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Crise Financeira Global: O ano em que o capitalismo estremeceu

crise financeira global
Imagem: Stockxpert

O mundo vem sendo confrontado com a pior crise econômica desde a década de 1930. Como uma metástase, a crise se espalhou rapidamente e contaminou a economia mundial. Insaciável em sua voragem não dá sinais de esgotamento e arrasta o mundo para uma recessão. Sob a perspectiva ideológica, a crise tendo o seu epicentro na maior economia mundial, abalou os mitos do liberalismo e colocou em xeque o ‘pensamento único’ que varreu irresistivelmente o planeta nas últimas décadas.

A “crise é o Muro de Berlim do livre mercado”. Assim a definiu Joseph Stiglitz, para quem, “a queda de Wall Street representa para o fundamentalismo do mercado o que a queda do Muro de Berlim representou para o comunismo”. Porém, os desdobramentos da crise revelam, como já predizia Marx, que crises são constitutivas ao capitalismo e servem até mesmo para depurá-lo e estão longe de significar o fim do mesmo, ao contrário, aos poucos vai ficando evidente que entre os maiores perdedores da crise estão os pobres. Nunca a máxima “capitalismo para os pobres e socialismo para os ricos” foi tão verdadeira.

A crise evidencia ainda a ausência de alternativas de uma esquerda anticapitalista. No máximo se chegou ao keynesianismo como remendos aos estragos promovidos pela crise financeira. A crise econômica manifesta também uma crise da esquerda.

O caráter, significado e desdobramentos da crise mundial, assim como a crise ecológica, estiveram entre os principais temas abordados pela ‘Conjuntura da Semana’ em 2008. Do conjunto das análises realizadas, destacamos uma breve síntese dos principais fatos relacionados à crise:

1. A maior crise mundial pós-crash de 29;

Como em 29, a origem da crise encontra-se no sistema financeiro. A crise irrompeu em agosto de 2007 no mercado imobiliário americano. Após a farra de empréstimos imobiliários, assistiu-se nos EUA a uma onda de calotes. A onda de inadimplência assumiu efeitos em cadeia: primeiro, a crise do subprime atingiu as empresas imobiliárias; depois, bancos e fundos hedge e espalhou-se para outros tipos de financiamento. Não tardou para que a crise chegasse à economia real provocando quebradeira de bancos, fábricas, e promovendo demissões em massa.

2. Uma “crise de confiança”;

A idéia de que o mercado se orienta pela racionalidade e se trata de uma ciência matematizada é frágil. É curioso perceber que o capital encontra elementos de convergência com o mundo religioso. “Quebra de confiança”, “perda de fé no sistema”, revelam elementos que extravasam a propalada eficiência do capital. Assim como na religião, no mercado financeiro uma coisa fundamental é a fidúcia. Fidúcia é confiança. O que se rompeu foi a confiança e a crença no sistema. Com a interligação entre os mercados, a falta de confiança em um ponto da cadeia desatou um nó que revelou as interconexões deste nó com os demais. Como destaca o economista Eduardo Giannetti, “todo o sistema financeiro do mundo está baseado em crenças, confiança, promessas e expectativas. A confiança custa para ser construída, mas é muito rápida de ser destruída”.

3. Descolamento do capital financeiro do capital produtivo;

Na essência da crise está o descolamento do capital financeiro do capital produtivo. O dinheiro que gera dinheiro do nada, descolado da matriz produtiva – o que Marx chama de capital fictício. As economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas. Na análise de Cesar Benjamin, “muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro”. É o que Marx denominou D – D’, uma forma de acumulação que passou a ter peso crescente na economia mundial. O trabalho e a atividade produtiva deixaram de serem os agentes organizadores da sociedade que passou às mãos do capital financeiro. Esse capital “libertou-se”, “emancipou-se” e os resultados estão aí, sucessivas crises que subordinam a economia real à economia virtual.

4. A crise que assola a economia virtual rapidamente contamina a economia real;

As demissões e o anúncio de férias coletivas se multiplicam pelo mundo com a interrupção da produção e o fechamento de fábricas. As notícias não cessam de anunciar demissões. Os EUA já eliminaram 1,2 milhões de vagas em apenas três meses. A Europa anuncia 10 mil novas demissões a cada dia. O mercado de trabalho entrou em recessão agravado pela escassez do crédito. Com a crise, o crédito ficou mais caro e escasso afetando as duas pontas dinâmicas da economia: produção e consumo. O círculo virtuoso que empurra a economia – produção, emprego, consumo – entrou em colapso.

5. Os mitos do liberalismo caem por terra ;

Junto com a crise, mitos econômicos vendidos como verdades irrefutáveis vão sendo enterrados. Tardiamente há um reconhecimento – de algo que há muitos anos vem afirmando o movimento social – de que o mercado precisa ser regulado. A tese liberal do mercado como aquele que se auto-regula é uma falácia. Os que ousavam criticar a desregulação financeira eram vistos como ‘atrasados’, entretanto, agora, a Meca do liberalismo, os EUA, que impuseram as exortações do ‘pensamento único’ ao mundo, dá sinais de que o mercado, sobretudo o financeiro, não pode tudo e precisa de um mínimo de regulação. A maior potência econômica do mundo, os EUA, reconhece que a sua cruzada em defesa das virtudes do liberalismo esgotou-se. Os anos dourados do neoliberalismo e as orientações do ‘Consenso de Washington’ entraram em crise, ao menos do ponto de vista ideológico.

6. A crise moral do capitalismo;

A crise não é apenas de macro teoria, é também de natureza ética. Todo sistema histórico de organização da sociedade necessita de uma base de legitimação moral. Com a crise rompeu-se a ética de um sistema fundado em valores que decorrem da máxima “vícios privados, benefícios públicos”, ou seja, a idéia de Bernard de Mandeville, de que a sorte dos demais é, em última instância, uma manifestação do nosso amor-próprio, do nosso auto-interesse. A tese do egoísmo como virtude exposta por Adam Smith ao destacar que a busca compulsiva do próprio interesse conspiraria para a elevação do bem-estar da sociedade falhou. A cobiça desmedida dos agentes financeiros desatou a crise. Wall Street desmoralizou-se, não apenas em função dos prejuízos brutais, mas também porque os fundamentos do sistema auto-regulado se demonstraram ineficientes. O evangelho do mercado: reduzir o Estado, quebrar a coluna dos sindicatos, cortar os gastos sociais, desregular o mercado financeiro e abrir as comportas para o livre fluxo de bens e serviços transformou-se num rotundo fracasso.

7. O retorno do debate ideológico;

Depois de um longo período em que se afirmava que fora do mercado não há vida, assiste-se um retorno ao debate ideológico. Marx e Keynes, entre outros, retornaram ao centro do debate. Dois clássicos da economia política, Keynes e Marx, ideologicamente opostos, o primeiro considerado revolucionário, o segundo um reformista radical, têm sido resgatados profusamente em função de que se tratam de autores que dissecaram a estrutura do capitalismo apontando as suas contradições e limites. A grande contribuição teórica de Keynes, tendo como referência a crise, foi a de destacar que a “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado. Por sua vez, Marx foi o primeiro autor a conceber as crises periódicas não como fenômenos estranhos ao capitalismo, mas como momentos constituintes do desenvolvimento do mesmo.

8. O Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução;

O derrame de dinheiro público através do Estado revela, como diz o sociólogo português Boaventura Sousa Santos, que “o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução”. Milton Friedman, um dos arautos do liberalismo gostava de citar um ditado popular da língua inglesa muito caro às ciências econômicas: “There’s no such thing as a free lunch” (não existe almoço grátis) para afirmar que “ninguém gasta o dinheiro dos outros com o mesmo cuidado com que gasta o seu próprio”. Partindo desse aforismo, defendia com entusiasmo o livre-mercado como sendo mais responsável do que o setor público – leia-se o Estado –, na condução dos assuntos econômicos. As teses de Friedman se desfazem feito um castelo de areia. O Estado se tornou a tábua de salvação do capitalismo. O que agora assume ares de obviedade – a necessidade de um Estado forte – até pouco tempo atrás era execrado.

9. Um mundo multipolar?

A divisão do poder no mundo caminha para ser multipolar? Essa é uma das questões de fundo posta pela crise mundial. Ao longo do século XX, o poder global caracterizou-se pela bipolaridade, principalmente no pós-guerra, quando os Estados Unidos e a antiga URSS exerceram a hegemonia sobre o destino de centenas de países. Com a fragmentação e a derrocada do socialismo estatal, os EUA triunfaram soberanamente no mundo nos últimos anos do século XX. Entretanto, a profunda crise que tomou conta do mundo desordenou os prognósticos sobre a geopolítica mundial. Ainda é cedo para saber se o mundo sairá da crise com uma distribuição compartilhada do poder. De qualquer forma, o unilateralismo americano vem gradativamente perdendo força. A crise financeira pode acelerar o derretimento do poderio americano. A China jogará um papel cada vez mais decisivo nos mercados financeiros internacionais, considerando-se que é seu considerável parte dos recursos aportados no salvamento das instituições financeiras – uma ironia: um regime comunista salvando um regime capitalista;

10. Modelo de sociedade fundada no consumismo desenfreado precisa ser repensado;

Na origem da crise econômica encontra-se o consumo compulsivo. Foi a obsessão pelo consumo da sociedade americana (imóveis, carros, bens duráveis) que lançou o mundo na crise. A crise pode nos empurrar para uma recessão que reduzirá o consumo. Pergunta o economista Eduardo Giannetti: “Será que o mundo não estava precisando de uma pausa para respirar? Será que não vivemos um frenesi de consumo de recursos naturais e não podemos ter uma trégua para repensar um pouco o lugar do econômico na vida humana? Será que faz tanto sentido concentrar tanto da nossa atenção no sucesso financeiro? Será que não está na hora de isso ocupar um segundo plano?”, pergunta ele.

11. A crise tem os seus perdedores e entre eles estão os pobres;

Um plano socialista para salvar o capitalismo. Essa é a síntese que se pode fazer dos pacotes salvadores dos Estados destinados majoritariamente a cobrir os rombos do capital financeiro e produtivo. Os banqueiros nunca lucraram tanto, porém no primeiro momento de dificuldade pedem dinheiro público para não quebrar – e recebem; as empresas, entre elas as montadoras, nunca venderam tanto, mas aproveitam a crise e passam o chapéu pelo governo – e recebem. Do outro lado, anunciam-se demissões. Um primeiro indicativo de que a crise terá conseqüências mais adversas para os pobres são as estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que apontam para um aumento do número de desempregados no mundo de 5 milhões. De acordo com Juan Somavia, diretor-geral da OIT, a desaceleração da economia mundial produzirá “mais desemprego no mercado formal. E mais precariedade no mercado informal”. Ainda mais: com a crise financeira, os países emergentes deixarão de receber, segundo estimativas do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), que reúne os principais bancos mundiais, cerca de 130 bilhões de dólares em 2008. Pelo menos 100 milhões de pessoas voltarão à pobreza, cifra que poderá aumentar ainda mais.

12. Teses do movimento antiglobalização ganham força

A necessidade de controle do capital financeiro propugnada pela Attac – que ganhou corpo ao longo das edições do Fórum Social Mundial (FSM) – vai se tornando uma realidade assumida, agora, até mesmo por chefes de Estado de vários países e ministros das finanças de todo o mundo. Inclusive os organismos multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) que se desmoralizaram ainda mais com a crise e defensores intransigentes da liberalização dos mercados, reconhecem que um mínimo de controle sobre a banca financeira se faz necessária. Destaque-se, entretanto, que apesar da retórica, a declaração aprovada em recente reunião do G-20 em Washington não afirma nenhuma medida verdadeiramente efetiva contra a total liberdade com que age o mercado financeiro. Resta ao movimento altermundialização as mobilizações sociais para exigir um mínimo de controle sobre o setor financeiro.

(Ecodebate, 29/12/2008) publicado pelo IHU On-line, 28/12/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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