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Artigo

Mato Grosso, Mato Ralo, artigo de Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

Um dos principais inimigos da preservação no Mato Grosso é o fato de que toda a política relacionada à produção agropecuária, não apenas dali, mas do próprio Estado brasileiro, vai no sentido oposto, incentivando o crescimento desenfreado da produção. Seria necessário inverter uma lógica que vem dominando o cenário desde muito tempo.


Imagem de arquivo EcoDebate

[Correio da Cidadania] Recentemente, visitei uma feira sobre produtos e serviços para a indústria de processamento de carnes em Chapecó, SC. Entre as dezenas de estandes de empresas do ramo, encontrei um do governo do Mato Grosso, onde a pecuária é um dos pilares da economia (os outros são a agricultura e a extração de madeira) e um dos vetores do desmatamento.

Nos livretos de propaganda distribuídos aos visitantes, claro que não poderia faltar a menção, atualmente tão indispensável quanto vazia de significado prático ou real, ao tal “desenvolvimento sustentável”, “conciliando os investimentos no agronegócio à preservação ambiental e à eqüidade social”. No mais, as publicações patrocinadas pelo governo do estado têm aparentemente o objetivo implícito de maquiar a dura realidade sócio-ambiental mato-grossense e conseguir álibis para continuar com a farra, amparadas por uma altíssima qualidade gráfica e muito blá-blá-blá bem construído. Lendo as publicações, fica-se com a impressão de que Mato Grosso é quase a materialização do paraíso na Terra.

Para passar uma imagem ambientalmente correta, os folhetos afirmam que o objetivo é chegar a um máximo de 40% do estado com atividades agropecuárias, “assegurando a preservação de 60% com reservas ecológicas, indígenas, legais, parques nacionais, Pantanal e regiões de Floresta Amazônica”.

Pois bem, o total utilizado para a agricultura e a pecuária já abrange 36,5% de Mato Grosso, pelos próprios dados oficiais apresentados. Contudo, segundo o IBGE, 54% do estado encontram-se dentro do bioma Amazônia, 39% no Cerrado e 7% no Pantanal. Por estas contas, e utilizando-se os valores definidos para Reserva Legal (a porcentagem da propriedade que o produtor deve manter intacta em sua propriedade, sendo de 80% na Floresta Amazônica e 35% no Cerrado), chega-se à conclusão de que somente 36,15% do estado poderiam ser legalmente desmatados. Logo, o desmatamento já passou do limite legal permitido.

Mas tem mais. Se considerarmos que parte do estado (19,5%) é composta por áreas indígenas ou de preservação, isto diminuiria ainda mais o percentual que poderia, em tese, ser desmatado. Então, de acordo com a legislação ambiental, Mato Grosso já está com um débito que precisaria ser recuperado para que, “na média”, possa dizer que está tudo em ordem. Isto sem esquecer que não incluí nas minhas contas as Áreas de Preservação Permanente (áreas que os proprietários devem manter intactas, independentemente da Reserva Legal, como margens de rios e lagos, encostas íngremes e topos de morros). Resultado: o débito do estado já é enorme e as perdas devem então ser recuperadas se quisermos agir dentro da legalidade.

E olhe que ainda deixei dois pontos incômodos de lado. Um é o abandono de terras após ficarem degradadas e improdutivas – prática comum na Amazônia e para a qual não há dados precisos. O outro é que, para diversos locais, a mata que restou está fragmentada, alterada pela ação de madeireiros ou sofreu com a caça, que elimina principalmente vertebrados de grande porte como os grandes macacos, as antas e os porcos-do-mato. São pálidos arremedos de um ecossistema intacto e que irremediavelmente tende a perder mais biodiversidade. Então, governador Blairo Maggi, pode ir decretando moratória total do desmatamento e iniciando um programa avançado de recuperação de áreas.

Porém, ao invés, o sr. Maggi e seus marqueteiros tentam manobras sutis. Por exemplo, uma falácia, presente em um dos folhetos e que tem impacto direto nas contas do que poderia ser legalmente desmatado, é a de que apenas 20% do estado estariam na área de Floresta Amazônica. O restante estaria no Cerrado ou matas de transição, além do Pantanal. Fazer esta distorção ser aceita pela opinião pública e torná-la oficial é, já há algum tempo, uma luta do governador Blairo Maggi, que quer desclassificar as matas de transição como parte da Floresta Amazônica. O que, diga-se, não é verdadeiro se adotarmos alguns critérios objetivos, como a presença de seringueiras (cuja distribuição há mais de um século é usada como sinônimo da abrangência da Hylea Amazonica) e outras espécies típicas do bioma. Mais do que uma questão de opinião, de definição ou semântica, isto significaria reduzir o tamanho da Reserva Legal, reivindicação histórica do setor ruralista amazônico. E os ataques vêm de várias frentes, como um projeto de lei encaminhado ano passado pelo senador recentemente falecido Jonas Pinheiro (DEM-MT), que propunha retirar toda a área do estado (e de quebra o Tocantins e o Maranhão) da definição de Amazônia Legal.

Mesmo ignorando todos os cálculos acima e se aceitássemos os tais 40% nos quais o governo de Mato Grosso quer chegar, não temos garantia nenhuma como (e se) a fiscalização e a repressão atuariam depois de atingido este limite. E há claros indícios de que, na verdade, não há vontade política para tanto. Além de recursos financeiros e humanos consideráveis, a fiscalização/repressão exigiria ainda contrariar diversos interesses que, na região amazônica, freqüentemente aliam-se e imiscuem-se no poder. Primeiro, dos ruralistas, grupo que o próprio governador, o maior produtor de soja do Brasil e possivelmente do mundo, lidera.

Segundo, dos madeireiros, com forte poder político nos municípios onde a atividade é mais intensa. Terceiro, dos políticos locais que, mesmo nos casos em que não são diretamente ligados às forças anteriores, não querem nem ouvir falar em contrariá-las. Se nem o presidente quer indispor-se com elas, que dirá o governador, seu grande representante.

Na verdade, um dos principais inimigos da preservação no Mato Grosso é o fato de que toda a política relacionada à produção agropecuária, não apenas dali, mas do próprio Estado brasileiro, vai no sentido oposto, incentivando o crescimento desenfreado da produção. Ou seja, seria necessário inverter uma lógica que vem dominando o cenário desde muito tempo, e que foi fortalecida nas últimas décadas.

Por tudo que foi analisado aqui, fica difícil acreditar, apesar da qualidade da edição dos materiais gráficos, na propaganda de um “desenvolvimento sustentável” no Mato Grosso. Uma piada triste que corre por aí é que, do jeito que as coisas estão (alta degradação, avanço da pecuária e agricultura, descontrole do desmatamento e tendências de piora em todos estes pontos), o nome do estado já poderia mudar para Mato Ralo.

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.

Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania.

[EcoDebate, 22/10/2008]

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