O desperdício de alimentos no Brasil, artigo de Walter Belik
[Valor Econômico] Há exatos dez anos está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4747/1998 do senador Lúcio Alcântara que incentiva a doação de alimentos para instituições cadastradas protegendo o doador de responsabilidades legais, caso o produto tenha sido doado de boa fé e possa causar danos ao beneficiado. A aprovação desse projeto é considerada fundamental pelos Bancos de Alimentos no sentido de evitar o desperdício e atender a enorme fila de instituições que servem refeições e que não encontram meios de se manter.
O conceito de Banco de Alimentos remonta aos anos 60 nos Estados Unidos, quando um grupo de voluntários passou a solicitar doações de alimentos que seriam descartados pelos supermercados e pela indústria. O objetivo era o de preparar refeições para os necessitados na cidade de Phoenix, Arizona. Logo as doações superaram a capacidade de preparo de refeições da cozinha comunitária, e assim estes alimentos começaram a ser estocados e distribuídos a entidades filantrópicas. No início da década de 70, muitos outros bancos de alimentos surgiram em várias cidades, mas o movimento ganhou verdadeiro impulso com a Reforma Fiscal de 1976 (Tax Reform Act), que tornou mais vantajosa a doação de produtos pelas empresas. Em outubro de 1996, o presidente Clinton assinou a Bill Emerson Good Samaritan Food Donation Act, para incentivar a doação de alimentos a organizações sem fins lucrativos para serem distribuídos às pessoas que precisam.
Na Europa, esta ação teve início em 1984, quando foi criado o primeiro Banco de Alimentos em Paris. Em 1986 foi criada a Federação Européia de Bancos de Alimentos, que procurou unir experiências de bancos de alimentos de diferentes países. O surgimento da Federação significou a criação de uma organização com representatividade legal para negociar com autoridades e outras organizações de ajuda, além de ter maior capacidade de influenciar a opinião pública visando o consumo consciente de alimentos.
Hoje, o movimento de Bancos de Alimentos está presente em todo o mundo e tem uma forte atuação nos países desenvolvidos, onde o descarte de alimentos por falhas na fabricação ou proximidade com a data de vencimento é gigantesco. Segundo a Global Food Banking Network, o movimento mundial de Bancos de Alimentos atende aproximadamente 40 milhões de pessoas e conta com aproximadamente mil organizações de bancos de alimentos ligados à rede mundial.
Leis semelhantes ao “bom samaritano” foram aprovadas em diversos países. Na América Latina merece relevo a Argentina que, apesar de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, deparou-se com um rápido aumento da pobreza e insegurança alimentar a partir dos anos 90. Outro destaque é o México, onde o descarte de alimentos é considerado um crime e as empresas se vêem obrigadas a doar sobras e produtos com problemas de embalagem ou apresentação.
No Brasil, temos um conjunto de aproximadamente 140 Bancos de Alimentos atuantes, entre os chamados bancos públicos e aqueles mantidos pela iniciativa privada e ONGs. A maior rede está organizada pelo Sesc Mesa Brasil, com 70 unidades e uma coleta anual de 32 mil toneladas. Uma análise preliminar desse segmento demonstra, em primeiro lugar, que o volume de alimentos distribuído ainda é pequeno diante do montante do desperdício. Esse ocorre em todos os elos da cadeia – desde o campo até o produto processado. Em alguns casos ocorre a perda de produto devido a problemas de manipulação, armazenamento ou contaminação. Esse alimento não é bom para o consumo e não pode ser aceito para doação, embora possa servir para ração animal ou para a preparação de composto orgânico. Por outro lado, existe uma enorme quantidade de alimentos que são simplesmente destruídos, pois o produtor ou o fabricante não tem a garantia de que este poderá chegar em boas condições ao público necessitado. Nesse caso, os Bancos de Alimentos se encarregam de retirar o produto da fazenda, da unidade de processamento ou de comercialização atestando a sua sanidade e responsabilizando-se por qualquer dano que esse possa fazer ao destinatário final. O problema da legislação brasileira é que esse documento, assinado por um profissional qualificado do Banco de Alimentos, não tem valor legal, e o fabricante ou o comerciante é passível de punição pelo Código Civil e pelo Código do Direito do Consumidor.
Para contornar esse problema, foi proposta a Lei 4747/1998, que se encontra atualmente engavetada na Câmara dos Deputados. Após ter tramitado em Regime de Urgência no Senado, o projeto foi encaminhado à outra casa nesse mesmo ano. Finalmente, em 2004, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara aprovou um substitutivo do deputado Sigmaringa Seixas e desde então a matéria entrou na pauta de votação. Caso aprovado esse substitutivo, o projeto deverá voltar ao Senado e mais tarde retornar à Câmara para nova votação, em um passeio que poderá levar mais alguns anos.
No momento em que vivemos a preocupação com a alta do preço dos alimentos e também com uma possível desaceleração da economia, não há dúvida que a situação de insegurança alimentar poderá se agravar. Nesse caso não basta apenas aumentar o volume de alimentos a ser coletados. Fica evidente também a necessidade de criação de uma verdadeira Rede Brasileira de Banco de Alimentos que possa organizar o processo de recepção dos alimentos em todo o território nacional e dar atendimento a cada instituição prestadora de serviços.
No mundo todo, os Bancos de Alimentos contam com o apoio direto de centenas de empresas, seja no que se refere às doações ou mesmo no transporte, estocagem e conservação de alimentos frescos. No México, por exemplo, a Associação Mexicana de Bancos de Alimentos, atingiu tal grau de participação que conta inclusive com os jovens alistados no serviço militar nacional. No Brasil, a presença das empresas ainda é tímida e os Bancos de Alimentos não estão organizados para evitar problemas com a manipulação de alimentos doados por parte das nossas precárias instituições sociais. Há também certa demanda por parte das empresas no sentido de aproveitar os créditos fiscais desse produto doado, situação essa que poderia ser atendida com uma legislação semelhante à americana.
Ainda há muito que fazer para que possamos avançar garantindo segurança alimentar e estabilidade para a população mais vulnerável. No Brasil, um alimento que não tem valor comercial é simplesmente descartado, embora possa ter um enorme valor social.
Walter Belik é professor livre-docente e membro do Núcleo de Economia Agrícola e Ambiental do Instituto de Economia da Unicamp. Artigo originalmente publicado no Valor Econômico, 24/10/2008.
Nota do EcoDebate:
O desperdício de alimentos é um sério problema mundial e, no caso brasileiro, é trágico porque o nosso desperdício seria suficiente para alimentar 19 milhões de pessoas.
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[EcoDebate, 25/10/2008]
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