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Artigo

Janeiro na História, artigo de Carlos R. Spehar

cuidando do nosso planetinha

[EcoDebate] Janus Bifronte, este era o nome do deus romano que marcava as mudanças. Tinha duas faces: uma voltada para o passado e outra para o futuro. Daí janeiro, o nome dado ao primeiro mês do ano.

Quando se estabeleceram os referenciais, isto é, a contagem do tempo, ninguém parava para pensar sobre quantos janeiros contaria a humanidade. Por longo período, o mês marcava a passagem para o futuro, de esperanças, sem denotar ameaças; o passado devia ser esquecido, pois representava o pior, enquanto o melhor estava por vir.

Aí pode estar o equívoco. No processo, que é contínuo, não se pode estabelecer,a priori,o ponto de virada. Ou seja, as mudanças não param ou não se desencadeiam, como se tudo estivesse em compasso de espera. O ponto de saturação, para desencadear a mudança depende, como em química, do poder tampão. Quanto maior este último, mais tempo leva para ocorrer o fenômeno.

Na ânsia por superar as limitações, o ser humano acumulou-se de reforços ao longo da evolução. Esses mesmos, no conjunto, podem ser chamados de poder tampão da psique humana. Em química, significa resistência à virada. Tamponados, estamos com a sensação de poder, como nunca antes na história, com bolha econômica e tudo!

Vale a pena relatar experiência pessoal, que ajuda a perceber o relativo, durante visita à Pyongyang, Coréia, em missão de pesquisa e desenvolvimento, apoiados pela Organização para a Agricultura e os Alimentos (FAO). Lá, buscamos identificar oportunidades de avanços na produção de soja. A planta é originária daquela parte to mundo e constitui alimento básico da população. Daí o desafio constrangedor: transmitir conhecimento e tecnologia da experiência brasileira, àqueles que domesticaram a planta.

Longe de questões políticas, além do trabalho proposto, o que se destaca é a convivência com o povo. Caloroso, ainda que com reservas, e educado, nos fez lembrar que somos mais próximos do que parecemos. Nas tardes, após reuniões de trabalho, aproveitando o tempo para longas caminhadas e juntando-me ao grande número de transeuntes, pensava. No presente, olhando para o passado, surgiram lembranças de períodos na infância, quando a mesma cena nos vinha à mente: pessoas caminhando, conversando, convivendo e descobrindo mais sobre elas mesmas.

Os tempos foram mudando e, aos poucos, fomos nos inserindo em um modelo voraz de consumo, que se irradiou feito praga. Na realidade, nos tornamos, cada vez mais, reféns dele; somos, ao mesmo tempo, poderosos e vulneráveis. Essas são as duas faces que passamos ter, embora tentemos esconder, a todo custo, a última. É como Janus se repetindo continuamente, com diferentes roupagens.

Na continuidade da análise, pensava que mudamos de ameaças. Antes, elas vinham de fora; hoje elas vem de dentro de nós. Antes, por força de circunstância, tínhamos solidariedade. Nos ajudávamos mutuamente, para evitar que catástrofes ou calamidades atingissem a todos; nos sentíamos desamparados. Hoje, poderosos, nos isolamos, de preferência dentro de um veículo. Basta um desastre de grandes proporções para desvendarmos o vulnerável que está escondido em nós.

Portanto, nas caminhadas pelas calçadas de Pyongyang, com ruas quase desprovidas de carros, muitos pedestres indo de um ponto a outro entre dois transportes públicos, pensava estar diante de um cenário de tempos idos. Era como retornar, com a imagem de Janus sempre à mente.

Aí nos ocorreu pensar nas dependências da matriz energética, a que temos hoje no mundo, quase totalmente alicerçada nos combustíveis fósseis; nos números de veículos aumentando, a devorar o remanescente do petróleo; no agro-combustível que, em última análise, depende de fertilizantes, que, em parte, são produto das transformações do petróleo; no aumento de incertezas climáticas, decorrentes do uso de petróleo e carvão; nas especulações, como aves de rapina que iniciam a devorar e partilhar a presa antes que ela morra – preços flutuantes, especulações, jamais sonhadas em passado recente.

Então surge a outra face de Janus, aquela voltada para o futuro. De repente, as duas épocas se encontram. Portanto, a imagem de Pyongyang de hoje pode, muito bem, ser a do futuro que nos aguarda. Se pensarmos assim, aquelas pessoas, transeuntes de longas caminhadas, sofrerão menos. Contribuem com sua cota de sacrifício, em um mundo desgastado, nas peregrinações diárias. Ainda encontram tempo para conversar, apreciar uns aos outros, se re-descobrindo, nessa extraordinária plasticidade humana.

Estamos escravos de nós mesmos. Temos reduzida capacidade em substituir a matriz energética, de tão dependente que está o capital. Investiu-se no fóssil, exacerbou-se o consumo – modelo americano, hoje seguido por emergentes, sem a preocupação séria e global com o momento em que tudo se acaba.

Com o fim anunciado da era petróleo, se aproximando na rapidez do novo mundo virtual, vários setores da atividade humana estarão ameaçados, inclusive a produção de fertilizantes. Estes terão impacto na agropecuária, como estamos presenciando nos alimentos e agro-combustíveis. Sem eles, nada do que somos persiste.

A humanidade está em um círculo vicioso que só pode ser vencido se, por exemplo, alguns acumuladores de riqueza, como benfeitores mundiais, se revelarem idealistas. A proposta seria aplicar parte do que conquistaram, a partir do modelo atual, para buscar soluções inovadoras.

Se não houver atitudes, não sairemos do impasse, mergulhando cada vez mais nas incertezas, com a sensação de poder.

Portanto, teremos que pensar em soluções criativas, voltando a desenvolver habilidades negligenciadas. A solidariedade está viva dentro de nós, bastando que nos tornemos mortais novamente. A temporária falta de ameaças, propiciada por esse novo mundo virtual, cheio de atrativos e cores, nos faz imaginar além do possível.

A pergunta que se pode formular é a seguinte: quantos janeiros ainda faltam para que ações concretas e participativas sejam tomadas?

Carlos R. Spehar, Professor, Universidade de Brasília

[EcoDebate, 22/01/2009]

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