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O hiperconsumismo leva a um impasse, entrevista com Benjamin Barber


Imagem: Stockxpert

A crise financeira serve para desbaratar alguns mitos: o mito do mercado todo-poderoso, com seus corolários, entre eles a desregulamentação e a privatização; o mito do capitalismo hiperconsumista; e, o mito de que o capitalismo pode triunfar fabricando desejos, necessidades, e não produtos. A análise é de Benjamin Barber, ex-conselheiro de Bill Clinton.

Segundo Barber, a crise tem reflexos sobre a gestão do próximo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, cuja política “deverá passar por um intervencionismo fiscal mais acentuado, uma presença reforçada do ministério da Fazenda junto à Reserva Federal. Nem os democratas nem os republicanos poderão escapar disso”, diz. “Mas o futuro presidente e seus conselheiros terão suficiente imaginação para compreender que para resolver a crise atual não bastará reformar o sistema?”, pergunta Barber.

Segue a entrevista que Benjamin Barber concedeu a Marie Chaudey ainda antes das eleições nos Estados Unidos e publicada na revista francesa La Vie, 30-10-2008. A tradução é do Cepat.

Quais são, na sua opinião, os mitos desbaratados pela crise financeira?

A mais importante é aquela que Reagan lançou: o mito do mercado todo-poderoso com seus corolários, a desregulamentação e a privatização. O preceito reaganiano de base afirma que o governo é o problema, o mercado, a solução. Nos últimos trinta anos, os Estados Unidos comungaram desta ideologia, tanto os democratas como os republicanos. Ronald Reagan, mas também Carter, e inclusive Clinton, contribuíram para a desregulamentação da indústria, sem falar dos bancos e dos mercados financeiros.

Ronald Reagan castigava a “burocracia” governamental…

Mas ao atacar este suposto “burocrático”, foi o poder dos próprios cidadãos que os neoconservadores minaram, foi a democracia que eles fizeram retroceder. A crise dos créditos hipotecários nos oferece hoje uma perfeita ilustração da despossessão dos cidadãos, tanto no sentido próprio como no figurado. Porque o segundo mito em questão é aquele do capitalismo hiperconsumista: não haveria mais cidadãos, mas apenas consumidores. Esta idéia de que o consumidor é um ersatz do cidadão – com desejos individuais a satisfazer, sem relação com nada que seja coletivo – infelizmente se enraizou. Os americanos têm o espírito mercantil, mesmo quando escolhem seu presidente! Bill Clinton tinha o costume de dizer: “Vocês me contrataram pelo emprego”. Eu o fiz perceber que este vocabulário era perigoso. Um presidente é um representante da vontade dos cidadãos. A Casa Branca não é uma grande loja em que os americanos seriam os clientes do governo e mudariam o diretor quando não estivessem mais satisfeitos com os supostos “serviços”.

No seu livro, você aponta o perigo do colapso de um sistema que baseado no hiperconsumismo. Para você, esta crise era inevitável?

Absolutamente. Porque ela está ligada a um terceiro mito, a crença de que o capitalismo pode triunfar fabricando desejos, necessidades, e não produtos. Com a ajuda do marketing e do convencimento publicitário, trata-se de persuadir as pessoas a comprarem coisas das quais elas não têm nem desejo nem necessidade e nem recursos para adquiri-los: nós estamos no centro do problema. Se, no curto prazo, o hiperconsumismo pode funcionar, está condenado a um impasse no longo prazo. O que é preocupante no Plano Paulson de ajuda aos bancos é que o governo tenta cuidar de um simples ferimento, quando se trata de um profundo câncer do sistema.

Mas os americanos estão prestes a mudar seus hábitos de vida?

Prestes ou não, esse não é o problema: eles não têm mais as possibilidades… Se hoje retirarmos deles o cartão azul, tiraremos deles as casas. Eles serão obrigados a admitir que não podem eternamente ir ao shopping! Não há melhor maneira para mudar de hábito do que receber uma brutal lição de economia. A moral não é uma boa modeladora da História, a realidade sim. Os publicitários vão ter mais dificuldades para convencer as pessoas que comprar é a melhor coisa que elas podem fazer para si mesmas e pelo país.

Podemos comparar a crise atual com a de 1929?

É um novo grande desastre, mas para além desta constatação é difícil fazer qualquer comparação. A realidade mudou, as reações políticas são mais rápidas hoje, o mundo é globalizado e os países são interdependentes. Eu não acredito que o desemprego chegue a 30%, como em 1929. Na época, não havia precedentes em termos de intervenção dos poderes públicos. Agora tudo vai depender da maneira como o governo vai continuar a responder à crise. Mas, evidentemente, nós estamos no fim de uma era do capitalismo selvagem, totalmente desregulado. A ironia do destino quis que fosse George W. Bush quem realizasse as primeiras nacionalizações, ele que tanto odiava o socialismo e sempre defendeu um intervencionismo mínimo! Mas a realidade claramente venceu as mitologias.

Então o desafio para o próximo presidente será grande?

Exatamente. E mesmo se ganhar McCain, deverá passar por um intervencionismo fiscal mais acentuado, uma presença reforçada do ministério da Fazenda junto à Reserva Federal. Nem os democratas nem os republicanos poderão escapar disso. Mas o futuro presidente e seus conselheiros terão suficiente imaginação para compreender que para resolver a crise atual não bastará reformar o sistema? Há um ajustamento do qual ninguém fala: o que o capitalismo vai fazer se não vender mais seus produtos? E não falo apenas do capitalismo americano, mas também do capitalismo chinês que depende do consumo americano. Se a economia chinesa desacelerar, será o fim do famoso “milagre” e poderemos temer por uma instabilidade social e política do lado de Pequim. Em resumo, será necessário que o capitalismo encontre uma solução. E, na minha opinião, terá interesse em considerar as necessidades reais das pessoas: as energias alternativas, os produtos verdes, a moradia inovadora… O capitalismo deve restabelecer a sua vocação primeira: fornecer serviços e produzir coisas úteis.

Será Barack Obama o homem da situação?

Até o momento, ele foi aconselhado por economistas de linha mais conservadora como Austan Goolsbee, da Universidade de Chicago, ou Robert Rubin, especialistas que fazem parte dos mesmos círculos que ocasionaram a crise financeira… Eles podem ajudar a encontrar remédios pontuais, mas não acredito em mudanças fundamentais. Se Obama for eleito, os Estados Unidos conhecerão formidáveis evoluções: será um bom antídoto ao racismo, o fim do “teto de vidro” para os jovens negros. O presidente representará o verdadeiro rosto multicultural dos Estados Unidos, cuja população já não é mais metade branca em Estados como a Califórnia ou a Flórida. Mas não se deve esperar uma revolução do capitalismo. Há tantas esperanças em relação a Obama que, me arrisco a dizer, as pessoas forçosamente se decepcionarão. Nos países árabes, é elevado ao pináculo: vimos, no entanto, que deu mostras de muita amabilidade para com os lobbies israelenses, tudo para convencer que ele não é muçulmano. Em certo sentido, pelo fato de ser negro, Obama deverá provar mais do que qualquer outro, que ele é um bom americano tranquilizador…

(http://www.EcoDebate.com.br, 15/11/2008) publicado pelo IHU On-line, 14/11/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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