Corrigindo para Sobreviver, artigo de Carlos R. Spehar
[EcoDebate] O aperfeiçoamento dos processos na atividade humana, mais do que uma necessidade, é indispensável à sobrevivência. Nos sistemas agrícolas não poderia ser diferente. Eles são diretamente dependentes da capacidade de perceber e internalizar que a vida, como um todo, fundamenta-se na diversidade.
Quando o cidadão urbano, em qualquer parte do mundo, faz uma pausa para as refeições, nem imagina o que se passou até degustar o alimento que lhe chega à boca. Toda uma cadeia complexa de transformação está envolvida, apoiada na produção agropecuária. Lá no estabelecimento rural, bem perto da natureza, onde sistemas empíricos ou sofisticados produzem, visando sustentar o agricultor, estão as oportunidades para avanços.
Tem de ser onde acontecem as coisas que se deve atuar de forma sistemática. Se todos os segmentos da sociedade perceberem a importância de investir na base, no alicerce mesmo, aí se pode caminhar para mudanças que revertem tendências.
Quais seriam essas mudanças?
Primeiro torna-se necessário entender como atuam esses abnegados; como é o seu dia-a-dia. Ou, quais as perspectivas de seus sonhos, sua percepção do mundo ao redor, criarem fazendo frente a desafios? Pode-se dizer que o sucesso depende de ultrapassar os limites de sua imaginação e nisso se iguala ao cidadão urbano. Porém, longe de imaginar serem eles simplistas, da sua criatividade, que se apóia na visão de conjunto, dependem todos os demais.
O grande dilema é estrutural; a base da ciência, grande parte cartesiana, tem falhas, ao estudar as partes, que, integradas, chegam ao todo. Quando nos especializamos nas partes, descobrimos o conjunto a que pertencem. Porém, na prática, essa abordagem não atende a visão sistêmica. Não contempla interações e sinergias, nem leva em conta as interfaces.
Melhor dizendo, há uma acomodação, em maior ou menor escala, como conseqüência do específico. A maioria da população atua sem enxergar o conjunto a que pertence. Daí, as distorções sociais, econômicas, biológicas e ambientais. Quando intervimos, levamos conosco a essência cartesiana; nossa especialidade nos trai.
Comparativamente, seria como um médico especialista em doenças cardio-vasculares. Ele pode ser o melhor nessa área, porém se não visualizar o organismo, se não conhecer o histórico de seu paciente, poderá eliminar um mal criando outro. Os efeitos colaterais, somados a possíveis tendências ou falhas no metabolismo, podem trair sua especialidade. Quantos casos devem existir em que o paciente se vai por falta da visão de conjunto!
Na agricultura, construída em base biológica, não pode ser diferente. As conseqüências podem ser menos trágicas pois uma planta menos nutrida ou intoxicada por mau uso de defensivos não causa o mesmo impacto que a perda de uma vida humana. Porém, pode arruinar a economia do agricultor, comprometendo sua atividade e refletir nos demais segmentos.
Neste ponto vale à pena refletir. A visão sistêmica nos diz que o produto com resíduos químicos, ou originário de planta ou animal mal nutridos, pode ter impacto direto no cidadão urbano, O mesmo que degusta seus alimentos, produzidos por alguém especializado, sem saber que um dia terá de consultar outro especialista.
Então o que se poderia dizer, voltando ao nosso cidadão rural que alimenta a sociedade de especialistas?
Incorporar o conceito de visão sistêmica, de como funcionam as coisas em conjunto, é fundamental. A sua sobrevivência interfere diretamente na dos demais. É para ele que políticas públicas especiais devem ser dirigidas, treinando-o desde cedo a desempenhar o seu papel. Ele terá ao mesmo tempo a visão do micro e do macro. É como conhecer cada átomo, molécula, célula, tecido até chegar no organismo, entendendo como cada um atua.
Mais ainda, as interações existentes, mudando expectativas quando se reúnem organismos diferentes. Os efeitos do meio (clima, solo) e a complexidade de resposta. Se ele desenvolver essa visão, as grandes transformações ocorrem.
Ao mesmo tempo, na educação dos demais cidadãos devem-se seguir políticas semelhantes,visando a cosmovisão, de tal forma que, no conjunto, as gerações do futuro possam corrigir as distorções do modelo atual de desenvolvimento.
Enfim, quando se fala em educação como a saída para os males sociais, tem-se que re-definir as suas bases, pois ela tem sido cartesiana em essência.
As correções não são as de negar a utilidade dos modelos para explicar fenômenos, mas de orientar a todos a conhecer o funcionamento dos conjuntos e suas implicações no todo.
Seria como aplicar as leis universais em nosso dia-a-dia. Ou, estabelecer metas de ampliar a percepção, de tal forma que se evoluam conceitos. Sempre, o primeiro passo para se corrigir algum problema é o uso da ferramenta certa, dentro de um contexto.
Um mecânico pode ter frustrados seus desejos de corrigir problemas em um carro sem as ferramentas apropriadas. Porém, se enxergar mais, além de mecânico, estará pensando em como encontrar a solução energética, contribuindo para criar veículos mais amigos do ambiente.
De todas as atividades a que tem interferido mais é a dos governantes. Em geral, se apóiam em promessas, frustrando os eleitores esclarecidos e distribuem migalhas aos menos favorecidos. Com a ampliação da visão dos cidadãos, não fariam absurdos, como por exemplo, ampliar o consumo de bens escassos, sob pena de ser condenados ao ostracismo.
Os votantes mais preparados, com visão ampla, estariam sintonizados, não haveria como escapar.
Antes que seja tarde, de algum ponto se tem de iniciar. Voltemo-nos ao agricultor. Com essa nova perspectiva, sua presença na sociedade se tornará mais destacada e perceptível, a partir do momento que ele desenvolver a visão de conjunto e aplicar no dia-a-dia. Isto é, ele compreenderá o suficiente a complexidade dos sistemas biológicos, ao ponto de a ciência ouvi-lo, além de tê-lo como parceiro. Assim, por efeito em cadeia, os demais segmentos, de alguma forma a ele relacionados terão sua influência positiva. Rumos serão corrigidos, com responsabilidade de quem deixa um legado: a sobrevivência do próprio ser, na perpetuação das idéias que se propagam de geração em geração. Então teremos o fim dos tempos, apenas, ressurgindo o ser em todo seu esplendor, em base sólida.
Carlos R. Spehar é Prof. da Universidade de Brasília e colaborador do EcoDebate
Nota do Ecodebate: vejam abaixo outros artigos do Prof. Carlos R. Spehar já publicados pelo Ecodebate
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[EcoDebate, 24/11/2008]
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