Aos 11 anos, Isabel ajuda o pai ameaçado de morte por invasor de fazenda no Pará. Família vira refém do próprio medo
Com medo de que o pai, Aldivino Antônio Eneias, seja assassinado por um grileiro, uma menina de apenas 11 anos se transformou na personagem principal de um conflito agrário em Goianésia do Pará, no sudeste do Estado, a 360 quilômetros de Belém. Isabel Lima Eneias, em vez de fazer atividades próprias da sua idade, questiona magistrados, não se intimida e ainda escreve cartas ao presidente da República. Ela conta que o fazendeiro do município de Jacundá, Ciro Rodrigues Braz, que é conhecido como “Valente”, invadiu o terreno de 18 famílias em uma área próxima ao rio Jutuba, que fica a 30 quilômetros do perímetro urbano do município, em 2002. Mesmo sem nunca ter ouvido falar de Dorothy Stang, a história da menina lembra a da missionária, que, em 2005, foi assassinada por defender durante 20 anos os trabalhadores sem-terra na região de Anapu, no sudoeste paraense. Por Tainá Aires, do O Liberal, PA, 16/11/2008.
Isabel fala como gente grande. “Meu pai me ensinou tudo o que sei sobre terras. Por causa da invasão do nosso terreno, acabei me interessando pelo assunto. Como não tínhamos o apoio da Justiça, a solução foi procurar a imprensa. Esse é um direito da minha família e vamos lutar para que ele seja respeitado. Quero mostrar que os pobres também conseguem conquistar os seus objetivos”, diz a menina.
REVOLTA
Isabel, que começou a ler com dois anos e meio, expressa a revolta com a situação da família em cartas. Ela já enviou uma para o jornalista Wiliam Bonner, editor-chefe do Jornal Nacional, da Rede Globo, e outra para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ela conta que, no ano seguinte à invasão, por causa das constantes ameaças que Ciro fazia ao pai e aos dois irmãos, eles decidiram se mudar para Águas Lindas (GO). Na cidade, a família passou por várias dificuldades financeiras porque Aldivino não conseguia arrumar emprego. Devido a essa situação, Isabel disse ao pai que estava na hora de lutar pelo direito às terras que deixaram em Goianésia. “Meu pai não conseguia emprego por causa da idade. Passamos por várias privações. Foi muito triste. Mas sabíamos que Deus iria nos orientar e proteger”, explica Isabel.
Em 2005, Ciro novamente invadiu as terras da família. Mas, desta vez, o objetivo era a extração ilegal de madeira. Isabel diz que o pai procurou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) em Tucuruí e cinco vezes foram realizadas apreensões de madeiras na região. Porém, Ciro conseguiu recuperá-las e vender tudo o que havia sido apreendido. Já em 2006, a família entrou com uma liminar por esbulho de madeira e liberação dos acessos à propriedade que estavam trancados com cadeados. No processo, Aldivino anexou os documentos que provavam que ele era dono da propriedade. No dia 31 de agosto, foi realizada a audiência e a juíza de primeira instância, Maria Aldecy de Souza Pissolati, confirmou a autenticidade do título de terra referendado pela certidão de número 300 do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e dos outros documentos apresentados.
Já em 3 de outubro, a desembargadora Maria Rita Lima Xavier suspendeu a liminar que concedia a posse da terra para Aldivino. Ciro apresentou documentos que mostravam que ele possuía 2.700 hectares na região, onde vive com a família e desenvolve a criação de gado. Além disso, consta que existem casas, açudes e pastos no terreno.
Fotografias
A declaração de que Ciro residia no terreno da família revoltou Isabel. Ela explica que na Fazenda “Boiadeiros”, que é de propriedade do seu pai, não existem residências e muito menos currais. No local, eles apenas plantavam frutas e verduras. “Nós fomos ao Tribunal de Justiça para falar com a desembargadora. Lá, fomos atendidos pelo assessor dela, o Breno Borges, que disse que iria vistoriar a área. Mas nada foi feito”, conta.
Ciro, de acordo com a menina, apresentou ao Tribunal duas fotografias de casas. O pai de Isabel constatou que as fotos correspondem a duas residências que ficam em locais diferentes. Uma delas na margem direita da Estrada da Cikel e a outra próximo ao rio Ararandeua. As duas residências são, de fato, de propriedade do grileiro. “Como que a desembargadora dá a posse de terra para uma pessoa que mostra a foto de uma casa que não existe no local?”, indaga a menina.
Família vira refém do próprio medo
Briga pela terra leva o pai e irmãos de Isabel a se trancarem dentro da casa onde vivem
Além da Fazenda “Boiadeiros”, Ciro Braz também invadiu a Fazenda “Vitória”, uma propriedade que está no nome do casal Geovar Nogueira de Moura e Maria da Luz de Penha Moura e mais 2.756 hectares de terras devolutas do Estado. Aldivino Antônio Enéias diz que não sabe como Ciro Braz conseguiu um documento que mostra que ele ocupa apenas 2.700 hectares, sendo que, no total, todas estas áreas correspondem a 5.731 hectares. “Eu não entendo como o Tribunal de Justiça ainda mantém esse cara lá dentro. Nós entramos com uma ação de esbulho de madeira e o Tribunal entregou as terras para esse ladrão. Nós apenas queremos mostrar que a casa que o Ciro Braz diz que está nas nossas terras não está lá”, diz o pai de Isabel.
O fotógrafo que, supostamente, teria feito as fotos da casa, Raimundo Barros, conta que um senhor que mora em Jacundá foi quem pediu que ele fizesse o serviço. Ele diz ainda que não atravessou nenhuma mata para chegar até o local, apenas ficou na margem da estrada – o que, teoricamente, seria impossível, já que a Fazenda “Boiadeiros” fica dentro da floresta. “Quando conversei com o Aldivino, ele associou a pessoa ao Ciro Braz imediatamente. Essa fotos foram feitas há mais de um ano”, conta.
Até hoje, Aldivino paga os impostos das terras da fazenda “Boiadeiros”. Segundo ele, essa é uma forma de provar que ele é o dono da propriedade.
AMEAÇA
Quando O LIBERAL chegou a casa da família, em Goianésia, eles rapidamente a trancaram e mantiveram as janelas fechadas. Apesar do calor que fazia na região, o medo de ser atingido de surpresa por um tiro de um dos capangas de Ciro Braz já faz parte do cotidiano da família. O irmão de Isabel, o pequeno Vinícius Enéias, de apenas 7 anos, conta que um dia, quando estava sozinho em casa com seus irmãos, Ciro Braz bateu com muita força na porta e começou a chamar por seu pai. “Nós ficamos com muito medo. Ele parecia estar bastante bravo”, diz.
O outro irmão de Isabel, Arthur Enéias, que tem 13 anos, informou que Ciro Braz é como um cachorro da raça Rottweiler. “Toda vez que meu pai tenta conquistar pela Justiça o direito das nossas terras, ele avança e ameaça, é horrível. Eu tenho muito medo de que algo de ruim aconteça com o meu pai e com a minha família. Ele já foi ameaçado de morte várias vezes”, conta Arthur.
Aldivino diz que Goianésia do Pará é uma terra sem lei e que a única defesa da família é se manter trancada em casa. Ele diz ainda que as crianças têm medo do Ciro Braz porque ele é um bandido profissional. “Eles já conhecem a minha rotina, ficam me perseguindo constantemente. Uma vez, eles tentaram me agredir fisicamente, mas escapei. Se a gente conseguir as terras de volta, vou vendê-las e nunca mais colocarei meus pés aqui. Nós precisamos de paz em nossas vidas”, explica.
O pai de Isabel, que é professor de uma escola do município, informou que cinco alunos indígenas, que também tiveram as terras invadidas e poderiam conceder entrevista para O LIBERAL, não apareceram quando souberam que a equipe de reportagem estava em Goianésia. Segundo Aldivino, eles, que residiam na aldeia Amanagés – próxima ao rio Ararandeua – estavam com medo de represália.
FAZENDA
Joeli Gomes dos Santos, que também teve a terra invadida por Ciro Braz, acompanhou a equipe de O LIBERAL até a fazenda “Boiadeiros” e outras terras que estão sob a posse do grileiro, junto com os irmãos Arthur e Vinícius. Ele não entrava no local havia dois anos, porque a área é sempre vigiada por homens armados a mando de Ciro Braz. A sensação de Joeli ao chegar no terreno era de revolta pela situação em que se encontra atualmente. Ele, que conhece cada canto da área, se decepcionava ao ver que tudo o que ele, Aldivino e mais outras famílias tinham preservado, estava sendo destruído. Foram encontrados mais de 40 fornos de carvão, desmatamento e, segundo Joeli, os trabalhadores que estavam no local eram escravos. Isabel, com medo de Ciro Braz, não quis ir até a fazenda. “A gente só não age com violência porque tem Deus no coração. Mas ficamos com muito desgosto quando vemos a nossa terra sendo destruída”, disse Joeli.
[EcoDebate, 18/11/2008]
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Nossa! Lembra o Velho Oeste nas películas americanas: um bandido, hediondo e amedrontador amordaça moralmente o Xerife e o Juíz. As famílias se trancam em suas casas e no Saloon (de Goianésia?) todos se curvam, tirando o chapéu ao bandido, que encosta no balcão e mistura o gelo ao uísque com o revólver. Há cena anterior à chegada do bandido na cidade (Goianésia?): o Xerife e o Juíz se escafedem, alegando trabalhos urgentes fora da cidade. Um filme com final triste, porque, das vidraças de suas casas os moradores, incluindo as famílias do Xerife e do Juíz, vêem uma menina de 11 anos, inexperiente no gatilho, sendo morta em duela com o “Valente”.