O reconhecimento das etnias indígenas no Ceará passa pela demarcação de suas terras
Foto do Diário do Nordeste
Demarcação de terras é meta – Considerar a inexistência de índios no Ceará é uma afronta, na avaliação dos povos indígenas com aldeamentos no Estado. Muitos deles ainda permanecem em luta pelo direito à terra e a preservação de suas origens. Ainda hoje há índios no Ceará que temem ser reconhecidos enquanto etnia indígena temendo represálias
Poranga. “Tendo deixado de existir, de fato, aldeamentos, que foram fundados nessa província, em data recente ou remota, por se haverem dispersado seus habitantes ou fundido nas outras classes, remetam ao ministério ao meu cargo quantos esclarecimentos for possível para revelar a criação dos terrenos que constituíram tais aldeamentos”; “Inexiste qualquer registro histórico da presença de índios naquela área do litoral cearense, sendo oportuno assinalar que o nome ‘jenipapo-kanindé’ foi criado por interessados no ressurgimento de índios no litoral cearense”; “não existe índio em Itapipoca”.
O primeiro trecho, datado de 1878, está na carta do Ministro do Império ao Presidente da Província, afirmando, então, não mais existirem aldeamentos indígenas no Ceará, o que já era dito em decreto provincial de 1863. O segundo está em um documento de pouco mais de um ano emitido pela empresa Ypióca, em questão judicial com a etnia Jenipapo-Kanindé na demarcação de terras em Aquiraz. A última declaração vem da empresa Nova Atlântida Empreendimentos, há 30 anos com projeto turístico orçado em R$ 15 bilhões em 3,1 mil hectares da Praia da Baleia, em Itapipoca, suspenso desde 2004 por suspeita da existência de terra dos índios Tremembé de São José e Buriti, município de Itapipoca, que reivindicam para si o local. Por Melquíades Júnior, Colaborador, Diário do Nordeste, CE, 20/12/2008.
Em todos os casos, é feita a negação total ou parcial da existência de índios em determinados lugares do Ceará, em que famílias locais, grupos empresariais nacionais e internacionais reivindicam para si terras supostamente de direito natural dos índios. Neste terceiro dia da série de reportagens sobre os índios no Ceará, o Diário do Nordeste traz o que é considerado, pelos índios, o maior entrave na busca de seus direitos: a luta pelo direito natural e pela demarcação da terra.
“A estratégia é sempre a mesma. Para negar o direito constitucional dos índios às terras, quem é contrário apela para a negação da existência do índio no Ceará. Se não é índio não tem direito a demarcar terra”, reclama Maria Amélia Leite, da Associação Missão Tremembé, em Fortaleza, com mais de três décadas de sua vida dedicadas ao estudo e à cooperação com os índios no Nordeste. A existência de índios no Ceará – de tempos remotos até hoje – é defendida pelo Ministério Público Federal, Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional (Iphan), dezenas de antropólogos e, óbvio, pelos próprios povos das etnias, organizados em várias associações jurídicas – oficialmente são 12 etnias em 16 municípios do Ceará, mas alguns estudos apontam para 17 etnias.
Se a Justiça comum é considerada lenta, a Justiça que acompanha os casos de reconhecimento étnico-cultural e territorial dos índios é quase engessada. Tanto que, apesar de quase 20 anos de luta por demarcação em dezenas de comunidades autodenominadas indígenas no Ceará, apenas os Tremembé do Córrego do João Pereira, entre Itarema e Acaraú, no Litoral Oeste, tiveram todos os estágios, do reconhecimento à demarcação, consolidados em 2004. Os outros povos estão em diferentes estágios de reconhecimento.
Pesquisas
De 1980 aos dias atuais, é crescente o número de pesquisadores brasileiros, notadamente antropólogos, visitando as comunidades indígenas no Ceará, fazendo relatos e registrando em centenas de publicações, de livros a documentários em vídeo. Apesar disso, a Funai, principal órgão federal em defesa do índio, carece de antropólogos para a realização de perícia técnica, passo anterior a possíveis demarcações.
Conforme o antropólogo Max Maranhão, professor adjunto da Universidade Estadual do Ceará e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Étnico-Culturais, só cabe aos próprios índios a auto-identificação como tais. O antropólogo tem a tarefa de reconhecer e registrar essa autenticidade própria para a consideração do território indígena.
“Eu passei 38 anos calado com medo. Sou índio, nasci índio, mas não podia dizer, porque era capaz de me matarem”, afirma o pajé Cícero José, índio Potiguara do município de Crateús. Hoje ele diz continuar correndo riscos por defender o direito à terra, mas é só rompendo o silêncio e reconhecendo-se índio que consegue lutar pela demarcação das terras. Sendo índios, aos povos de centenas de comunidades no Ceará deve ser assegurado, pela Constituição Federal, o direito à demarcação das terras, um passo delicado e que tem a afronta de empresas de alto poder econômico com forte aliados políticos.
“Se a gente aparecer pintada, é arriscado jogarem pedra. É muito grande o preconceito na comunidade, as pessoas ainda têm muito medo das ameaças. E tem índio que nega as origens e não diz nada porque os patrões estão em terras que são nossas, aí tem medo de perder o emprego”, lamenta a professora Andréa Rufino, 26 anos, índia Tapuia-Kariri. O desagrego dos índios, incentivado por empresários, para aqueles não entrarem na luta pelas terras é uma das preocupações dos movimentos indígenas.
“Os ‘grandes’ que estão nas terras empregam, dão uns agrados, e os índios ficam submetidos a ficarem calados”, afirma Ceiça Pitaguary, da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
Emprego, dinheiro avulso, pequenos e esporádicos investimentos locais em meio ambiente ou cultura feitos pelos próprios empresários em litígio judicial são vistos pelos índios como estratégias análogas à do colonizador, 500 anos atrás, que “agradava” os nativos com especiarias (escambos), para depois fazerem ameaças, até a tomada das terras.
Ameaças, inclusive de morte, não são raras nos relatos dos índios, nem mesmo dos não índios, como a missionária Maria Amélia Leite, da Associação Missão Tremembé, que diz ter sido ameaçada em lugares onde atuou em defesa dos índios, como em Almofala, distrito de Itarema. Mas isso não basta: “Não nos rendemos nem nos vendemos”, diz o lema dos movimentos indígenas.
SAIBA MAIS
Liminar
A obra do complexo turístico Cidade Nova Atlântida, da empresa espanhola Nova Atlântida Empreendimentos, foi suspensa por liminar concedida pela Justiça Federal, com aval do Tribunal Regional Federal
Litígio
Em Caucaia, o litígio judicial ocorre entre os índios e a família Arruda, que há muitos anos está no poder executivo municipal. Ela entrou com um mandado de segurança pedindo a anulação do processo demarcatório da terra da etnia Tapeba, cujas terras foram delimitadas em 4.658 hectares e demarcadas
Contestação
Em São Gonçalo do Amarante, os índios Anacé reclamam terem três de suas comunidades expulsas por conta da construção do Porto do Pecém, situação que pode se agravar com mais empreendimentos no Porto
FISCALIZAÇÃO
“Vamos intensificar a fiscalização para impedir agressão ou degradação ambiental nas áreas indígenas”.
Paulo Fernando Barbosa
Chefe da Funai no Ceará
Mais informações:
Fundação Nacional do Índio no Ceará (Funai)
Rua Abílio Martins, 805, Parquelândia, Fortaleza
(85) 3223. 3788
DEMANDAS ATENDIDAS
Etnias indígenas mantêm boa relação com Funai
Poranga. Cerca de 400 índios das etnias Tapeba, Jenipapo-Kanindé, Tremembé, Potiguara, Pitaguary, Tabajara, Kalabaça e Anacé ocuparam a sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Fortaleza. O fato aconteceu em maio de 2007 e foi apenas uma das provas de descontentamento dos índios com o órgão federal. Um ano e meio depois, composição de novo gestor no órgão, novos equipamentos, e atendidos em parte com a reivindicação que motivou a ocupação, os índios no Ceará vivem momento de melhor relação com a instituição federal.
“Quando cheguei aqui, faltava carro para a equipe trabalhar e muita conta para pagar”, afirma Paulo Fernando Barbosa da Silva, atual chefe do escritório da Funai no Ceará. Ele tem um desafio e tanto: com apenas oito funcionários, trabalhar no atendimento a 22 mil índios, que é o número cadastrado pelo órgão federal no Estado. Ainda tem que seguir determinação da presidência da Fundação, que quer todo chefe de escritório estadual acompanhando diretamente as atividades assistenciais, como a entrega de cestas básicas (2.500 em 13 etnias) e entrega de ferramentas e sementes para o plantio da safra de 2009 (dez mil quilos de sementes de milho e outras nove mil de feijão).
Mas Paulo está otimista. Depois que, por reivindicação dos índios, foi criada a Unidade de Gestão (UG), antes chamada Administração Executiva Regional (AER), a sede da Funai em Fortaleza deixou de depender juridicamente do escritório em João Pessoa, na Paraíba. “Essa autonomia facilita muito o nosso trabalho, porque agiliza os atendimentos das demandas dos índios”, afirma Paulo.
Ele esteve presente na XIV Assembléia Estadual dos Povos Indígenas, que termina hoje na Aldeia Cajueiro, em Poranga. Sua fala foi aguardada pela esperança de boas notícias para os índios.
Segundo o chefe da Funai no Ceará, logo no início de 2009, um grupo de trabalho fará estudo para legitimação das comunidades de São José e Buriti (Itapipoca), Mundo Novo (Monsenhor Tabosa), Queimadas (Acaraú) e Jenipapo-Kanindé (Aquiraz).
A Funai tem apenas oito funcionários no Ceará para atender a 22 mil índios
Quatro representações dos povos indígenas do Estado do Ceará devem acompanhá-lo a Brasília no início do ano que vem, para reunião com o presidente da Funai, Márcio Mera, para discutir novas demarcações e as atuais demandas judiciais pelas terras.
Paulo Barbosa ainda avisa: “Funai, Ministério Público, Polícia Federal e Ibama vão intensificar a fiscalização para impedir qualquer agressão a povos ou degradação ambiental nas áreas indígenas”.
[EcoDebate, 22/12/2008]
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