As chuvas e a água nossa de todo dia, artigo de Osvaldo Ferreira Valente
[EcoDebate] Prometi, no último artigo [Sobre nascentes e rios], que aquele seria o primeiro de uma série falando sobre a formação e manutenção de lençóis subterrâneos (aqüíferos) e nascentes. Tinha pensado em fazer o próximo sobre tipos de nascentes. Mas os episódios de Santa Catarina mudaram a minha intenção e resolvi falar sobre chuvas, que são as responsáveis pelo fornecimento da matéria prima, a água, que será processada pelas pequenas bacias e disponibilizada para uso, em lençóis e nascentes, ou para provocar transtornos, em forma de enxurradas, enchentes ou deslizamento de terras. O que eu vou descrever tem toda relação com o sentimento de amor e ódio que as chuvas são capazes de provocar nas populações, dependendo de comportamentos e circunstâncias.
Por outro lado, os relatos do imaginário popular, que o leitor vai ler a seguir, é uma tentativa de abrir uma pequena fenda no muro que separa a ciência da informação corrente no dia-a-dia das pessoas. Pela fenda, eu vou tentar introduzir a cunha da divulgação científica, levando conhecimentos sobre o comportamento dos fenômenos naturais que interferem na vida de todos nós. Despertar a curiosidade e a observação para que, mesmo distante do misticismo de outrora, o homem moderno possa continuar atento às coisas que se passam ao seu redor. Desmistificar a áurea que envolve os conhecimentos científicos é acreditar que muitos possam entender muitos deles, desde que os mesmos lhes sejam apresentados em linguagens apropriadas a cada contexto.
Mas vamos lá, começando com um pouco de poesia:
Quando menino, não gostava da chuva.
Hoje corpo de homem, mente esquecida,
Suo pingos de poesia sem graça
Para recuperar a chuva perdida (Montano Neto)
Nesta estrofe, o poeta parece ter traduzido os temores que eu sentia ainda menino, nascido e criado no meio rural do município de Paula Cândido, Zona da Mata de Minas Gerais. Tudo por conta das superstições das pessoas que estavam ao meu redor no dia-a-dia e dos causos contados por elas.
Vivia junto de nós a Sá Raimunda, descendente próxima de escravos e que tinha sido sempre uma agregada da fazenda do meu avô. Era uma exímia contadora de causos, muitos deles responsáveis por pesadelos que tinha durante as noites da Quaresma, principalmente as das sextas-feiras, que, segundo ela, eram as preferidas das mulas-sem-cabeça. Nunca vi um exemplar, mas ouvi, com certeza, o tropel de muitas delas ao redor da casa. A cabeça coberta pode ter impedido a visão.
Mas a Sá Raimunda não parava nas assombrações. Vivia sempre brigando para que a gente não falasse que as nuvens estavam pretas. Dizia que isso era capaz de provocar a ira dos espíritos e resultar em chuvas de pedra ou de vento. Com isso eu corria para dentro de casa toda vez que nuvens escuras prenunciavam as temidas tempestades e desenvolvi um sentimento de desconfiança com relação àquelas estranhas gotas d’água, que eu não entendia de onde vinham. E ficava imaginando lagoas no céu, ou depósitos com torneiras que eram abertas ou fechadas por São Pedro.
Um dia eu escutei o Sô Antônio Lisboa, outro empregado antigo do meu avô, contando, para minha mãe, uma viagem que ele tinha feito ao Rio de Janeiro para visitar um filho que estava trabalhando como caseiro em um prédio de Copacabana. O filho morava em cômodos construídos na cobertura do prédio, veja que engraçado, e ele ficou encantado com a visão do mar e principalmente, segundo ele, com o barulho feito pelas nuvens quando iam até lá buscar água. A minha mãe não acreditou, é claro, mesmo não tendo outra explicação clara para a formação das nuvens, mas eu achei que aquilo resolvia em parte a minha dúvida. Ficava ainda sem explicação a maneira com que as nuvens seguravam as águas bebidas do mar. Talvez, pensava, poderia vir daí a preocupação da Sá Raimunda, pois se os espíritos poderosos se aborrecessem com a gente eles poderiam fazer com que as nuvens despejassem as águas bebidas de uma vez só. Uma enorme boca vomitando água. Cruz credo! (Os meninos do Vale do Itajaí podem estar passando por temores semelhantes) E o medo continuou por um bom tempo, até que o contato com conhecimentos científicos veio esclarecer melhor os fenômenos e as dúvidas mudaram de patamar. Na verdade eu acho que apenas aprendi a cultivá-las.
Para reflexões do leitor, aí está o ciclo hidrológico do imaginário do Sô Antônio Lisboa e da Sá Raimunda
O menino cresceu, até já ficou velho, mas se lembrou de tudo isso num dia desses, de manhã, ao abrir a torneira do banheiro para lavar o rosto e escovar os dentes. Ficou a pensar, durante o decorrer do dia, se outras pessoas têm a exata noção de tudo que está por trás daquele fenômeno da saída da água pela torneira. Mas o que tem a ver com isso a chuva que me apavorava e que continua apavorando tantas pessoas nos dias atuais, assoberbadas com as cheias e inundações? Será que elas estão conscientes de que as chuvas que danificam o patrimônio, e até matam, são as mesmas que podem abastecer os reservatórios subterrâneos e garantir água nas nascentes, nos rios ou nos poços? Fontes de onde a água pode ser coletada, tratada, conduzida por tubulações e disponibilizada nas torneiras das casas que têm a felicidade de contar com sistemas de abastecimento.
.Chuvas intensas não são novidades. Já ocorreram muitas e vão continuar ocorrendo. E sempre que houver uma conjunção de fatores favoráveis, lá estarão elas assustando os meninos de hoje e apavorando os adultos brasileiros que ainda não estão preparados para lidar com fenômenos naturais que guardam retornos erráticos. Compete aos especialistas o aprimoramento das tecnologias de previsão e a busca constante de alternativas tecnológicas para minimizar as ações destrutivas. Aos gestores públicos e privados o estabelecimento de políticas que possam adotar tais tecnologias.
O grande problema é que os gestores têm memórias seletivas, pois se esquecem de tudo tão logo o assunto some da mídia e o povo sofrido retorna ao seu anonimato. Os “especialistas de plantão”, também, deixando conexões vagas, receitas genéricas e palpites, muitos e inúteis palpites. O certo é que o crescimento populacional vem aumentando a pressão sobre áreas e chuvas que não causavam maiores transtornos, hoje acabam matando e destruindo bens materiais.
Mas os sonhos não são privilégios de crianças e não tenho mais medo das nuvens pretas, ou de qualquer outra cor. Posso, então, sonhar com o dia em que a humanidade e as chuvas, mesmo que intensas, possam ter relações mais harmônicas. De minha parte, tenho trabalhado profissionalmente por essa harmonia, já há muito tempo.
Osvaldo Ferreira Valente, Engenheiro Florestal, Especialista em Hidrologia e Manejo de Pequenas Bacias Hidrográficas e Professor Titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); ovalente@tdnet.com.br
[EcoDebate, 03/12/2008]
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Ótimo artigo! Parabéns!