Decisão do STF sobre a reserva Raposa Serra do Sol vai definir o futuro dos povos indígenas no País
Imagem da Agência Estado
Entrevista com Manuela Carneiro da Cunha; antropóloga, professora titular da Universidade de Chicago
Nas mãos do Supremo – Na quarta-feira, 10 de dezembro, data em que se comemoram os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai retomar uma sessão decisiva para o futuro dos povos indígenas no Brasil. Caberá à corte confirmar ou não a demarcação em faixa contínua da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, tal como pensada pelo governo Fernando Henrique Cardoso e homologada por Luiz Inácio Lula da Silva.
A demarcação em ilhas, que permitiria a fixação do homem branco no local, interessa a um grupo de seis grandes rizicultores – ou “arrozeiros” – que ocuparam nos últimos anos parte do território pertencente à União. Ao lado deles, está a bancada de Roraima no Congresso, para quem os índios têm terra demais e inviabilizam economicamente o Estado. Já para a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora titular da Universidade de Chicago, os arrozeiros criaram uma situação de fato para melar um processo concluído após décadas de negociação. E promovem “um clima de desrespeito ao Estado de Direito”. Não é o que dizem representantes do agronegócio e até ministros do governo. Entrevista realizada por Ivan Marsiglia e publicada no O Estado de S.Paulo, domingo, 7 de dezembro de 2008, 00:38.
Nascida em Cascais, Portugal, Manuela é uma das maiores especialistas do mundo na área. Doutora em antropologia pela Unicamp, com pós-doutorados em Cambridge, Chicago, Collège de France e École des Hautes Études em Sciences Sociales, foi professora da Universidade de São Paulo e aluna de Claude Lévi-Strauss. Sobre o tema em pauta no STF, a antropóloga considera que “demarcar em ilhas tem duas conseqüências: a destruição de uma etnia ou a perpetuação de um conflito”. E evoca, como exemplos antagônicos, a demarcação contínua do Parque Nacional do Xingu – “uma ilha de floresta dentro de um oceano de soja” – e a descontínua, oferecida aos xavantes, do Alto Rio Negro, e aos guaranis-caiouás, de Mato Grosso do Sul: que resultou em degradação, mortalidade infantil e suicídios entre os índios.
Autora de Antropologia do Brasil (1986) e Política indigenista no Século 19 (1998), Manuela concedeu esta entrevista de sua casa, nos EUA. Apesar de o relator do caso, o ministro Carlos Ayres Britto, ter votado a favor da demarcação contínua em agosto, ela teme que um revés no STF esta semana possa abrir uma brecha e minar os avanços que a política indigenista alcançou no País nos últimos anos.
No próximo dia 10, o STF vai decidir se a demarcação da Raposa Serra do Sol deverá ser feita em faixa contínua ou não. Qual a importância dessa decisão?
A bem dizer, a demarcação, que demorou quase 30 anos, já foi concluída. E em 2005, homologada pelo Executivo, a quem cabe fazê-lo por meio de seus órgãos técnicos. Todos os passos legais foram observados – inclusive o chamado direito ao contraditório. A partir do final dos anos 70, quando começou o processo de demarcação, garimpeiros e fazendeiros invasores de boa fé saíram da Raposa. Foram em parte substituídos por arrozeiros no início dos anos 90, que não tinham como ignorar que estavam ocupando ilegalmente áreas indígenas. Só que, mais poderosos, preferiram criar uma situação de fato. Imagens de satélite mostram que, em 1992, as plantações de arroz ocupavam cerca de 2 mil hectares, passando para 15 mil em 2005, ano da homologação pelo presidente da República. Ou seja, eles expandiram a área de cultivo sabendo tratar-se de terras indígenas. E promoveram há alguns meses verdadeira insurreição na área, com bloqueios de estradas e um clima de desrespeito ao Estado de Direito.
A demarcação, então, deve permanecer contínua?
É óbvio que a demarcação tem de ser contínua. Sem isso, não há como honrar o artigo 231 da Constituição Federal que define como terras indígenas não só “as por eles habitadas em caráter permanente”, mas também “as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Não são só os índios e os antropólogos que o afirmam: o constitucionalista José Afonso da Silva deu contundente parecer nesse mesmo sentido.
Mas o presidente do STF, Gilmar Mendes, diz que o modelo do governo é “muito conflitivo?” e se deveria discutir “opções viáveis” de demarcação em ilhas.
Deve ser um equívoco. Quando Gilmar Mendes era procurador da República e defendia a União contra as pretensões de fazendeiros e do Estado do Mato Grosso no Parque Nacional do Xingu, transcreveu em apoio a sua tese a seguinte declaração: “Esta conformidade cultural das populações xinguanas impõe um modo particular de observar seus problemas: a necessidade de encará-los em seu conjunto. Fracionar a região que hoje ocupam coletivamente em territórios particulares, isolados por faixas que seriam ocupadas mais tarde por estranhos, seria destruir uma das bases do sistema adaptativo daqueles índios e condená-los ao aniquilamento”.
Qual é o problema da demarcação em ilhas?
Como escreveram os antropólogos Alcida Ramos e Kenneth Taylor já em 1979, a demarcação em ilhas “limita a movimentação constante das aldeias e faz com que grupos saiam das áreas demarcadas; permite a entrada de ocupantes não-índios, fomentando conflitos, invasões e dificultando o controle da Funai; desestrutura as redes de relações entre aldeias, separando famílias, inviabilizando trocas matrimoniais, ameaçando a reprodução dos grupos e criando tensões relacionadas ao não-cumprimento de obrigações intercomunitárias (sistema funerário, festas, reciprocidade alimentar, etc)”. Isso sem falar dos inúmeros problemas sanitários.
Qual será o impacto se o STF derrubar a demarcação contínua?
Vale lembrar que esta não é a primeira vez que é discutido o assunto “ilhas”. Aconteceu a propósito dos ianomâmis, dos xavantes, do Alto Rio Negro, até do Alto Xingu. Os xavantes, cujas terras são “ilhadas” desde 1965, são um exemplo das conseqüências desastrosas de tal política. Basta comparar a conservação ambiental no Parque Nacional do Xingu ao cerco em que vivem os xavantes – com sua altíssima mortalidade infantil e incapazes de controlar a destruição de seus rios. Também os guaranis-caiouás do Mato Grosso do Sul, igualmente confinados, estão em uma das situações mais críticas no País, com um inédito índice de suicídios. Demarcar em ilhas tem duas conseqüências a médio prazo: a destruição de uma etnia ou a perpetuação de um conflito.
O processo demarcatório como um todo no País pode ser afetado?
Se o Supremo decidir agora por uma demarcação descontínua, as conseqüências podem ser gravíssimas. Estará aberta uma brecha, não importando o que diga a Constituição, para se reverem terras indígenas já demarcadas e homologadas. A abertura de brechas em legislações que reconhecem direitos indígenas é um procedimento tradicional no País, desde o século 16. Por essas brechas quase se conseguiu extinguir os índios no Brasil.
Terras indígenas de fronteira são ameaça à soberania nacional?
Não. Esse é um tigre de papel, um espantalho que se agita quando faltam argumentos. As Forças Armadas podem até sinceramente acreditar nisso, mas estarão ingenuamente fazendo o jogo de interesses de outra ordem. A afirmação não resiste a nenhum exame. Terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, e os índios têm apenas a posse e o usufruto delas. Por isso, o Estado pode ter sobre essas terras uma vigilância até mais ampla do que a que pode exercer sobre terras privadas.
Não parece ser a posição do ministro da Defesa, Nelson Jobim…
Quando foi ministro da Justiça, em 1995, Jobim se manifestou favoravelmente à declaração de uma extensa área fronteiriça como sendo de posse permanente indígena, deixando claro que terra indígena e presença do Exército não se excluem, e escreveu: “a cumulação da qualificação de determinada área como fundamental para a defesa nacional com sua caracterização como terra indígena não implica uma contradição em termos” (portaria 299 de 19/12/1995). Além disso, há uma injustiça histórica, pois foi graças às boas relações dos índios dessa área com Portugal e Brasil que Joaquim Nabuco conseguiu obter, contra as pretensões da Guiana então inglesa, parte da região. Esses índios foram usados pelos militares coloniais para assegurarem as fronteiras e, por isso, chamados de “muralhas dos sertões”. O que se esconde sob a suspeita contra índios na fronteira é a noção semiconsciente de que eles seriam estrangeiros ao Brasil.
A demanda crescente por alimentos não fortalece o argumento de que é preciso limitar as reservas?
Depende do futuro que se deseja e da escala de valores: com o mesmo argumento, a floresta amazônica também seria supérflua. As terras e as sociedades indígenas são preciosas para o mundo por serem modelos de uso, de sociabilidade e de visões de mundo diferentes. São um reservatório de soluções, de outras formas humanas de se viver. Além disso, a alternativa não é entre terras indígenas e expansão agrícola: há na Amazônia terras já infelizmente degradadas por madeireiros, pecuaristas e agricultores cuja recuperação seria suficiente para o aumento da agricultura. É esse o caminho do presente, que preserva a justiça e o meio ambiente. E essas áreas prestam serviços extraordinários à exploração sustentável do entorno: é o que atesta o Parque Nacional do Xingu, uma ilha de floresta dentro de um oceano de soja.
E a idéia difundida em setores da sociedade de que os índios foram privilegiados pela Constituição de 1988 e ocupam terra demais?
A Constituição de 1988 só explicitou o que já estava dito na legislação do país desde pelo menos 1680. Todas as Constituições brasileiras desde a de 1934 reconheceram os direitos indígenas sobre suas terras. O mapa das terras indígenas reflete a história econômica do País: quanto mais antiga e poderosa a frente de expansão – agrícola, pastoril, borracheira ou outra -, menores as áreas indígenas. As terras indígenas que hoje restam são as que não foram cobiçadas até recentemente. É por isso que, da extensão total das terras indígenas, 98,5% estão na Amazônia. Mas nas zonas de ocupação mais antiga, em que vivem mais de 40% dos índios brasileiros, as terras indígenas são geralmente diminutas. A questão torna-se então: o Brasil de hoje vai continuar a expulsar os índios de suas terras, fazer passar a cobiça na frente da justiça e persistir em práticas que nos envergonham?
Os produtores rurais de Roraima dizem que a maioria absoluta do território está ocupada por reservas indígenas. É verdade?
As terras indígenas de Roraima ocupam 46% do Estado. Vale lembrar que os índios estavam lá quando o Estado foi criado. Além disso, a densidade da população rural de Roraima é muito inferior à da Raposa Serra do Sol: é portanto difícil sustentar que os outros roraimenses se encontrem espremidos enquanto os índios têm terra demais. Os 54% da área do Estado não-indígenas – que somam uns 120 mil km² – são mais terra, como lembra Washington Novaes, do que a do Estado de Pernambuco onde vivem 7,91 milhões de pessoas, 24 vezes mais que a população total de Roraima, de 324,3 mil.
Por que o Brasil ainda incorpora tão mal o índio?
No Brasil, índio bom é índio extinto. Louva-se o aporte cultural indígena e festeja-se o caboclo na Bahia, mas se é muito intolerante com os índios de carne e osso e suas sociedades. À ideologia da cristianização da época colonial sucedeu a da civilização dos índios no Império. Depois, a do progresso no Brasil republicano e a do desenvolvimento apenas medido pelo PIB hoje. Todas essas ideologias são variantes da atitude que só tolera o semelhante e desvaloriza a diferença.
Seu antigo mestre, o antropólogo Claude Lévi-Strauss acaba de completar 100 anos. O que diria da polêmica na Raposa Serra do Sol?
Lévi-Strauss foi um ecologista antes que o termo existisse, defensor dos direitos dos animais. E, acima de tudo, defensor do valor da diferença nas sociedades humanas. É do que se trata aqui: do patrimônio de diversidade social e natural de que o Brasil é detentor.
E como o País pode construir uma política indigenista à altura desse patrimônio?
Basta mudar a escala de valores. Medir o desenvolvimento não pelo PIB, mas pela qualidade de vida segundo os critérios que cada população tem, pela justiça histórica e social, pela fraternidade, pela diversidade natural e social que deixaremos para as gerações futuras.
O que diria se pudesse falar diretamente aos ministros do STF?
Que a decisão deles, no dia 10 de dezembro, data que coincide com os 60 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos, será um teste para os direitos humanos no Brasil.
FAIXA CONTÍNUA?
“Demarcar em ilhas significaria destruir a etnia ou perpetuar o conflito”
MEIA-VOLTA, VOLVER!
“Terra indígena e presença do Exército não se excluem, escreveu Jobim em 1995”
[EcoDebate, 08/12/2008]
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Manuela Carneiro da Cunha, professora titular da Universidade de Chicago: Só tenho uma frase para a Sra:O QUE O SEU PAÍS FEZ PELOS SEUS ÍNDIOS? MATOU À TODOS E OS RESTANTES, ENCLAUSUROU NO DESERTO À CUSTA DE UMAS MIGALHAS DO SU GOVERNO, CERTO? COMO TENS A OUSADIA DE FALAR SOBRE UM ASUNTO DO QUAL SEUS GOVERNOS SIMPLESMENTE IGNORARAM, E MATARAM MUITOS DOS QUE HOJE DEFENDEM EM OUTROS PAÍSES? BRINCADEIRA, NÉ? PROCURE SUA TURMA DA ESCOLA E DEIXE DE SER “HIPÓCRITA”, OK?
Nota do EcoDebate: a profa. Manuela Carneiro da Cunha é professora titular da Universidade de Chicago mas é portuguesa, com doutorado no Brasil. No próprio texto da entrevista há a informação de quem é a entrevistada: “Doutora em antropologia pela Unicamp, com pós-doutorados em Cambridge, Chicago, Collège de France e École des Hautes Études em Sciences Sociales, foi professora da Universidade de São Paulo e aluna de Claude Lévi-Strauss.”
Ela, em razão de sua origem, formação e atuação, certamente, nada tem com o etnocídio cometido na América do Norte.
Parabenizo a Doutora Manuela por seu conhecimento libertador. Pena que alguns analfabetos que falam demais por não terem nada a dizer, como é o caso do Sr. Luiz Faustino, teimem em se manifestar para simplesmente mostrarem o tamanho da ignorância que lhes atormenta.