O rastro de devastação da cana no Brasil
Estudo contradiz tese do governo de que o etanol é uma energia “limpa”, produção do combustível causa danos sociais e ao meio ambiente
O avanço do monocultivo da cana-de-açúcar no Brasil ameaça a soberania alimentar, gera degradação do meio ambiente e propicia exploração do trabalho. Essas são as principais constatações do relatório: “Os impactos da produção da cana no Cerrado e na Amazônia”, elaborado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Matérias de Michelle Amaral, da redação da Agência Brasil de Fato, 13/11/2008.
O levantamento mostra que a principal causa da expansão da cana no Brasil é a produção do etanol. A União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) estima que 70% da cana colhida seja destinada à produção do etanol, enquanto os outros 30% são para a produção de açúcar. Hoje, o setor sucroalcooleiro produz cerca de 18 bilhões de litros de etanol, e a previsão é de se chegar a 28 bilhões em 2010. De acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), nos últimos dois anos a área de plantação de cana-de-açúcar cresceu de 4,5 milhões para 7 milhões de hectares.
Segundo Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, a expansão do monocultivo é resultado de uma opção política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, impulsionada pela pressão da bancada ruralista e de grandes empresas. “O Lula está fascinado com essa história do etanol, de que o Brasil vai se tornar uma potência energética”, opina Maria Luisa.
Grandes canaviais
De acordo com o relatório, o monocultivo impede que o Brasil alcance a soberania alimentar. Terras antes destinadas à produção de alimentos têm sido transformadas em extensos canaviais. “Nós estamos expandindo um modelo que sabemos que é destruidor”, lamenta a coordenadora da Rede Social.
Para José Plácido Junior, agente pastoral da CPT-PE, governo federal foi convencido pelas transnacionais de que o agronegócio é a solução para a agricultura brasileira. “As transnacionais não estão preocupadas em encher a barriga do povo, e sim, em lucrar cada vez mais, seja qual for a cultura que tenham que plantar. No momento, são os agrocombustíveis. Quando passar essa euforia, quem vai pagar a conta?”, questiona.
O relatório alerta para o fato de que a energia que a humanidade necessita para sua sobrevivência é a gerada pelos alimentos. No Brasil, apesar do potencial agrícola, cerca de 14 milhões de pessoas passam fome e mais de 72 milhões vivem em situação de insegurança alimentar, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Esse quadro é resultado do modelo agrícola adotado, que prioriza a expansão de monocultivos visando a exportação de commodities, em detrimento da produção de alimentos para o mercado interno.
Pobreza e fome
O estudo também denuncia que o Brasil continua sendo um dos países em que há mais concentração de renda e terra, além de manter um alto índice de pobreza e fome.
Maria Luisa destaca que, ao contrário do que é divulgado pelo governo federal- que as terras destinadas à produção do etanol são aquelas já degradadas- o monocultivo da cana tem avançado em terras férteis.
A coordenadora da Rede Social afirma que o governo deveria priorizar o modelo de agricultura camponesa, e que este, na verdade, não deve ser visto como uma política assistencialista, mas como uma política central. Segundo ela, os países ricos se desenvolveram com a realização da reforma agrária. No entanto, o “Brasil continua desenvolvendo uma política colonial, voltada para o mercado externo”, lamenta.
Plano de zoneamento
O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, afirmou, no início de novembro, que o plano de zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar foi concluído. O ministro disse que o plano garante que não sejam feitas novas usinas de cana na Amazônia ou no Pantanal, além de estabelecer prazo para acabar com as queimadas da cana e para melhor destinação dos resíduos gerados no processo de produção. Minc também enfatizou que, segundo o plano, não haverá mais invasão de área de produção de alimentos. “Nosso etanol será verde, não vai agredir os biomas, nem vai substituir a produção de alimentos”, defendeu.
No entanto, de acordo com o estudo, a produção de cana já tem causado grandes impactos ambientais e sociais no Brasil, alguns deles irremediáveis, como por exemplo a devastação da Mata Atlântica e do Cerrado.”A cana já está na Amazônia e os governos, tanto federal como estaduais, contribuem para isso”, afirma Mendonça. Segundo ela, o papel das usinas sucroalcooleiras é legalizar a grilagem de terras e os próprios governos contribuem com essa prática.”O próprio governo Lula já aprovou a Medida Provisória para facilitar a grilagem de terras”, denuncia Mendonça.
A Medida Provisória aumenta de 500 para 1.500 hectares a área de terras públicas que pode ser vendida sem licitação na Amazônia.
A cana na Amazônia
Plácido Júnior lembra que não há como o governo federal afirmar que não há cana na Amazônia, já que própria Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) reconhece a existência do monocultivo na região. Segundo dados da Conab, houve um aumento na produção de cana na Amazônia, entre 2007 e 2008, de 17,6 milhões para 19,3 milhões de toneladas.
Para Maria Luisa Mendonça, a política adotada pelo governo contradiz seu discurso de que a produção do etanol seria uma saída ao aquecimento global. “Ao priorizar uma política que traz a devastação, aumenta-se os impactos sobre o clima. Se a intenção é diminuir o aquecimento global, essa política está equivocada”, conclui.
Plácido Júnior aponta outro fator que comprova a expansão da cana na Amazônia. Segundo ele, existem projetos ambiciosos na região, através da Iniciativa de Integração de Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), que visa a construção de hidrovias, por onde será possível escoar a produção de açúcar ou de etanol pelo Oceano Pacífico, diminuindo os custos de produção. “É um Governo a serviço do grande capital”, completa.
* Monocultivo ameaça biodiversidade brasileira
Expansão da cana é responsável pela devastação da Mata Atlântica e segue sobre o Cerrado e a Amazônia
O relatório “Os impactos da produção da cana no Cerrado e na Amazônia”, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mostra que a expansão da cana-de-açúcar no Brasil tem causado graves impactos ao meio ambiente. O levantamento aponta o desmatamento e a poluição das águas e do ar como alguns dos prejuízos provocados pela cana.
“O modelo de produção baseado no latifúndio e no monocultivo, seja ele de que cultura for, é inerentemente violento e devastador”, afirma José Plácido Júnior, agente pastoral da CPT-PE.
Segundo Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, um exemplo é a Mata Atlântica. “Foi lá onde começou o cultivo da cana. Em Pernambuco, por exemplo, há menos de 3% de Mata Atlântica”, completa.
Somente a cana
No caso da vegetação, Maria Luisa conta que, mesmo quando o plantio de cana se dá em terras antes destinadas à criação de gado, onde já se notava um nível de desmatamento por causa da abertura de pastos, o efeito do monocultivo ainda causa mais danos ao meio ambiente. “O gado precisa de sombra, então ainda se vê a preservação das árvores grandes. Quando chega a cana, é um outro nível de degradação, porque ela não convive com nenhum outro tipo de vegetação”, completa.
“O monocultivo da cana empurra as moto-serras e bota o boi para dentro da Amazônia e do Cerrado, causando enormes desmatamentos e destruição ambiental e, além de tudo isso, invade os territórios indígenas e quilombolas”, exemplifica Plácido Júnior.
“Pai das águas”
A exemplo dos efeitos que a expansão da cana traz ao meio ambiente, o estudo relata a devastação que o monocultivo tem causado no Cerrado. Maior bioma brasileiro, o Cerrado abriga a nascente das três principais bacias hidrográficas da América Latina: Tocantins, São Francisco e rio da Prata.
No bioma, a produção da cana gera contaminação das águas pelo uso de agrotóxicos e por resíduos lançados nos rios, o que afeta a biodiversidade não só do Cerrado, como de outras regiões alimentadas por suas águas, como o Pantanal, e prejudica as populações rurais da região. Além disso, a quantidade de água utilizada para a irrigação das plantações de cana, favorece o processo de secagem dos brejos e dos leitos dos rios, dizimando pequenas nascentes.
Poluição do ar
Outro problema apontado pelo estudo é a poluição do ar. Ao contrário da defesa do governo, de que a energia gerada pelo etanol é “limpa”, o relatório mostra que mesmo antes da conclusão do processo de produção do combustível, ele gera um alto nível de poluição do ar e causa danos à saúde das pessoas.
Após a colheita da cana, é feita a queima da palha restante, o que libera gases que contribuem para o efeito estufa. Foram constatados casos de doenças agudas e crônicas, e até a morte de trabalhadores por causa da exposição à fuligem gerada pelas queimadas da cana.
“Aqui em São Paulo, se você viaja para a região de Ribeirão Preto, na época de colheita da cana, vê que a população não consegue respirar por causa das queimadas”, relata Maria Luisa Mendonça. (M.A.)
* Expansão dos canaviais é acompanhado por exploração de trabalho
“A maioria dos escravos libertados o ano passado estavam nos canaviais”, conta José Plácido Júnior, agente pastoral da CPT
O avanço da cana-de-açúcar aumenta as violações de direitos trabalhistas e os casos de trabalho escravo, denuncia relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Embasado em dados oficiais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o levantamento mostra que os casos de cortadores de cana submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão são freqüentes. Faltam recursos básicos à sobrevivência dos trabalhadores nos canaviais e há casos de privação da liberdade, tanto por dívidas ilícitas impostas pelos produtores como por isolamento geográfico.
“A maioria dos escravos libertados o ano passado, por fiscais do trabalho e polícia federal que compõe o Grupo Móvel, estavam nos canaviais”, conta José Plácido Júnior, agente pastoral da CPT.
Além disso, o estudo aponta que os cortadores de cana sofrem com a falta de cumprimento da legislação trabalhista e com a exposição a situações de risco à saúde. No estudo constatou-se intoxicações por uso de produtos químicos, morte dos trabalhadores por inalação de gás cancerígeno, incidência de problemas respiratórios gerados pela queima da palha da cana, que libera gases tóxicos, assim como ferimentos recorrentes por facões utilizados no corte da cana.
Maria Luisa Mendonça, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, defende que a solução para este problema é a realização de uma reforma agrária efetiva.
De acordo com ela, a violação dos direitos dos trabalhadores é resultado do modelo de produção adotado, baseado nos monocultivos e direcionado às empresas transnacionais e grande produtores. “Se você tira da população rural os seus meios de subsistência, haverá um maior número de mão-de-obra disponível, e se propicia uma maior exploração de trabalho. Nenhum governo realizou uma política agrária compatível com as demandas históricas dos trabalhadores”, explica Mendonça.
Segundo Plácido Júnior, Agente Pastoral da CPT, com o modelo de produção vigente no país hoje, não há possibilidade de extinção do trabalho escravo ou da devastação ambiental. (M.A.)
[EcoDebate, 15/11/2008]
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