assim, o governo doará as terras com até cem hectares; aquelas com até 400 hectares serão repassadas a preço reduzido; áreas de 400 ha a 1.500 ha serão vendidas a preço de mercado, sem licitação. Deste tamanho até chegar o máximo de 2.500 ha só serão repassadas a terceiro por meio de concorrência pública. Em todos os casos leva-se em conta quem já usa o imóvel anterior a 2004.

Alguns avanços na proposta

Primeiro, fica estabelecido a não regularização de terras públicas para as empresas (pessoas jurídicas). Isso ajuda os casos como os de empresas ou alguma ONG que bradam possuir nacos da Amazônia. Também, a questão ambiental fica respeitada na MP, pois só terão acesso ao titulo da terra aqueles que respeitarem as regras florestais.

Se cumpridas as determinações da MP a grilagem estaria, em tese, com seus dias contados. Grande parte dos detentores ilegais terá dificuldades para: comprovar o uso direto do imóvel e sua morada habitual; não possuir outro imóvel e ainda respeitar o código florestal. Também não valeria manter os caseiros como justificativa de uso.

Assim, “a priori”, a MP parece estimular rapidez nos procedimentos da regularização e, em certa medida, asseguraria a função socioambiental dos imóveis.

Mas, ingenuidade esperar o fim da grilagem por conta da MP? Serão as medidas suficientes para regularizar 80% das posses em três anos? E, o mais importante, gerará renda e equidade social ou apenas aprofundará o fosso das desigualdades econômicas na Amazônia?

“Furos” na MP 458 e ideias para o “Terra Legal”

A MP recebeu inúmeras criticas. Não à toa há no Congresso uma saraivada de emendas ao texto para sua alteração. Mas deve-se ter cuidado para a emenda não sair pior que o soneto.

O primeiro problema aparece com relação às áreas de várzea ou inundáveis. São as chamadas “terras de marinha” às margens dos grandes rios de posse da União. Também, entram nesta conta as ilhas fluviais. Não são poucas as posses nestas condições (maioria no Amazonas, por exemplo).

Seguindo a constituição a MP diz que os posseiros receberão apenas uma concessão de direito real de uso (CDRU) e não o titulo definitivo. Ou seja, o interessado não pode vender os imóveis. Aceitarão (ou entenderão) os posseiros históricos destas áreas? Como explicar-lhes que a lei os diferencia de quem está em terra firme? Até onde caberia evocar o princípio constitucional da isonomia?

Outro ponto crucial é o cumprimento das leis ambientais. Os órgãos fundiários não terão fôlego para vistoriar todos os 297 mil imóveis no quesito do meio ambiente. Logo, é fundamental parecerias com os órgãos ambientais.

Falando em vistoria, a MP 458 prevê a dispensa desta para a regularização de 100 a 400 ha. Em tese, basta a declaração, mapa e memorial descritivo da área para legitimar uma área sem mesmo o interessado saber onde fica (?!). Vistorias na Amazônia são, de fato, complicadas. Uma sugestão é prever as vistorias em um período escalonado. Assim, todos os imóveis viriam a ser avaliados quanto à sua função socioambiental ao menos uma vez.

Outro ponto de estrangulamento na MP é a retomada das posses daqueles acima de 2.500 ha. É praticável onde a bala é o imperador? Os desprotegidos técnicos do Incra e dos institutos de terra não terão sucesso se não for incluída no programa parceria com as forças nacional ou as armadas.

O papel dos cartórios deve, também, ser reavaliado. Boa parte dos proprietários faz uso de um sistema de negociação sem relação com o que diz os papeis oficiais. O controle e mesmo uma reforma no sistema de cartórios do país, portanto, não somente se faz necessário, mas primordial.

Todo este quadro é agravado pelo exagerado conjunto de documentos produzidos pelo próprio governo ao longo dos anos. A legitimação da justa posse, por exemplo, reconhece 14 tipos de documentos teoricamente “legais” (!!).

Regularização fundiária para quem?

Alguns defendem que a tese de que a MP 458 estaria “a favor do capital” e dos grandes latifundiários. Pouco efeito tem esta visão – no máximo manchete jornalística. O assunto carece de uma análise crítica despida de paixões ideológico-partidárias e, principalmente, sem ingenuidades.

Visto desta forma, a questão não é o que consta na MP, mas sim como e se ela vai ser cumprida. Logo, a regularização fundiária faz parte sim da agenda amazônica.

Cabe lembrar, ainda, que a prática nos rincões da Amazônia é penosa: a realidade dos rios, trilhas, estradas, lonas de assentados e vilas ribeirinhas é irônica e contrasta com as boas intenções posta ao papel – sobretudo as leis. Em outras palavras, a teoria terá que “suar” muito para acompanhar a prática, mas sem regras a Amazônia continuará sem rumo.

Ronaldo Pereira Santos é engenheiro agrônomo do Incra e mestre em Ciências de Florestas Tropicais. Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”.

* Artigo publicado no Jornal da Ciência, SBPC, JC e-mail 3715, de 06 de Março de 2009.

[EcoDebate, 07/03/2009]

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