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Artigo

Cem horas sem proteção, artigo de Ana Echevenguá

[EcoDebate] O trágico caso das meninas de Santo André deixa bem clara a violência, a insegurança e a injustiça reinante no Brasil. Vimos que, na prática, não temos proteção legal, judicial ou policial.

Podem esquecer aquela estória de que “A casa é asilo inviolável do indivíduo ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro ou durante o dia, por determinação judicial” (CF, art. 5°, XI). Lindemberg pôde invadir a casa de Eloá e lá ficou por 100 horas; a polícia não o fez nem pelo flagrante delito nem para prestar socorro.

100 horas de exploração da mídia e dos políticos

Com certeza, essa história vai virar roteiro de filme. Assim como o seqüestro do ônibus no Rio de Janeiro, em 2000, que foi filmado e transmitido ao vivo por 4 horas que hoje está nas telas com o título ‘Ônibus 174’.

Pra mídia, o caso de Santo André foi um prato e tanto. A cobertura intensiva colocou a Record à frente da Globo, Band e Rede TV na manhã de 18/10/2008, segundo um tal de Ibope prévio (dados não consolidados mas próximos dos corretos).

Ávidos por espaço midiático, alguns políticos aproveitaram a oportunidade para mostrarem a cara: o governador de São Paulo foi ao hospital, o secretário de saúde do município anunciou a morte encefálica de Eloá e aproveitou pra forçar a barra sobre a doação dos órgãos desta: “Vamos aguardar a decisão da família sobre a doação dos órgãos. Numa eventual favorável da família, os órgãos serão retirados aqui mesmo. Caso não concordem, ela será mantida nos aparelhos até o processo seja resolvido num processo natural.”

Pra essa gente, tudo gira em torno números e vendas!

Sem proteção

Não dá pra entender: cerca de 60 homens do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais) e da PM estavam envolvidos nesta ação policial. Seu objetivo era resolver de forma pacífica, segundo o comandante do batalhão do Gate, tenente-coronel Flávio Jari Depieri.

Solução pacífica? As 100 horas angustiantes de cárcere privado, agressão física (uma delas foi espancada) e os disparos de arma de fogo resultaram em um homicídio consumado e uma tentativa de homicídio.

Claro que ninguém esperava este final infeliz. Mas não dá pra aceitar as explicações dos órgãos envolvidos. A polícia só sabe dizer que fez a coisa certa. O GATE já criou teses de defesa para justificar a negociação com o “tomador de refém”. Parece que este caso vai provocar a revisão doutrinária da Justiça do Brasil e do próprio GATE. Seus representantes usam os microfones para pedir que a sociedade não condene a polícia porque esta tomou a decisão mais humana. Para eles, a opção humana abraçada foi bastante razoável: tentaram negociar para resgatarem as meninas.

100 horas para decidir entre a justiça e as técnicas policiais. Imagino as dúvidas na discussão de suas estratégias: “O que vai acontecer se arrombarmos a porta? Seremos aclamados como heróis? Xingados? Presos porque escolhemos a opção errada?”

Sem ‘Direitos Humanos’

Todos viram que a ‘decisão mais humana’ garantiu somente os ‘Direitos Humanos’ do bandido. Ele esteve na mira dos atiradores de elite. Mas não foi dada autorização para atirar. Mais dúvidas: “E se matamos um rapaz de 22 anos sem antecedentes criminais, movido por forte emoção?”

Bandido? Calma, Ana. Não fala assim. Antes da condenação final, o Lindemberg é suspeito, é indiciado… A ele são garantidos os ‘Direitos Humanos’. Ele está em cela isolada no centro de detenção, por questões de segurança. Depois de um loooongo processo, ele pode ser condenado a uma pena de até 35 anos de prisão. Pena que obviamente vai ser abreviada.

Bandido? Lá vem a ‘Ampla Defesa’. Guido Palomba, psiquiatra forense há mais de 30 anos e presidente da Academia de Medicina de São Paulo, ao fazer uma análise do caso, já forneceu argumentos pro advogado de Lindemberg: “ela com 12. ele com 19. Ele é o dono literalmente dela. Ela com 15 (ele com 22) rompeu esta posse. Ele sentiu essa ruptura. O sentimento de perda invade o pensamento dele e ele faz o cárcere privado. Lá dentro, ele voltou a ter apenas o domínio físico dela. Mas certamente não o amor; não o domínio da parte mental. Ele ficou dominando o físico, sentindo que o mental não voltava mais. Agora, o que se tornou complicado foi a entrada da amiga. Piorou a situação porque deu forças pra ela e não ajudou o Lindemberg. Aí, ele foi perdendo o controle físico que tinha. Por isso, ele deu um tiro na cabeça pra acabar com o físico dela”.

Simples: um namorado não se conforma com o fora que levou da namorada. Ele mesmo disse: “queria ter uma conversa com ela e ela não aceitava nenhuma conversa”. Aí, cria as estratégias para viabilizar o bate-papo: invasão, força bruta, arma de fogo… o céu é o limite! E o passo-a-passo está em qualquer filme de aventura barato – principalmente nos enlatados americanos.

Ficou ou não ficou claro que, neste caso, o bandido teve mais direitos que as mocinhas? Cadê o respeito aos Direitos Humanos delas, por exemplo? E a ‘Ampla Defesa’? A ‘Inviolabilidade’ da casa da Eloá?

Neste ‘Indevido Processo Ilegal’, eivado de táticas policiais que priorizaram a ‘opção humana’, Lindemberg está vivo e preso em cela especial; Eloá foi condenada à pena de morte.

Sem saber o que fazer

Nessas 100 horas, todo mundo – na frente do prédio, na frente da tv e do rádio -, ficou esperando, esperando… Uma espera que só deu chances ao bandido.

Precisamos de mais provas de que a sociedade brasileira está realmente anestesiada, como corajosamente falou Paulo Freire?

Acho que hoje todos os pais estão sintonizados com os pais de Eloá e de Nayara; e com os pais de Lindemberg. Solidários com a sua dor e aterrorizados com a violência que ronda nossos filhos.

O que vamos fazer de ora em diante? Não sei. Mas temos que sair deste Coma Anestésico para exigir do Governo algo além das espetaculares exposições midiáticas para proferir formais pedidos de desculpas e apresentar justificativas pífias para as ilegalidades que pratica.

Ana Echevenguá, advogada ambientalista, coordenadora do programa Eco&Ação, presidente da ong Ambiental Acqua Bios, email: ana@ecoeacao.com.br

[EcoDebate, 20/10/2008]

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