Davos e Belém têm enfoques tão diferentes que nem parecem tratar dos mesmos problemas, artigo de Washington Novaes
Estão falando de um só mundo? É curioso – e instrutivo – acompanhar pelos jornais o que acontece simultaneamente no Fórum Econômico de Davos, o mais importante palco de discussões empresariais no mundo, e no Fórum Social Mundial, em Belém do Pará, uma das mais importantes reuniões do pensamento dito alternativo sobre as questões econômicas, sociais, ambientais e energéticas. A diversidade dos enfoques é de tal ordem que nem sequer parecem tratar de problemas entrelaçados no mesmo mundo.
[O Estado de S.Paulo] Pode-se começar por Davos, onde a tônica foi a do pessimismo – a ponto de uma pesquisa da Price Waterhouse ali citada indicar que apenas 34% dos empresários acreditam que num prazo de três anos o mundo estará recuperado da crise financeira. Duas das principais figuras a reforçar o pessimismo foram o economista Nouriel Roubini, um dos raros a antecipar já há alguns anos que a débâcle viria, e George Soros, o megaespeculador. Este acha pura e simplesmente que “o sistema financeiro global entrou em colapso e está respirando por aparelhos”, numa crise mais grave que a do início da década de 1930. A seu ver, para salvar do contágio e do desastre os países “pobres e emergentes”, as nações industrializadas deveriam criar um fundo de US$ 1 trilhão, a ser gerido pelo FMI. Já o primeiro-ministro chinês, Wen Jibao, entende que, se os países mais ricos geraram a crise, precisam agora assumir a responsabilidade de criar uma “sociedade mundial mais justa, igualitária, estável”. Responsabilidade maior dos Estados Unidos, que se afundaram no “endividamento e no consumo excessivo”.
Na verdade, qualquer análise é muito difícil, já que ninguém sabe a extensão real da crise. Afirma-se que os ativos financeiros no mundo rondam hoje a casa dos US$ 860 trilhões, quase 15 vezes o produto bruto anual no mundo. Que relação real tem isso com ativos concretos, e não apenas com papéis? Quanto está relacionado com os chamados “ativos podres”? Quem pode dizer o que corre e o que não corre risco de ser atingido? Por isso mesmo, alguns bancos preferem reter o dinheiro liberado pelos governos para créditos e aplicá-los em papéis garantidos pelos governos (inclusive no Brasil).
O fato é que o FMI atualizou suas contas de perdas, de US$ 900 bilhões para US$ 2,2 trilhões – e os governos norte-americano, europeus e japonês a cada semana divulgam novas “generosidades” e estatizações de bancos falidos. Fala-se até em criar, aqui e ali, bad banks, para comprar os “ativos podres”. Mas o fato é que o sistema continua a não se aguentar sobre as próprias pernas. Nouriel Roubini tem dito que não haverá recuperação econômica ou financeira este ano. A OCDE acha até que haverá queda no comércio mundial em 2009. E que mesmo no Brasil as exportações ficarão em nível inferior ao de 2008.
Mas há ainda outra interrogação incômoda a que se tem fugido na discussão: quem pagará o imenso volume de dinheiro que os governos dos países industrializados estão destinando à salvação de bancos e outras instituições financeiras? Os pagadores de impostos em cada país? Mas os tributos não estão sendo reduzidos ali para incentivar o consumo e evitar a depressão? Ou haverá aumento dos impostos apenas para os mais ricos? Vai-se transferir para o Terceiro Mundo? Se não, vai-se agravar o déficit orçamentário em cada país? E como ele será financiado no mundo em crise, quando até a China, maior tomadora de títulos norte-americanos, está em retração (os EUA já devem mais de US$ 10 trilhões)? E é irresistível não citar mais uma vez o diretor-geral da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, que lembrou bastarem US$ 20 bilhões de dólares por ano para em uma década eliminar a fome de 1 bilhão de pessoas no mundo, ou 150 vezes menos do que já foi destinado desde 2008 aos bancos.
Nesse panorama, em que a Organização Mundial do Trabalho prevê que mais 51 milhões de pessoas poderão perder seus empregos no mundo (aumentando o contingente de desempregados para 191 milhões), a previsão de expansão do PIB brasileiro em 2009 pelo FMI caiu de 3% para 1,8%. E uma das áreas já mais prejudicadas globalmente parece uma das mais urgentes: a do clima. A própria União Europeia, que vinha assumindo a vanguarda das negociações e propunha contribuir com 30 bilhões anuais para um plano de redução das emissões nos países ditos em desenvolvimento – em troca de uma redução de 30% em suas emissões de gases poluentes, até 2020 -, agora recuou: quer a meta da redução, mas sem aporte financeiro.
O presidente Lula (que não foi a Davos), em seu pronunciamento no Fórum Social Mundial, afirmou ser indispensável juntar as questões da crise econômica com a alimentar, a ambiental e a energética. Tem razão, mas não concretiza alternativas. E dificilmente se encontrará solução isolada para a crise econômica se ela continuar – como tantos têm mostrado em Belém – desligada da realidade concreta, dos níveis insuportáveis de consumo no mundo (já 30% além da capacidade de reposição da biosfera terrestre), das desigualdades no consumo (os países industrializados respondem por quase 80% do total), dos dramas do clima (de novo, a responsabilidade maior dos desenvolvidos), da questão das energias – enfim, do novo mundo que terá de ser construído. Ao que parece, entretanto, o Fórum Social Mundial continua a sofrer do mesmo problema que o persegue desde o primeiro ano: há uma quantidade extraordinária de discussões, um volume impressionante de informações que circula, milhares de propostas. Mas tudo acaba confinado quase apenas aos participantes diretos – sem uma difusão necessária pela comunicação e outros meios.
Seria uma oportunidade excepcional de mostrar que o Brasil é exatamente um dos países com maior possibilidade para um novo mundo, exatamente por ter tudo de que a humanidade precisa para um novo modelo: território continental, sol, recursos hídricos abundantes, de 15% a 20% da biodiversidade global (o ser humano depende de 40 mil espécies, diz a ONU), energias limpas e renováveis (para não comprometer o clima). Mas lhe falta uma estratégia capaz de partir daí, inclusive para manter a Amazônia, que, segundo o bispo Erwin Krautler, poderá praticamente desaparecer em 30 anos (diz o PNUMA que a Amazônia toda perdeu 17% da floresta entre 2000 e 2005). E sem estratégia, com uma matriz energética confusa e desperdiçadora, cortando recursos dos Ministérios de Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente e ministros batendo boca em público sobre o Código Florestal, tudo será muito difícil.
* Washington Novaes é jornalista
*Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo
[EcoDebate, 07/02/2009]
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