As perdas não são apenas financeiras, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Nas últimas semanas, o noticiário fartou-se de anunciar perdas na casa dos trilhões de dólares com a crise financeira global, num mercado que se estimou em mais de US$ 500 trilhões. Nesse megacontexto, passou quase despercebido um estudo da Organização Mundial para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) e do Banco Mundial que situa em US$ 2 trilhões (equivalentes ao produto bruto anual da Itália ou mais de 1,5 PIB anual brasileiro) os prejuízos provocados pela sobrepesca e pelas aqüiculturas no planeta, decorrentes do esgotamento dos estoques pesqueiros e prejuízos para o meio ambiente e os recursos naturais.
A notícia provavelmente continuará debaixo do tapete por aqui, onde os altos escalões não costumam dar satisfações à sociedade quando algum estudo põe em xeque os postulados vigentes de desenvolvimento econômico acelerado e a qualquer preço. Não será diferente no caso da pesca, em que se planeja dobrar a atual produção até 2015 e se estão licitando 5,5 milhões de hectares para projetos de aqüiculturas em terra e no mar, embora os cientistas venham reiteradamente alertando que 80% das espécies economicamente exploradas no País “estão ameaçadas pela sobrepesca” (O Globo, 8/10), que é grave a situação na área da pesca da sardinha e que as aqüiculturas no mundo se estão inviabilizando rapidamente, porque consomem mais insumos do que produzem pescado, além de provocarem graves danos para o meio ambiente.
No âmbito específico das aqüiculturas, uma reunião do Comitê de Pesca da FAO, no início deste mês, no Chile, diagnosticou que elas estão “numa encruzilhada” – não só não conseguem atender à parcela crescente que lhes cabe na demanda mundial de pescado (era de 6% na década de 1970, já está em 51,6% dos 110,4 milhões de toneladas/ano atuais, ou 57,07 milhões de toneladas), como geram numerosos problemas ambientais e afastam cada vez mais do mercado os pequenos produtores. A pesca tradicional nos oceanos, diz o estudo, chegou a um limite, com 50% dos estoques pesqueiros esgotados e 25% explorados além da capacidade de reposição. Para atender à demanda projetada para 2030 – acréscimo de 28,8 milhões de toneladas/ano, decorrentes principalmente do aumento da população mundial para mais de 8 bilhões de pessoas e do crescimento do consumo per capita (hoje em 16,7 quilos/ano por pessoa) -, as aqüiculturas teriam de se expandir muito. Mas o seu crescimento está declinando: foi de 11,8% na década 1985-1995, caiu para 7,1% na década seguinte e para 6,1% em 2004. Ainda assim, as aqüiculturas têm uma competição crescente com a avicultura e a pecuária pelo uso de farinha e óleo de pescado, usados na alimentação de peixes. Isso faz parte do quadro de insustentabilidade, em que para produzir um quilo de pescado pode ser necessário o consumo de pelo menos o dobro de insumos alimentares – sem falar nos danos para a biodiversidade aquática, na perda de mangues, no despejo de matéria orgânica, no uso excessivo de antibióticos.
No Brasil – onde 25% da população “lida com o mar, vive perto ou dele depende para sobreviver” – , segundo o Instituto Oceanográfico da USP e outras instituições reunidas em relatório do Greenpeace, o quadro é ainda mais complicado. Seria indispensável implantar imediatamente “uma política nacional para os oceanos”, onde a área protegida pela legislação é insignificante: 0,4%. Entre outros problemas, as águas costeiras são atingidas por um volume brutal de esgotos urbanos, assim como por uma forte carga de nitrogênio e outros insumos agrícolas (no mundo, 100 milhões de toneladas anuais de nitrogênio chegam aos oceanos e são a principal causa da perda da biodiversidade marinha, diz o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). Nada a estranhar, quando se lembra o relatório da Agência Nacional de Águas segundo o qual todas as bacias hidrográficas brasileiras, da Bahia ao sul do País, estão em “situação crítica”, por causa de poluição, assoreamento, esgotos, lixo, etc.
Mais dramática que todas é a situação da sardinha, fonte de renda para pequenos pescadores e alimentação para estratos mais carentes da população. O Comitê de Gestão do Uso Sustentável de Sardinhas, em reunião no mês de setembro, discutiu proposta, de um grupo de cientistas, de moratória de pelo menos 20 anos para a pesca nessa área em águas brasileiras e redução do número de barcos habilitados a pescar, entre outras medidas. Foi mostrada ali a evolução da pesca da sardinha no País: 230 mil toneladas em 1973, apenas 32 mil em 1990, subida para 117 mil em 1997, queda para 17 mil em 1999. Hoje a produção está estimada entre 18 mil e 25 mil toneladas. Já houve 20 indústrias que enlatavam sardinhas no País, hoje são apenas três, em Santa Catarina.
“A pesca pode estar inviabilizada em 2050, segundo a Avaliação Ecossistêmica do Milênio”, enfatiza o relatório 21 do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável. Citando um encontro promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, o relatório assinala que no País a pesca extrativa industrial e artesanal responde por 75% do total pescado, enquanto à aqüicultura já cabem 25%. Mas os principais serviços marinhos já estão “ameaçados de extinção”. E “falta uma política de proteção, manejo e renovação dos estoques”.
Como entender, assim, que se pretenda duplicar o volume pescado e ampliar na escala anunciada as aqüiculturas, sem uma política adequada, respeitada tanto pelos segmentos econômicos como pela sociedade? Como entender que se continue subsidiando a ampliação da frota pesqueira, o uso de combustível e a própria atividade pesqueira, acompanhando o resto do mundo, onde os subsídios anuais chegam a US$ 15 bilhões? Aonde pretendemos chegar? A um panorama semelhante ao da China, onde 50% dos ecossistemas costeiros já desapareceram sob aterros (China Daily, 9/6/8)?
Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Artigo originalmente publicado no O Estado de S.Paulo, 17/10/2008
[EcoDebate, 20/10/2008]
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