Enxofre no diesel, artigo de Ricardo Abramovay
“Tendo como protagonistas uma empresa e um setor tão inovadores, o caso do enxofre no diesel torna-se ainda mais intrigante”
[Folha de S.Paulo] Há um abismo entre o avanço tecnológico e organizacional da Petrobras e das empresas que compõem a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores e o atraso de seu comportamento no caso do enxofre no diesel.
Enquanto nos países desenvolvidos investimentos são feitos para reduzir a presença de 10 a 15 partes por milhão de enxofre no diesel, aqui a meta de baixar de 2.000 para 500 ppm, fora das regiões metropolitanas, e para 50 ppm nas regiões metropolitanas é adiada.
Tendo como protagonistas uma empresa e um setor altamente inovadores, a postergação torna-se ainda mais intrigante. Uma comparação internacional talvez ajude a entender melhor o problema. Nos Estados Unidos, a relação entre empresas, meio ambiente e sociedade passou por quatro fases. A primeira delas (anos 1960) é marcada pela arrogância e pela negação: segundo a indústria, o derramamento de óleo em Santa Barbara, na Costa Oeste norte-americana, em 1969, por exemplo, não provocaria efeitos danosos à saúde.
Da mesma forma, uma das maiores companhias químicas do mundo respondia ao clássico de Rachel Carson, “A Primavera Silenciosa” (1962), com a ameaça de uma hecatombe alimentar, caso os agrotóxicos deixassem de existir do dia para a noite (“The Desolate Year”, “Monsanto Magazine”, outubro de 1962).
A segunda etapa foi a da regulação, nos anos 1970: forma-se a Environmental Protection Agency (a agência ambiental norte-americana), que dita regras e recebe forte oposição industrial. Nesse momento, a relação entre ativistas, governo e firmas é, fundamentalmente, de confronto. Durante os anos 1980, os temas ambientais começam a fazer parte da pauta das empresas. Sob pressão social direta, elas implantam normas voluntárias e constituem em seu interior diretorias ambientais com poder real e que vão muito além de recomendações puramente técnicas.
A quarta etapa tem início no final dos anos 1980 e caracteriza-se por dois traços fundamentais. Em primeiro lugar, a cultura corporativa contemporânea consagra a expressão “stakeholder” (o conjunto dos interessados naquilo que faz a firma, muito além de seus acionistas) como parte ativa de sua gestão. Além disso, os temas socioambientais incorporam-se à estratégia empresarial a partir da permanente relação que o setor privado mantém com o setor público e associativo.
Essa rápida história do que Andrew Hoffman, em “From Heresy to Dogma” (da heresia ao dogma, Stanford Business Books) chama de ambientalismo corporativo oferece parâmetros a partir dos quais se pode analisar o desrespeito à resolução 315 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, de 2002, que previa diminuição drástica do teor de enxofre no diesel a partir de janeiro de 2009.
A Petrobras e a indústria automobilística assumiram, nesse caso, atitude semelhante à das grandes empresas norte-americanas até o final dos anos 1970.
Em primeiro lugar, a Petrobras afirma não estar descumprindo a lei, ignorando o que marca a atitude estratégica das grandes corporações mundiais: não se trata apenas de obedecer à lei, mas de antecipar-se à contestação social, incorporando as demandas da cidadania a seu processo de planejamento. A Agência Nacional do Petróleo não regulamentou o que o Conama decidira em 2002.
Em vez de se adiantarem, zelando pela saúde pública, Petrobras e o setor automobilístico optaram pelo caminho de seguir estritamente a letra da lei ou, pior, explorar suas ambiguidades. O resultado é um sério comprometimento de sua reputação.
O segundo argumento veiculado publicamente pela Petrobras é que o enxofre é menos prejudicial à saúde que outros elementos nocivos contidos nas emissões. Essa ideia foi posta abaixo pelo trabalho científico de Paulo Saldiva, professor titular da Faculdade de Medicina da USP, mostrando a natureza letal, para as populações metropolitanas, do diesel que são obrigadas a respirar.
O motor a explosão interna e os combustíveis fósseis permanecerão entre as bases materiais da civilização contemporânea por boa parte do século 21. Se, no caso do enxofre no diesel, de solução técnica amplamente conhecida, a conduta foi essa triste mistura de rejeição das evidências científicas com o legalismo burocrático, cabe perguntar: o que vai ocorrer quando estiverem em jogo situações de muito maior risco socioambiental, como as representadas pelos impactos potenciais das novas jazidas de gás e do pré-sal sobre os ecossistemas e as populações vivendo nas áreas litorâneas do Sudeste brasileiro?
Ricardo Abramovay é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, coordenador de seu Núcleo de Economia Socioambiental e pesquisador do CNPq.
Artigo originalmente publicado na Folha de S.Paulo, 05/01/2009.
[EcoDebate, 07/01/2009]
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