Por um novo Pacto Ecológico, artigo de Claudemiro Godoy do Nascimento
[EcoDebate] Os problemas que a humanidade enfrenta podem ser considerados insignificantes diante da ameaça concreta à vida do ser humano. A extinção do ser humano é uma possibilidade real. Não se trata de messianismos ou de tipos de convulsões coletivas fundamentalistas de mortes em massa em nome de um sistema religioso. Pelo contrário, são os próprios seres humanos que estão promovendo essa possibilidade real de extinção, de desaparecimento, do fim.
Na noite do dia 24 de janeiro, na cidade de Belém – Pará, durante o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, teve-se um momento histórico com três personagens que lutam e defendem um novo pacto ecológico para humanidade. Não foi um debate e, muito menos, palestras para ouvintes cansados de um dia de atividades variadas. Foi um momento sublime de diálogo, de construção do “pathos” utópico, de amor e compaixão para com a vida que se manifesta em toda natureza. Nós, homens e mulheres, somos parte desse Todo ambiental, ecológico, natural e cultural.
Sob a mediação do Procurador da República no Estado do Pará, Felício Pontes, os mais de 1.000 participantes do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação tiveram a oportunidade de ver, aprender, escutar, aplaudir e resgatar os sonhos com dois personagens históricos da luta popular por um mundo melhor, a saber: a Senadora Marina Silva, acreana, seringueira, mulher e com uma humildade que a torna forte e guerreira nos momentos necessários; e Leonardo Boff, teólogo da libertação, ecologista, cristão no mundo, educador e como ele mesmo se intitula: “um agitador social”, função do intelectual engajado. Ambos dialogaram a partir do tema: “A vida do Planeta desde a Amazônia”.
A abertura do diálogo foi realizada pelo Procurador da República, Felício Pontes, que assumiu a tarefa de introduzir o tema. Sua tarefa como representante da Justiça no Estado do Pará vem se destacando pela defesa das causas populares e da ecologia. Sua introdução se destaca pelo compromisso que assume na defesa jurídica aos seringueiros, camponeses, indígenas, povos da floresta e com a própria Amazônia. Para ele, vivemos o choque entre dois mundos, o choque entre dois modelos de desenvolvimento, a saber: o modelo predatório e o modelo sócio-ambiental.
O modelo predatório nega a existência do ser humano, o direito às pessoas em suas condições materiais, existenciais, biológicas, econômicas e sociais o que permite a geração de violência no campo e na floresta com forte imposição do trabalho escravo e a morte de trabalhadores rurais, indígenas e agentes de pastoral. Tais episódios podem estão atestados nos relatórios da Comissão Pastoral da Terra que a cada ano lança um Relatório dos Conflitos no Campo. Este modelo se encontra pautado em quatro eixos predatórios: madeira, pecuária, extração mineral e monocultura agrícola. Para estes “homens de negócio” a floresta é um obstáculo que gera o latifúndio e a concentração de renda. Além disso, este modelo predatório consegue financiamento público para atingir os interesses capitalistas por meio de três bancos públicos: Banco da Amazônia, Banco do Brasil e a SUDAM. Com dinheiro público se financia a cultura de morte e o modelo predatório que se torna a fonte especulativa mais perigosa na Amazônia, em especial, na região Sul do Pará.
O modelo socioambiental, utópica e urgentemente necessária, permite à floresta uma possibilidade de viver e que os povos de que dela dependem utilizem a metodologia do socioextrativismo interrompendo a cultura predatória. O Procurador da República, Felício Pontes, conclama para a urgência das demarcações das terras indígenas, quilombolas, seringueiros e ribeirinhos. Atualmente, 4% da Amazônia já é uma reserva extrativista que deve ser mantida e ampliada.
Por sua vez, a Senadora Marina Silva iniciou sua intervenção afirmando que a destruição da Amazônia significa um grave problema de desequilíbrio. O que seria a Amazônia para o mundo? Pulmão? Coração? Marina Silva nos deixa uma nova alternativa. A Amazônia é o rim do mundo, já que dessa porção continental entra e saí muita água que doa vida aos seres da floresta e à própria floresta. Por isso, pensar a Amazônia significa pensar outro tipo de democracia que possibilite o diálogo a partir de forças mediadoras. Também, pensar a Amazônia é pensar os conflitos de interesse. São os mesmos interesses de capital predatório que gera o que podemos chamar de “crise civilizatória”.
Seria o momento de mudar os paradigmas? As mudanças são frutos das mãos do próprio ser humano que desde a Revolução Industrial assumiu como fundamento o paradigma da dominação, do predatório, da barbárie, do genocídio e do etnocídio, da cultura e do pensamento único… Trata-se de um paradigma único e absoluto, fruto de uma visão antropocêntrica. Na tradição judaico-cristã, Deus cria primeiro todas as coisas antes de criar o homem. Assim, poderia o homem colocar-se acima de tudo e de todos com uma argumentação infantil e fundamentalista que legitima a lógica dominante?
Vejamos: “Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra” (Gen 1, 28). Como se trata de interesses, os homens utilizam ideologicamente este versículo isolado sem nenhuma hermenêutica dos conceitos para justificar o paradigma antropocêntrico por meio da Bíblia. Dominai significa compaixão, cuidado e responsabilidade para com a Terra onde não existe a barbárie da destruição.
Com o extermínio da floresta há um extermínio dos povos tradicionais que ali vivem, em especial, os 60 milhões de índios em toda América Latina. Por isso, a razão instrumental do Ocidente, chamada pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos de “razão indolente” já não responde mais aos problemas da humanidade. Para que tenhamos uma idéia do problema indolente, atualmente, temos 1/3 (um terço) da humanidade que sofre com a desertificação afetando 20% da soberania alimentar mundial. Por outro lado, 75% de CO² produzido pelo Brasil se devem ao desmatamento das florestas amazônica, cerrado e atlântica. Os países ricos produzem 80% de CO², sendo os Estados Unidos o campeão de emissão de CO², em torno de 20%. Os países emergentes juntos são responsáveis pelos 20% que restam.
Para Marina Silva, precisamos de um diálogo com os saberes por meio da troca de experiências com culturas diferentes que respeitam e valorizam os saberes narrativos, em especial, dos povos indígenas. Durante 500 anos de chegada dos invasores europeus, no Brasil foram massacrados 1 milhão de índios em cada século o que podemos caracterizar uma estimativa de 20% do total de mortos durante a II Guerra Mundial. Atualmente, são 500 mil índios no Brasil. Dessa forma, seria uma grande injustiça trocar 18 mil índios da Raposa Terra do Sol por 06 arrozeiros grileiros no Estado de Roraima. Isto seria uma ameaça à soberania nacional.
Concordamos com a reflexão serena de Marina Silva onde afirmou que nos alimentamos por muito tempo do pensamento cartesiano e seu dualismo constante. Para a lógica cartesiana, as coisas ou são boas ou são más. Por isso, o pensamento cartesiano apresenta um profundo sistema maniqueísta que o fundamenta. Para a Senadora Marina Silva precisamos superar a dicotomia cartesiana entre saber versus conhecer. Segundo a ex-ministra do meio ambiente “precisamos pensar o mundo a partir da Amazônia e pensar a Amazônia a partir do mundo”.
Além disso, 80% da população mundial vivem no estado de “homo sapiens” e 20% destes se encontram no estado avançado “homo sapiens global” onde somente os melhores, os ricos e os que detêm o monopólio do capital é que conseguem atingir. Por isso, mais um motivo para mudarmos de paradigma, de modelo, numa visão de desenvolvimento e de progresso marcados profundamente por uma lógica de aceleração mercantil. Com isso, somos chamados ao alerta em não acreditar nos projetos que homogeneízam sonhos e as utopias e que desrespeitam a diversidade.
Por sua vez, Leonardo Boff iniciou seu diálogo afirmando que a Floresta Amazônica é um patrimônio da humanidade, com um ecossistema riquíssimo. Os povos indígenas são os verdadeiros ecologistas e educadores que nos ensinam as representações simbólicas do significado “ser cultural”. A natureza, por excelência é um grande sistema vivo.
Para Leonardo Boff, a crise do capital que estamos vivenciado na atualidade “tem tudo para ser uma crise final”, pois, ou nos adequamo-nos às condições da Terra, enquanto filhos da Terra que somos ou então padeceremos em nossa imbecilidade paradigmática e morreremos juntos. Diante de tudo isso, Leonardo Boff apresentou a proposta da Declaração Universal do Bem Comum Planetário que está sendo preparado por vários intelectuais, entre eles, François Houtart.
Os fundamentos éticos dessa Declaração deverão estar pautados sob a égide de 4 (quatro) Pactos que minimizem o econômico como paradigma fundante da sociedade capitalista. São eles: 1) O Pacto ecológico natural: responsável por proteger a Terra; 2) O Pacto ecológico social: responsável por unir todas as esperanças das nações e unilateralmente as vontades de um único Império absoluto; 3) O Pacto ecológico cultural: que deve estar baseado na promoção do pluralismo, da tolerância e do aphantesis (encontro) da humanidade com os ecossistemas, os biomas, com a vida do Planeta; 4) Por fim, o Pacto ecológico ético-espiritual: fundado na dimensão do cuidado, na compaixão, na responsabilidade de todos com tudo.
Evidentemente, estes pactos não podem ser dicotomizados e classificados hierarquicamente, pois estão por vir-a-ser a partir da superação dessa lógica cartesiana que persegue nossas consciências. Seria realmente uma verdadeira lição para os analfabetos ecológicos dos Ministérios da Agricultura e da Fazenda que em nossa realidade brasileira andam privilegiando o modelo predatório estimulado pelo agronegócio e pelo hidronegócio.
São questões importantes apontadas por Leonardo Boff que nos indica que a Terra poderá continuar vivendo mesmo sem a vida humana por falta de amor às dimensões libertadoras desse ser humano, principalmente, em tempos de ameaça da vida promovida pelas próprias pessoas. Uma prova disso é o orçamento militar de todo o Planeta que, de forma inadmissível, gira em torno de 1 Trilhão e 200 Bilhões de Dólares. Destes, 24 Bilhões poderiam resolver metade dos problemas da fome no mundo. Somente na guerra do Iraque foram utilizados 400 Bilhões. Trata-se realmente de uma razão indolente, irracional e anti-humana.
Podemos concluir com Marina Silva e Leonardo Boff que os povos da terra, os pobres do mundo, os povos indígenas, seringueiros, camponeses e ribeirinhos não podem ser condenados a viver neste vale de lágrimas. Outro mundo é possível? Outra sociedade é possível? Outros paradigmas são possíveis? Serão possíveis desde que partamos para o enfrentamento e o rompimento com a razão indolente deste capitalismo predatório que mutila milhões de vidas a uma situação de morte anunciada. Eticamente podemos realizar este novo pacto ecológico e estamos no limite do tempo para fazê-lo. Dependerá de nós, dessa geração, anunciar este pacto e denunciar o velho paradigma em crise.
Claudemiro Godoy do Nascimento. Filósofo e Teólogo. Mestre em Educação/Unicamp. Doutorando em Educação/UnB. Professor da Universidade Federal do Tocantins – UFT/Campus de Arraias.
* Artigo enviado por Frei Gilvander Moreira, colaborador e articulista do EcoDebate
[EcoDebate, 03/02/2009]
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