Frente à crise, quais as propostas da esquerda? A crise como oportunidade de ruptura de modelo
As análises, interpretações e diagnósticos sobre a crise econômica mundial se tornaram unânimes: a crise será duradoura e os seus efeitos devastadores. Arrastará parte considerável do planeta para a recessão, e os indicadores sociais, particularmente do emprego, se agravarão. Ensaios, artigos e reportagens circulam em profusão dando conta de que essa crise é a maior que o capitalismo moderno já assistiu.
A crise mundial evidenciou também um vazio teórico das esquerdas. No Fórum Social Mundial em Belém, multiplicaram-se as análises do gênero “bem que avisamos”, “uma crise anunciada”, “nós prevíamos”. Uma questão de fundo, entretanto, permanece: O que a esquerda propõe frente à crise? A esquerda se encontra aparvalhada. A sua ousadia se resumiu quando muito à reprodução das ideias keynesianas. O máximo que a esquerda vê na crise mundial é a possibilidade de fortalecimento do Estado, algo para o qual nem a direita, hoje, oferece resistências.
Não seria a crise uma oportunidade para ousar a ruptura? Mais ainda: considerando-se que a crise econômica está entrelaçada à crise ecológica, não estaríamos diante de um momento único para repensar com radicalidade o atual modelo? A crise, para além de romper com a hegemonia da financeirização do mundo, não seria também uma oportunidade para descarbonizar a economia, ou seja, avançar em direção a uma sociedade sustentável?
O desafio para aqueles que desejam “outro mundo” não seria o de apenas “reformar”, mas antes de tudo “revolucionar”. Mas para que o revolucionamento não seja conservador, faz-se necessário subordinar as possíveis saídas da crise econômica mundial a outra crise ainda maior: a crise ecológica. Aqui, a adoção do princípio da ecologia da ação – ações praticadas para se realizar um fim específico, podem provocar efeitos contrários aos fins que pretendíamos – proposto por Morin pode ser um excelente instrumento para se avançar a um planeta descarbonizado.
A crise como oportunidade de ruptura de modelo
A crise como oportunidade. Essa é a referência que orienta a conjuntura da semana. Tomamos como objeto de análise o caso brasileiro. Um dos primeiros a provocar esse debate foi o sociólogo Francisco de Oliveira. Segundo ele, o hiato de reacomodação capitalista que se abre agora, reservaria à esquerda uma paradoxal possibilidade de repetir a história modernizante com ousadia e criatividade condensadas em um projeto democrático popular: “A crise é tão grave que abre um período de suspensão do hegemon … Estamos diante de uma fresta histórica: uma suspensão do hegemon”. Chico de Oliveira faz referência à crise de 30, época em que o país rompeu com o modelo agrário exportador e deu impulso ao modelo de industrialização. Para o sociólogo, “Vargas redefiniu o país na crise de 30; a chance é que o PT faça o mesmo na primeira grande crise da globalização”.
Diz Chico de Oliveira: “Não existiu Vargas em 1930? A opção é uma soma de coragem política e investimento público pesado. Criar algo como cinco EMBRAERs por ano em diferentes setores; promover uma superação do modelo ancorado-o agora em forças sociais da base da sociedade”. Continua o sociólogo: “Para Getúlio também não foi fácil, mas ele fez. E fez à revelia da plutocracia mais poderosa do país; enfiou seu projeto goela abaixo da burguesia paulista e se firmou como um estadista da nossa história. A elite paulista jamais admitirá, mas ele foi o grande estadista do desenvolvimento nacional”.
Francisco de Oliveira sugere que Lula seja um novo Getúlio e destaca que os instrumentos para essa possibilidade de ruptura de modelo estão aí: “Reinventar o PT; um PT com a ousadia de um Kubitschek e de um Vargas; para fazer por baixo o que eles tentaram e fizeram por cima; um arranque do desenvolvimento induzido pela base social para mudar a economia e a sociedade. Cinco EMBRAERs por ano e ponto final”. O PT, no seu entender, seria o operador desse aggiornamento histórico do desenvolvimento: “É quem dispõe de massa e de liderança, enquanto os demais agrupamentos socialistas constituiriam a ponta de lança instigadora do processo”.
Na defesa provocativa dessa tese, o sociólogo cobra uma metamorfose do PT: “O PT tem a força sindical; a estrutura sindical tem todos os fundos de pensão sob seu controle”. Segundo, ele, a chance de emancipação do país na atual crise seria uma inusitada demonstração de competência e ousadia política da esquerda na canalização de fundos públicos para deflagrar um ciclo inédito de investimento pesado na economia.
Repete: “Falo em se criar algo como cinco EMBRAERs por ano; acelerar o crescimento e dar um novo rumo à economia e à sociedade”, e provoca: “se um estancieiro gaúcho fez isso na crise de 1930 porque uma Dilma, não poderia ser instrumentalizada para fazê-lo na crise atual?”. Arremata o sociólogo: “Devemos tratar essa possibilidade com uma discussão ampla e aberta; não oficialista, tampouco sectária, menos ainda cravejada de acusações entre petistas e não petistas. O que está em jogo é uma reacomodação brutal de forças; se ela devolver o poder aos tucanos aí sim estaremos fritos: eles ficarão aí mais dez anos”.
O que Chico de Oliveira está propondo é a possibilidade de uma ruptura com o modelo econômico instaurado por Collor, continuado por Fernando Henrique, e não interrompido por Lula. Segundo ele, com a crise, Lula tem a chance de fazer aquilo que não fez quando chegou ao poder, ou seja, romper com o modelo de inserção competitiva na economia internacional; modelo que levou o Brasil a um raquítico crescimento econômico, desaparelhou o poder estatal e subordinou a economia nacional à nova ordem econômica mundial.
A proposta de “cinco EMBRAERs” a que se refere Chico de Oliveira, apesar de não explícito, é uma alusão ao poder competitivo da 4ª maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo que joga um papel importante na área de desenvolvimento de tecnologia. Depreende-se que, assim como Vargas criou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (CRVD), a Petrobrás, a Eletrobrás, o sistema Embratel, entre outras empresas públicas; Lula tenha a ousadia de Vargas e recoloque em curso um projeto de pesado investimento estatal em nichos produtivos que tornem o país competitivo internacionalmente, alavanque o crescimento econômico, reafirme a soberania nacional, assim como aconteceu no pós-30.
Uma contestação ao que sugere Francisco Oliveira pode ser feita: o investimento estatal em setores produtivos que retroalimentam o paradigma produtivo da sociedade industrial não seria uma contradição com o esgotamento desse modelo? Ainda mais quando se têm em conta a crise ambiental e a urgência que ela apresenta para o conjunto da humanidade? Em outras palavras: já adentramos na Revolução Informacional, e insistir no paradigma produtivo da Revolução Industrial não seria um erro que a médio-prazo pode apresentar mais reveses do que benefícios ao país?
Retornaremos a essa temática. Por ora, destaque-se que aqui reside um tema da maior importância para uma esquerda que se pretende verdadeiramente revolucionária. Não se pode mais desconectar o tema da economia ao da ecologia. O crescimento econômico, mantra repetido por todos, e a toda hora, não é necessariamente desejável quando compromete a bios planetária. Considerando-se a emergência da economia do imaterial, já não estaríamos diante de outras possibilidades para (re)pensar um projeto radicalmente distinto do que até então temos como referência?
(Ecodebate, 21/02/2009) publicado pelo IHU On-line, 20/02/2009 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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