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O governo Lula e a ausência de um projeto de nação

A análise de Francisco de Oliveira é pertinente quando afirma que a chegada de Lula ao poder não significou uma mudança de modelo. Vargas alterou o modelo, Collor também, mas não Lula. Lula optou pela continuidade do modelo anterior com algumas variações. Trata-se daquilo que muitas vezes denominamos de modelo do Pós-Consenso de Washington, ou seja, a possibilidade de se juntar o social com a ortodoxia econômica.

Uma das evidências da não ruptura é o entusiasmo de Luiz Carlos Mendonça de Barros – ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no governo Fernando Henrique Cardoso –, com as potencialidades do país na crise. Segundo ele, o Brasil “se descolou” da maioria dos demais mercados emergentes e já aparece aos olhos do mercado internacional como alternativa de investimento e como um país que será bem menos afetado do que a média dos seus pares.

O “sucesso” do Brasil, segundo o ex-ministro que operou o maior programa de privatização do país, das telecomunicações, se deve ao fato de que “alguns pecados do passado viraram qualidade: o compulsório elevado, que no fundo não permitiu aos bancos multiplicarem crédito; a taxa de juro elevada, que também segura o endividamento exagerado; o setor público bancário, que, nessa hora, é o que todo mundo está tentando fazer. O BNDES é um exemplo típico. Ele tem uma função, desde que faça as coisas direito. O banco público tem a sua função. Outra diferença é que o governo estava longo (comprado) em dólares, então, quando houve a desvalorização contra o dólar, que foi generalizada, o Brasil acabou incorrendo em lucro, não em prejuízo. A nossa dívida pública, quando comparada com a de outros países, numa perspectiva de um ou dois anos, ficou completamente fora da curva (com uma tendência melhor)”, diz ele.

O governo Lula tem sido isso. Por um lado, a aplicação dos fundamentos da disciplina fiscal e monetária e, por outro, políticas sociais de caráter compensatório. Lula oscila entre o resgate do social e do Estado, e os interesses do mercado. Não foi colocada em marcha nenhuma grande reforma estrutural na sociedade brasileira, embora se reconheça a adoção de políticaa na direção da correção das distorções das desigualdades sociais: aumento permanente do salário mínimo, a ampliação da oferta de crédito, os programas de mitigamento da miséria, como o Bolsa Família, e de inclusão, como o Pró-Uni.

O governo Lula não tem um projeto de nação. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é um programa e não um projeto. Nesse sentido pode-se afirmar que já houveram projetos bem mais ousados, como o plano de metas do período JK, e até mesmo o Plano de Desenvolvimento Nacional (PND), de Geisel.

A retomada de um possível nacional-desenvolvimentismo, que muitos atribuem ao governo Lula, é distinto do praticado na Era Vargas. No período varguista, os investimentos realizados pelo Estado constituíram a formação de um capital produtivo sob controle do próprio Estado. Foi assim que surgiu a CSN, a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobrás, a Eletrobrás, o sistema Telebrás. Foram essas empresas que possibilitaram a modernização conservadora do país e o alçou a uma das potências econômicas mundiais. Agora, no governo Lula, o Estado presta-se antes de tudo ao fortalecimento do capital privado. O papel do Estado – com o programa do PAC – é o de, sobretudo, responder às demandas de infra-estrutura, de energia e logística para atender aos interesses do capital privado nacional e transnacional.

Poder-se-ia afirmar que o governo Lula e o seu “modelo” renderam-se a uma determinada lógica economicista. O Estado coloca-se, sobretudo, a serviço da lógica do mercado. Nesse contexto é que devem ser compreendidas as obras da transposição do S.Francisco, as hidrelétricas do rio Madeira, a retomada do programa nuclear, a retomada da indústria bélica no país, a concessão das rodovias públicas, a tolerância com o agronegócio – para ficar em alguns exemplos.

Há ainda um agravante: o “modelo” consubstanciado no PAC coloca-se de costas para a problemática ambiental e reafirma a lógica produtivista da sociedade industrial. Exatamente no momento em que se fala em “descarbonizar” a economia, o país reafirma um “modelo” tributário ainda da Revolução Industrial, ou não?

Esse “modelo” é explicado pela concepção de mundo de Lula. Segundo Gilberto Carvalho, assessor especial de Lula, o presidente “fica feliz da vida com o crescimento todo, a produção industrial, a produção agrícola e ao mesmo tempo a distribuição dessa riqueza traduzida em salários, em empregos, em melhor qualidade de vida para o povo”. “Ele acha importante a preservação, mas, entre um cerradinho e a soja, ele é soja. O ambiente é uma questão importante, mas não é decisiva. O que é decisivo é a economia”, atesta Gilberto Carvalho em outra entrevista.

Lula e Getúlio. A política como conciliação

Por outro lado, a “provocação” de Chico de Oliveira para que Lula incorpore Getúlio, pode ser contrastada com a entrevista de Werneck Vianna. Para o sociólogo, “Lula é um Getúlio. Há muito tempo”. Segundo ele, “a ida ao social, como Getúlio foi, aos pobres, aos sindicatos, a maneira apaixonada através da qual Lula faz isso. É claro que ninguém atendeu melhor aos empresários e às finanças que ele. Mas não tirou de um lado para dar para o outro. Deu para os dois lados”.

O “Getúlio” incorporado por Lula de que fala Werneck é, sobretudo, o Lula da política, mas também o da economia. Segundo o sociólogo, mais do que ninguém Lula faz política no sentido getulista, ou seja, como aquele que sabe conciliar interesses. Segundo ele, “é o que dá um partido como o PT ir ao governo e não realizar o seu programa. Teve de se aliar aos outros para realizar um programa descoberto no meio do caminho. O programa do primeiro mandato não era esse que está sendo realizado”, diz Werneck.

Em uma outra entrevista, Werneck Vianna, comenta que Lula evoca o “Estado Novo” do período getulista: “Qual foi a operação que o Estado Novo getuliano fez? Exatamente esta: tudo o que era vivo na sociedade ele trouxe para si. Tal como agora. Trouxe para si e, de cima, formula políticas para a sociedade”. A interpretação de Luiz Werneck Vianna é a de que o governo Lula engoliu a todos e enveredou-se num governo que se aliou ao atraso, no caso o PMDB. Segundo ele, “o atraso é questão altamente sensível e estratégica na sociedade. Em linguagem fácil, rápida, quem tentou romper com ele perdeu”.

Para Werneck Vianna, “o PMDB é uma força política regional, fisiológica, tudo isso que se diz é um pouco verdadeiro e às vezes muito exagerado”. Ao mesmo tempo, destaca que “o PMDB é uma escora na defesa dessa tradição do público na sociedade brasileira. Possivelmente, não teríamos essas instituições que hoje estão nos defendendo se o PMDB não fosse um personagem tão presente na vida republicana recente. Agora, ao lado disso, o PMDB é um partido muito difícil de administrar. Mas não está postulando a Presidência até agora”.

Werneck Vianna acredita que, assim como Getúlio Vargas, Lula tem grandes chances de fazer o sucessor: “Getúlio não elegeu Dutra?”, pergunta Werneck numa referência ao Marechal Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Vargas nas eleições de 1946. Dutra ministro da Guerra do governo de Getúlio Vargas, um homem da direita e impopular, que logo após as eleições cassou a legenda do PCB e o empurrou para a ilegalidade, elegeu-se graças ao prestígio do governo Vargas. Para Werneck, Lula será um ator importante em 2010: “Não sei se ele garante a vitória do seu candidato ou candidata. O outro lado é muito forte e vem de um Estado muito poderoso”.

A candidatura de Dilma Rousseff é uma aposta pessoal de Lula. Dilma nunca foi a candidata do PT, mas o partido aceitou porque também foi “engolido” por Lula, e nome “forte” do partido, José Dirceu, perdeu-se nos meandros do poder de Brasília. Dilma, antes de aportar no PT, passou pelo PDT, partido que rivalizou historicamente com o PT, mas que com a morte de Brizola perdeu força política. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que a candidatura de Dilma é uma ruptura com a própria história do PT, uma ruptura com o seu programa radical transformador.

É nesse sentido que pode ser interpretada a proposta de Chico de Oliveira que “convoca” Lula a um projeto de corte getulista, transformador, não mais de cima para baixo, mas de baixo para cima, e sugere que o PT volte a ser essa força aglutinadora: “Reinventar o PT; um PT com a ousadia de um Kubitschek e de um Vargas; para fazer por baixo o que eles tentaram e fizeram por cima; um arranque do desenvolvimento induzido pela base social para mudar a economia e a sociedade”.

A propósito da proposta de Chico de Oliveira, Maria Inês Nassif comenta: “O sociólogo Francisco de Oliveira, um dos primeiros quadros intelectuais a criticar os rumos que o partido tomou no poder, deu uma entrevista dando centralidade ao PT como operador do que considerou um ‘aggiornamento histórico do desenvolvimento’. Poderia exercer esse papel porque ‘é quem dispõe de massa e liderança, enquanto os demais agrupamentos socialistas constituiriam a ponta de lança instigadora do processo’. O singular em sua análise é que, na hipótese de assumir o comando de um processo de desenvolvimento nacional – a exemplo do que Getúlio Vargas fez em 1930 – contariam a seu favor as deficiências que, no passado, levaram o próprio Oliveira a afastar-se dele”.

Politicamente, todavia, diz ela, “o PT teria que passar por mudanças radicais para cumprir um papel histórico semelhante ao exercido por Vargas. Nos arranjos internos pós-crise do mensalão, prevaleceram grupos e pessoas com domínio sobre a máquina. As negociações internas, em especial no PT paulista – que tem um grande peso nacional -, fortaleceram-se grupos muito mais afinados com a política tradicional do que ideologicamente comprometidos com o programa partidário. A luta pelo poder interno tem inibido lideranças novas, e no vácuo as antigas, a quem se atribui a cultura da máquina de fazer votos, vêm ampliando o seu poder”.

Para Maria Inês Nassif, “não têm hegemonia, hoje, intelectuais orgânicos com liderança e capacidade de formulação para transformar o PT em algo mais do que um projeto de poder – num projeto de partido que tem liderança e substância para executar um projeto de grande mudança para o país”.

Em síntese, para a comentarista política, a proposta de Chico de Oliveira é fadada ao fracasso. De qualquer forma, em época de acomodação generalizada da esquerda, mesmo diante da crise, as “provocações” do sociólogo Francisco de Oliveira para que Lula se torne um Getúlio, são sugestivas. A análise de Chico de Oliveira torna-se mais complexa quando cotejada com a interpretação de Werneck Vianna, para quem Lula, já é um Getúlio e incorporou o seu modus operandi que o transformou, assim como Getúlio, num conciliador de classes, esvaziando a política. Nessa perspectiva a proposta de um novo projeto que recupere a sua radicalidade transformadora hegemonizado pelo PT, como propõe Chico de Oliveira perde força.

(Ecodebate, 21/02/2009) publicado pelo IHU On-line, 20/02/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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