A humanidade deverá começar a pensar seriamente seu modelo de consumo. Entrevista com Walter Pengue
Imagem: Stockxpert
Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line desta semana, o professor Walter Pengue declara que “a crise financeira internacional, que se tornou visível nos últimos meses de 2008, tem posto novamente de joelhos uma parte do mundo econômico financeiro global, e destacado, mais uma vez, as enormes falhas que a abordagem parcial de um problema complexo, deixado nas mãos de poucos e somado a mais extrema ganância, pode gerar sobre centenas de milhões de pessoas”. Para ele, que relaciona as crises ecológica e financeira, “assim como hoje em dia se deixou crescer uma nova bolha imobiliária apoiada em algarismos financeiros insustentáveis, inclusive nos termos econômicos de mercado, da mesma forma, se mantém um culto à possibilidade da exploração da natureza, como se tal situação não tivesse nenhum limite”. E dispara: “Pouco ou nada tem se feito para ajudar a resolver os sérios problemas dos pequenos e médios agricultores de todo o mundo. Por que agora o fariam com a questão energética?”.
Diretor do Programa de Atualização em Economia Ecológica, Walter Pengue é professor das áreas de Ecologia Urbana e Economia Ecológica da Universidade Nacional de General Sarmiento. Engenheiro Agrônomo (com especialização em genética vegetal) e mestre em Políticas Ambientais e Territoriais, Pengue é doutor em Agroecologia. É também professor de graduação e pós-graduação em Economia Ecológica, Ecologia Política e Agroecologia tanto nas universidades nacionais de Buenos Aires, General Sarmiento e Rosário, como estrangeiras. É membro do Conselho Científico da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE) e atual presidente (2008-2010) da Sociedade Argentino-Uruguaia de Economia Ecológica (ASAUEE). É autor de três livros sobre questões ambientais, dentre os quais citamos o último, La apropiación y el saqueo de la naturaleza. Conflictos ecológicos distributivos en la Argentina del Bicentenario (Buenos Aires: Lugar Editorial, 2008), que acaba de ser publicado.
IHU On-Line – Tendo em conta as três últimas crises mundiais (financeira, alimentar e climática), quais mudanças de comportamento são necessárias urgentemente no planeta? É possível, a partir deste caos, pensarmos em um novo modelo de sociedade?
Walter Pengue – Sim, com certeza é possível, necessário, obrigatório. A crise financeira é algo menor, comparada com a crise ambiental, que nos põe à beira de uma catástrofe ambiental sem precedentes. É claro que isto não tem apenas caráter antrópico, mas segue ciclos. No entanto, por acaso, é neste ciclo de “ameaças pendentes” que nós estamos. A crise financeira internacional, que se tornou visível nos últimos meses de 2008, tem posto novamente de joelhos uma parte do mundo econômico financeiro global, e destacado, mais uma vez, as enormes falhas que a abordagem parcial de um problema complexo, deixado nas mãos de poucos e somado à mais extrema ganância, pode gerar sobre centenas de milhões de pessoas. Um sistema financeiro que sempre funcionou bem, mas hoje em dia se encontra desconectado de sua própria realidade econômica. Essa bolha econômica financeira cresce e estoura, recorrentemente, visto que está sempre desconectada da realidade, a qual afeta de distintas maneiras. A desconexão do mundo financeiro de sua realidade de sustentação mostrava já preocupantes sinais de alerta quando as cifras de circulação financeira superavam em dez vezes o próprio PIB mundial e que logo permitiram chegar aos números atuais, onde a desproporção é de 50 vezes. O aparato financeiro é feito para estimular a produção de bens e serviços, daí que uma circulação financeira da mesma ordem do PIB mundial seria suficiente, alertava o matemático Max Dickmann da Universidade de Paris VII. Mas o sistema se multiplicou louca e descontroladamente. Se a massa disponível se mede em unidades monetárias, esta circulação de 50 vezes o PIB global nos mostra que 98% do sistema é um grande motor financeiro internacional. Temos aqui uma primeira aproximação da tremenda desvinculação que há entre os atores dos mercados financeiros, econômicos e dos recursos naturais. Do ponto de vista da estabilidade, o grave é que esses 98% do motor financeiro circulam a uma velocidade infinita, como a da luz, enquanto que a produção de bens e serviços, os 2% restante, ao contrário, caminham a passos de tartaruga, apesar dos avanços tecnológicos.
IHU On-Line – Que modelos de energia estão em consonância com a atual realidade social, ecológica e econômica do Planeta?
Walter Pengue – Do ponto de vista atual, é claro que seguimos o caminho de uma civilização “com petróleo”, com todas as implicações que isso envolve. No aspecto macro, ninguém está pensando em alternativas sérias, mas em medidas conjunturais, que respondem a demandas também conjunturais, como os agrocombustíveis e afins, sempre com custos ambientais crescentes. Se o problema do sustentável passa somente por uma questão de custos, é preciso pensar em outros caminhos, como o hidrogênio, as fontes renováveis, os biocombustíveis da segunda geração e uma questão mais do que importante: a humanidade deverá começar a pensar seriamente seu modelo de consumo. Nestes tempos, não tem triunfado nem o capitalismo nem o comunismo. O principal ganhador é o consumismo, a ameaça mais grave sobre os recursos naturais da terra. O gigantismo econômico e financeiro desta nova ordem global se percebe atualmente na crise econômica, mas a sua expansão se encontra em todas as partes do mundo econômico, na mudança de escalas, que superam a humana, não só no mundo do capital, mas também no mundo global empresarial (cuja voracidade não tem limites) no crescimento expansivo dos grupos corporativos, em suas formas de apropriação do mundo, das pessoas e da sua natureza.
O reconhecimento da dimensão humana
O caminho da mudança para a melhoria da vida na terra não passa pela economia nesta escala, mas pelo reconhecimento da dimensão humana neste mundo. E. F. Schumacher levantava claramente essas idéias quando, em 1973, escrevia seu artigo “O pequeno é lindo”, no qual colocava ênfase no conceito de capital natural e sublinhava a economia alternativa baseada em uma escala humana, descentralizada e sustentada em tecnologias próprias, ideais que inspiraram gerações de ambientalistas. A contradição entre o capitalismo e a sustentabilidade e estabilidade planetária, tem sido defendida por autores como Joel Kovel, em seu livro The enemy of nature. The end of capitalism or the end of the world? (O inimigo da natureza. O fim do capitalismo ou o fim do mundo?), de 2002, que alerta sobre as mesmas questões. Apesar de todas suas realizações, e dos exemplos sustentados nas idéias de Schumacher em todo o mundo, o gigantismo econômico, na mão da globalização financeira e econômica, continua primando nas mentes e corações dos economistas e de quem, lamentavelmente, continua escutando-os. Assim como hoje em dia se deixou crescer uma nova bolha imobiliária apoiada em algarismos financeiros insustentáveis, inclusive nos termos econômicos de mercado, da mesma forma, se mantém um culto à possibilidade da exploração da natureza, como se tal situação não tivesse nenhum limite. Façamos um breve exercício de história.
IHU On-Line – Que novas alternativas de energia são necessárias neste momento?
Walter Pengue – Primeiro, como eu já disse, é preciso pensar na redução das demandas e do consumo. Que difícil, não? Mas é assim. A demanda energética interfere sobre todas as outras demandas de recursos naturais, então, isto é o mais grave. Também as energias solar, eólica, das ondas do mar, geotérmica, biológica, são caminhos viáveis, além do fortalecimento da eficiência dos sistemas de co-geração, sem falar das redes locais de controle energético integradas. Se as demandas aumentam, o que você preferirá? Ter luz para seu consumo imediato e para andar em sua casa, ou luz só para a TV, o computador, ou demandas supérfluas? Alguém deve controlar estas questões.
IHU On-Line – O que é a economia ecológica? De que forma ela pode ajudar a resolver os problemas atuais da humanidade?
Walter Pengue – A economia ecológica é concebida como uma disciplina científica de gestão da sustentabilidade, aquela que vem integrar as sérias e complexas demandas entre a sociedade e a natureza. É, atualmente, o que foi a ecologia para a compreensão dos sistemas ecológicos durante os anos 1950, dado que transpassa a visão unidisciplinar, para converter-se em uma análise transdisciplinar. Pode definir-se como a ciência da gestão da sustentabilidade e, como tal, estuda as interações entre a sociedade e a natureza. A economia ecológica adota a teoria dos sistemas para a compreensão dos fenômenos ecológicos e os integra aos estudos dos limites físicos e biológicos devidos ao crescimento econômico. Estuda as sociedades como organismos vivos que têm funções, como as de captação da energia, utilização dos recursos e energia da natureza e eliminação de seus resíduos (metabolismo social). Surpreendentemente, os precursores intelectuais da disciplina não eram economistas, mas físicos, químicos, biólogos, urbanistas, ecólogos como Carnot, Clausius, Pfaundler, Geddes, Podolinsky, Popper-Lynbeus, Soddy, Lotka Odum. De fato, suas teorias foram desestimadas pelos economistas convencionais, como aconteceu, por exemplo, com os escritos de Podolinsky rejeitados por Engels e indiretamente por Marx.
IHU On-Line – Como os países do Terceiro Mundo, no caso da América Latina, podem evitar outras conseqüências da crise financeira internacional diante da abundância de seus recursos naturais e renováveis? O senhor acredita que deve haver uma mudança de estratégia por parte dos governos?
Walter Pengue – “Viver com o nosso”, afirma o economista argentino Aldo Ferrer e a questão deveria radicar nisso, não apenas por motivos econômicos, mas por questões de eficiência ecológica e defesa social do trabalho. O desenvolvimento regional deveria ser a premissa dos governos da América Latina, e não só pensar nos mercados de exportação, que são pão para hoje e muita fome para amanhã.
IHU On-Line – Qual é a sua percepção em relação ao descobrimento de novos poços de petróleo no Brasil? Num momento em que o mundo exige mudanças para resolver os problemas do clima, a posição brasileira tem sentido?
Walter Pengue – O menor sentido. É uma visão do “progressismo” dos anos 1950, com um “revival” de século XXI. No entanto, se, por um lado, estamos pensando em uma diminuição do consumo global, e em novas alternativas para os usos e as fontes energéticas, precisamos nos lembrar que o país ainda depende, além disso, dos custos do valor do petróleo no mercado internacional, com semelhantes investimentos. Creio que haveria que se pensar mais em médio prazo, apontar para alternativas energéticas e ter em mente novas alternativas para as disponíveis atualmente.
IHU On-Line – É possível encontrar uma alternativa para as três crises na agricultura?
Walter Pengue – Divido a agricultura global em três modelos: o primeiro é o da agricultura industrial, que abastece cerca de 1.800 milhões de seres humanos, e se apoiou na agricultura de exportação, de insumos, dos transgênicos e afins. Esta agricultura está chegando ou chegou a seu ápice produtivo. Continuará crescendo, mas somente a custos cada vez mais altos para o ambiente e para a sociedade. Ou seja, é uma agricultura de “externalidades”. Uma “externalidade” é um custo não incluído nas contas de uma empresa, ou de um país, ou de uma região. O conceito tem atingido particularmente a discussão ambiental e social (em geral identificado como danos), quando estes são valores geralmente não incluídos. A externalidade pode ter dois sentidos e ser, então, positiva ou negativa. Será este último caso quando inclui estes danos, e positiva quando gera benefícios não considerados a priori (por exemplo, a polinização das abelhas instaladas nos apiários em áreas próximas a um campo de produção de girassol).
Revolução Verde e agricultura familiar
A segunda é a agricultura da Revolução Verde, que as mesmas indústrias contaminantes, com baixo controle em países em vias de desenvolvimento, expandem seu modelo de uso intensivo de agroquímicos, fertilizantes e energia. Esta agricultura continua se expandindo na África e na Ásia. Abastece outros dois milhões de pessoas, e também está em seu limite produtivo. O terceiro é o modelo da agricultura familiar, agroecológico, campesino, que sustenta mais de 2.200 milhões de pessoas. Essas pessoas ainda não ouviram falar de “crise”. São auto-suficientes em alimentos, e não dependem dos mercados de exportação. A eles deveria se direcionar, ao contrário do que acontece hoje, uma boa parte dos fundos para pesquisa em agricultura e desenvolvimento rural. Por quê? Simples: porque esta agricultura tem oportunidades de, com pouco apoio tecnológico dedicado à pequena agricultura, poder triplicar os alimentos do mundo.
IHU On-Line – Como a Argentina tem se ocupado destas crises internacionais? Em que densidade o país tem enfrentado estes problemas?
Walter Pengue – Como a Argentina, logo depois da hecatombe de 2001, foi “isolada à força” do mercado financeiro internacional, esta crise não lhe impactou ainda diretamente. Mas, de fato, a queda nos custos das commodities, das quais o país depende, afeta alguns setores, como o agrícola. Neste caso, os agricultores que dependem do mercado internacional de preços, e enfrentam os brutais aumentos das empresas de agroquímicos e fertilizantes, somado às taxas que o governo lhes cobra pela exportação (que não são taxas ambientais lamentavelmente), serão fortemente afetados. O mesmo acontece com os outros setores da economia que dependem do exterior. O mercado interno e local, a economia local, está funcionando bem, sem problemas.
IHU On-Line – O senhor acredita que a bioenergia pode substituir o petróleo? Qual é o grande desafio nesse momento para conciliar a produção de energia limpa, a alimentação e a economia estável?
Walter Pengue – Prefiro que se pense em outras fontes. Não se compete somente por alimentos. Deve-se pensar que uma das principais disputas é pela terra, e esta é escassa e, além disso, a cada ano de pior qualidade. Até que não aprendamos a produzir muito mais em cidades, em espaços hoje fechados, mas tecnologicamente possíveis, como o mar, pensar nos biocombustíveis será discutível como fonte que não compete com os alimentos. Creio que sim, é possível, por outro lado, aproveitar muito mais eficientemente para a produção energética os resíduos das cidades, das indústrias que manejam matéria orgânica, e ali sim há uma interessante oportunidade de produção de energia e de fertilizantes naturais.
IHU On-Line – O senhor disse que a agricultura industrial quer converter o campo em algo diferente. O que seria esse algo diferente?
Walter Pengue – Sim, quer converter em uma indústria. E esta indústria não será limpa, mas contaminante, nos níveis de produção e exploração dos recursos que leva esse modelo agrícola intensivo. Não devemos esquecer, ainda que alguns o tenham feito, que fazer agricultura é manejar “com” a natureza, e não “sobre” ou às custas dela.
IHU On-Line – O senhor afirma que estamos vivendo hoje em dia dois ciclos: um ciclo dos materiais e outro das fontes de energia. Um deles é um ciclo fechado e outro é um ciclo aberto. O senhor pode explicar esta teoria?
Walter Pengue – Esta é a visão da economia ecológica. Enquanto a economia convencional vê o sistema econômico como um sistema fechado, a economia ecológica o apresenta como deve ser, como um sistema aberto, onde a energia flui de um lugar a outro. A economia ecológica diferencia claramente e marca a incongruência entre o ritmo de tempo diferente entre a dimensão econômica e a biogeoquímica terrestre. Diferente do sistema econômico convencional, que vê a economia como um fluxo circular de bens e dinheiro, a economia ecológica vem para revisar com firmeza estas suposições e propõe um fluxo unidirecional de energia, cuja fonte original é o sol (que é o pilar que dá funcionamento à roda econômica) até uma conversão final em energia não reutilizável.
IHU On-Line – Em que sentido a biotecnologia pode ser útil e estimulante para pensarmos um novo modelo de agricultura e de energia?
Walter Pengue – No terreno das promessas, a manipulação genética deixa muitas possibilidades de resolver problemas graves da humanidade. Lamentavelmente, passados mais de 10 anos da primeira liberação massiva de transgênicos, as indústrias biotecnológicas e, hoje, do setor energético têm se focado somente em desenvolvimentos tecnológicos, que serviram apenas para a produção de plantas resistentes a herbicidas (para aumentar mais as vendas de agroquímicos). Pouco ou nada tem se feito para ajudar a resolver os sérios problemas dos pequenos e médios agricultores de todo o mundo. Por que agora o fariam com a questão energética? Hoje, a crise global talvez diminua um pouco as tensões, mas, igualmente, aqui é muito mais importante o papel dos estados que o das companhias, que somente apontam a um enriquecimento, que pode ser lícito, mas que talvez não seja tão justo.
(Ecodebate, 13/12/2008) publicado pelo IHU On-line, 09/12/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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