Fracasso da COP 14: Notícias frias da gélida Poznan
Nos pontos críticos e fundamentais do debate climático internacional – transferência de tecnologia, novas metas de cortes de emissões e quem paga a conta – a conferência do clima das Nações Unidas, CoP-14, realizada em Poznan (Polônia) pouco avançou. Matéria de Daniela Chiaretti, do Valor Econômico, 23/12/2008.
Comam menos carne”. O economista indiano Rajendra K. Pachauri, presidente do braço científico da ONU para mudança climática, o IPCC, encarou os 40 jornalistas que o entrevistavam na Polônia e prosseguiu: “Não estou dizendo para que o mundo se torne vegetariano. Só estou recomendando que se coma menos carne.”
Era uma tarde gélida de dezembro em Poznan, onde durante doze dias e várias madrugadas, 11.600 pessoas concentradas numa espécie de Rio-Centro tentavam salvar o planeta. Eram políticos, cientistas, ambientalistas, burocratas, empresários e jornalistas – cerca de mil jornalistas, mas só uns cinco dos Estados Unidos, sinal evidente que o time de negociadores do governo George Bush não produziria muita notícia. Os diplomatas discutiam em reuniões intermináveis e de linguagem cifrada temas complexos como garantir o futuro das florestas ou a transferência de tecnologia dos países ricos aos pobres. No final da conferência do clima das Nações Unidas, a chamada CoP-14, às 3h30 da manhã do sábado 13 de dezembro, o saldo era melancólico. Muito esforço por quase nada.
Pachauri, um dos cientistas mais célebres do mundo quando o assunto é clima, Nobel da Paz em 2007 junto com o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, disse com voz serena e semblante de faquir que ou se faz algo rápido, e já, ou será tarde demais. Falava supondo que seus interlocutores entendiam os meandros e a gravidade do problema. “A questão da carne é a sua cadeia produtiva.”
Ele não citou o Brasil, mas a pressão da pecuária sobre a floresta amazônica é nacional e internacionalmente conhecida. A prática das últimas décadas costuma seguir esta trilha: desmata-se para colocar gado no lugar da floresta, e desta forma contribui-se para o aquecimento global jogando mais CO2 na atmosfera. Mas também se desmata para plantar soja e alimentar com grãos os rebanhos da Europa e dos Estados Unidos. No transporte dos produtos de lá para cá, mais CO2 é emitido. Para piorar, o gado, em seu processo digestivo, libera metano, um gás-estufa 25 vezes mais nocivo para o aquecimento da Terra que o CO2. Em termos econômicos, tanto carne como soja são fundamentais para as contas brasileiras. Em termos climáticos, cortar árvores para pasto e soja é uma demência completa.
Encontrar uma forma de remunerar quem preserva as florestas foi um dos pontos que mais avançou nas discussões internacionais em Poznan. Mas a CoP-14 era na origem uma “CoP do meio”, uma cúpula entre a conferência de Bali, em 2007, e a de Copenhague, em 2009, onde se espera saia o acordo mundial sobre clima. Assim, numa reunião processual e não decisória, mesmo o documento sobre REDD, sigla que define a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, estava fadado a ser genérico e vago. O debate não passou nem perto de discutir se o dinheiro para salvar as florestas virá de fundos alimentados por doações voluntárias dos países ricos aos países com florestas (como o Fundo Amazônia, do Brasil) ou se os recursos estarão atrelados ao mercado de créditos de carbono. Ou se haverá espaço para ambas as formas. Mesmo singelo, o texto produziu um dos momentos mais acalorados da fria Poznan.
O nó foi a retirada da palavra “direitos” dos povos indígenas e comunidades tradicionais do texto final sobre florestas e REDD feito pelo órgão técnico da Convenção de Mudança Climática da ONU. Como nas Nações Unidas as decisões ou são aprovadas por consenso ou não acontecem, a pressão dos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e Canadá retirou o termo “rights” da versão final. Os argumentos foram diversos, mas o mais citado era a idéia de evitar movimentos territoriais separatistas. Por trás de tudo, a pergunta com “a resposta de um milhão de dólares”, dizia Paulo Adário, diretor da Campanha Amazônia do Greenpeace. “O nó é este: quem vai ficar com os créditos de carbono por ter preservado a floresta? O país, o Estado, a região, as comunidades tradicionais, os índios?”
“Ficamos chocados”, dizia Paula Moreira, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), na entrevista coletiva diária que ONGs dão nas CoPs, sinalizando os pontos de conflito nas negociações. “Este mapa da Amazônia mostra que nas terras indígenas ocorreu só 1,1% de desmatamento, o que é menos até do registrado nas áreas protegidas”.
“No rights, no REDD”, ouvia-se como um mantra no corredor principal do pavilhão de Poznan. Um grupo de manifestantes protestava contra a exclusão de seus direitos e talvez da remuneração futura pelo serviço ambiental prestado. Steve Schwartzman, diretor de política florestal do Environmental Defense Fund (EDF), uma ONG americana defensora de projetos de REDD atrelados ao mercado de carbono, procurava ressaltar “o avanço” no texto fechado pelos negociadores. “Não é o que as populações indígenas querem e merecem, mas isso garante que eles sejam ouvidos no processo.” O texto não foi mudado e o tema ficou no ar.
Ressurgiu na madrugada final, na última plenária, nas palavras do representante da Dinamarca, que esperou o documento ser aprovado por consenso para fazer a ressalva: dizer que tinham dado seu OK para não criar caso, mas que não concordavam com a supressão dos direitos dos povos indígenas. Em seu discurso no dia em que os ministros falaram em plenário, o brasileiro Carlos Minc mencionou o direito de populações indígenas e tradicionais “serem dotadas de meios para uma sobrevivência digna, mantendo a floresta em pé e contribuindo de maneira decisiva para a preservação da biodiversidade”. Minc discursou para 3 mil delegados. Vestia, claro, colete. Despediu-se com suas tradicionais “saudações ecológicas e libertárias”.
No dia seguinte à polêmica de REDD e direitos indígenas, a edição de “Eco”, newsletter de uma folha feita diariamente pelas ONGs e lida por todo o circo climático nas CoPs, era inclemente: “Os governos ainda não entenderam que os povos indígenas e comunidades tradicionais não são apenas uma ‘questão metodológica’ “, metralhava o artigo. Citava a República Democrática do Congo, onde 60% dos habitantes, “umas 40 milhões de pessoas, ou são povos indígenas ou dependem da floresta.” “Qualquer um que imagine que REDD pode significar uma redução de emissões permanente e confiável sem o envolvimento destas pessoas em um processo totalmente includente bebeu muita Zubroska.” A marca da fantástica vodca polonesa – “aquela que tem dentro a erva do bisão”, segundo a propaganda da bebida – foi uma das palavras mais faladas pelos estrangeiros em Poznan. A outra, dentro da conferência, era REDD – a sigla dominou centenas de eventos paralelos às rodadas de negociações que ocorriam num zoológico de salas chamadas “Cisne”, “Ovelha Branca”, “Raposa” ou “Aesculapian Snake”, uma cobra comprida que existe na Europa. Mas o texto final de REDD, depois de uma semana de debates, ficou mesmo anódino.
O interesse pela preservação das florestas pode esconder um equívoco. É para onde miram 10 entre 10 delegações dos países industrializados que, pelo Protocolo de Kyoto, têm que reduzir, na média, 5% das emissões de gases-estufa em 2008-2012 em relação aos níveis de 1990 (uma tarefa que muitos não têm cumprido e que os cientistas dizem que está muito aquém do que se deve fazer para evitar grandes catástrofes climáticas). Parece mais barato e mais fácil investir na preservação das matas que mudar toda a matriz energética suja de países como a Polônia, por exemplo, que tem no carvão praticamente sua única fonte de energia – e isto explica parte do frisson que as discussões de REDD tiveram em Poznan. “Não vamos fazer desta uma opção barata”, avisava o diplomata brasileiro Luiz Alberto Figueiredo Machado, chefe dos negociadores brasileiros e presidente do processo de negociação de longo prazo de Poznan. “Só é barato se a demanda for pequena. O que queremos? Manter para sempre as pessoas que vivem na floresta em casas precárias e carentes ou melhorar sua qualidade de vida?”. Ficou claro que este debate vai pegar fogo em Copenhague, em dezembro de 2009.
Outro ponto tenso e de solução postergada para a Dinamarca foi a tentativa de muitos países de colocarem as CCS dentro do MDL (conferências climáticas funcionam assim, por siglas). CCS é Carbon Capture and Storage, uma tecnologia que ainda não existe em escala comercial, mas que vem sendo pesquisada em todo o mundo, inclusive no Brasil, pela Petrobras. É o ovo de Colombo dos combustíveis fósseis: enterrar o CO2 das termoelétricas a carvão ou utilizá-lo para explorar petróleo sem soltá-lo na atmosfera. Arábia Saudita, para citar a voz mais eloqüente, queria que as CCS entrassem no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o MDL, previsto em Kyoto e que permite que países industrializados e com metas de redução possam cumprir seus compromissos investindo em projetos de tecnologia limpa em países em desenvolvimento. O MDL estava em revisão em Poznan. A maior crítica é que todos os projetos vêm sendo feitos na China, na Índia e no Brasil, e a África continua ao Deus-dará. Fácil entender que, com CCS, o mercado de carbono se voltaria ao carvão e o mecanismo ficaria ainda mais centralizado. O Brasil e a coalizão das pequenas ilhas resistiu fortemente ao pedido de inclusão. O texto acabou sugerindo mais estudos sobre a eficiência das CCS.
Poznan podia ter terminado, pelo menos, com um trunfo: mais dinheiro para o Fundo de Adaptação, uma urgência dos países-ilha, de nações sempre às voltas com inundações ou sofrendo pela maior aridez do clima. Os países do G-77 mais a China pediam mais dinheiro e um fundo mais ágil, de acesso mais direto. A única coisa que se decidiu foi o conselho do fundo. Ele continua sendo alimentado por uma fatia tímida de 2% dos recursos movimentados em projetos de MDL. Dá uns US$ 80 milhões atualmente. A ONG Oxfam calcula que são necessários US$ 50 bilhões ao ano para que os países mais vulneráveis se adequem às modificações que ocorrem devido às mudanças climáticas. Havia a proposta de se ter um percentual das outras modalidades que movimentam o mercado de carbono, mas os países desenvolvidos brecaram a sugestão. Ficou assim, sem mais recursos.
“Poznan era o meio do caminho, mas está claro que estamos bem atrás na agenda”, dizia desencantado Keith Allott, chefe de mudanças climáticas da WWF no Reino Unido, nas últimas horas da conferência. “Algumas coisas foram acertadas, mas o ritmo geral do progresso continua dolorosamente lento e não estamos vendo entendimento e confiança entre as nações desenvolvidas e as em desenvolvimento.” Allott mantém a esperança: “Em 2009 precisamos de um empurrão que coloque as negociações de novo nos trilhos”. Ele enxerga sinais encorajadores vindos do presidente eleito Barack Obama, que tem se cercado de um time de primeira linha de cientistas e experts em energia. “Vamos torcer para que o engajamento dos EUA no processo dê nova dinâmica nas discussões estagnadas que vimos em Poznan.”
O canadense Mark Lutes, analista político, de mudança climática e energia da David Suzuki Foundation, lembrava que o ponto mais impressionante do processo polonês foi a posição de liderança assumida pelos países em desenvolvimento empenhados em levar adiante as discussões. “Foi em parte uma resposta ao vácuo deixado pela União Européia, que estava centrada em seus debates domésticos do pacote de clima e energia”, ponderava Lutes. A legislação, que prevê os já anunciados cortes de emissão de 20% em 2020, foi aprovada pelos países da UE no último dia da conferência de Poznan.
“Os emergentes também ocuparam o vácuo deixado pelos negociadores dos EUA, que ficaram de lado esperando que o governo Obama tome seu assento.” Lutes também acha que as nações em desenvolvimento enxergaram a oportunidade de terem papel mais ativo no processo “protegendo seus interesses e direito de crescimento com a visão que um desenvolvimento diferente, de baixo carbono, é necessário e possível.”
A aparição de Al Gore em Poznan, no último dia do evento, foi como se um astro de rock tivesse baixado no plenário. A fila era grande na entrada. Ele domina o palco, sabe bem o que dizer. “Não podemos negociar com os fatos”, disse, incentivando as delegações a chegarem a algum lugar. Elogiou o Brasil, a China e a Índia. Os aplausos o interromperam quando mencionou a necessidade de se brecar a concentração de gases-estufa na atmosfera em 350 ppm, o que faria com que a temperatura do Planeta aumentasse só 1,5 °C e evitaria que os países-ilha submergissem completamente.
Gore saiu apressado e deixou, por algumas horas, um clima mais ameno no pavilhão. Não para um jornalista americano. “Não gosto dele”, dizia, na contramão do êxtase geral. “Quando ele concorreu à Presidência nem mencionou a plataforma ambiental. E já tinha escrito um livro sobre isso. Dizia que ambiente não elege ninguém.” Mesmo assim, por algumas horas reinou em Poznan a mesma atmosfera alegre que interrompia o marasmo todos os dias, às 18h, quando a trilha de “Parque dos Dinossauros”, de Spielberg começava a ser ouvida sucedida por gritos e palmas. É a hora em que as ONGs davam o “Fóssil do Dia” ao país que mais bloqueou as negociações – o troféu é um treco mambembe com um Tiranossauro Rex de plástico no centro. O Canadá ganhou quatro vezes. A União Européia também foi contemplada. A Itália levou o seu. Japão, Austrália, Estados Unidos, todos saíram premiados.
O momento mais efervescente de Poznan ficou no meio do caminho, na festa das ONGs que acontece sempre no final da primeira semana. Ali, diplomatas e ambientalistas tomavam cerveja e vodca enquanto discutiam os rumos do planeta. O alemão Martin Kaiser, coordenador de política florestal do Greenpeace Internacional, trocava impressões amazônicas com Bianca Jagger, a mais recente celebridade apaixonada pela Floresta. O biólogo Mike Shanahan, do IIED, uma instituição britânica que patrocina estudos que promovam o desenvolvimento sustentável no mundo, convidava delegados de Botsuana a participarem de um evento paralelo. Virgílio Viana, diretor geral da Fundação Amazonas Sustentável, contava como o Estado do Amazonas tem usado projetos de REDD para garantir recursos e preservar a floresta. Na pista de dança, ao som de música tecno, gente do Butão e da Mongólia dançava com italianos e russos.
Nos dias seguintes, nas salas de discussão, ficava claro que a confraternização tinha acabado. “Queremos um novo acordo”, disse a jornalistas, na última tarde, Joan Ruddock, vice-ministra britânica para mudanças climáticas. “Neste momento, não estamos considerando a segunda fase do Protocolo de Kyoto”. Foi a primeira vez que um representante de um país desenvolvido confrontou o que vem sendo defendido pelo G-77 mais China: a continuidade de Kyoto, com novos e fortes cortes de emissões pelos ricos e um distanciamento da curva crescente de emissões pelos emergentes. Os diplomatas não querem nem ouvir falar nisso: dizem claramente que levará muitos anos para acertar um novo acordo saindo do zero. A terceira via é modernizar Kyoto, pendurar novas metas e mecanismos e, talvez, mudar o nome de tudo para seduzir o Congresso americano, que tem urticária quando ouve o nome do Protocolo.
A nova agenda para Copenhague está acertada – em junho tem que estar pronto um texto de negociação. Todas as propostas estão no papel, compiladas por Figueiredo Machado, e é daí que vai sair o acordo. Nos pontos críticos e fundamentais do debate climático internacional – transferência de tecnologia, novas metas de cortes de emissões e quem paga a conta – Poznan nem chegou perto.
{EcoDebate, 29/12/2008]
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