bombas não detonadas: O legado mortífero da Segunda Guerra Mundial
A Alemanha continua cheia de bombas não detonadas que estão ficando cada vez mais instáveis com a idade, adverte um dos mais experientes desativadores de bombas do país. Ele acaba de se aposentar, após uma carreira perigosa passada na busca desse legado mortífero da Segunda Guerra Mundial. Por David Crossland, Em Wünsdorf (Alemanha), para o Der Spiegel.
Hans-Jürgen Weise, um dos mais experientes especialistas em desativação de bombas da Alemanha, jamais esquecerá o momento mais crítico pelo qual passou.
Foi em 1997, na cidade de Oranienburg, no leste do país. Ele encontrava-se agachado em um buraco no solo, tentando desativar uma bomba aérea de 250 quilos, lançada pelos norte-americanos na Segunda Guerra Mundial, e encontrada por trabalhadores da construção civil. O detonador estava tão retorcido que ele não conseguia desparafusá-lo para evitar o perigo de uma explosão.
“Eu instalei uma prensa automática para remover à distância o detonador da bomba. Estávamos a uma distância de 150 metros e podíamos ver o que se passava por meio de um monitor de televisão”, disse a “Spiegel Online” Weise, um homem de 65 anos, que está em boa forma física e tem uma risada fácil. “O detonador cedeu alguns centímetros, mas depois disso ficou preso. Assim, decidimos detonar a bomba. Enquanto faziam-se os preparativos, eu voltei ao buraco para retirar a prensa da bomba, já que o equipamento custa 20 mil. Foi então que percebi que o detonador tinha-se soltado um pouco. Comecei a manuseá-lo e acabei retirando-o com a mão. Você deveria ter visto como o meu braço ficou todo arrepiado! Enquanto desenroscava o detonador eu não pensava em mais nada. Eu poderia ter simplesmente esperado que a bomba fosse detonada. Mas acredito que essa é a ambição do desativador de bombas. Na época, ninguém me disse nada. Mas, hoje em dia, ao recordarem o fato, eles dizem que eu era louco. E eles têm razão”.
Todos os anos, uma colheita letal
Weise aposentou-se ao final de setembro, depois de passar quase quatro décadas retirando munições de uma das regiões mais repletas de bombas na Europa – o Estado de Brandenburgo, em torno de Berlim. Somente em Brandenburgo, todos os anos os construtores, esquadrões de localização de bombas e crianças brincando encontram em média 631 toneladas de munições antigas provenientes das duas guerras mundiais e dos treinamentos do exército soviético na Alemanha Oriental.
Em toda a Alemanha, mais de 2.000 toneladas de bombas aéreas norte-americanas e britânicas e todos os tipos de munições, como granadas de mão, minas anti-tanques e projéteis explosivos de artilharia russa são recuperadas todos os anos. Raramente há uma semana sequer na qual a rua de uma cidade ou estrada não seja isolada, ou mesmo evacuada, na Alemanha devido à descoberta de explosivos não detonados.
A Alemanha nazista foi a primeira a lançar bombardeios aéreos maciços contra alvos na Segunda Guerra Mundial, com ataques devastadores em Varsóvia e Londres. Mas a Alemanha colheu o que semeou, já que os aliados lançaram uma campanha de bombardeios aéreos de cinco anos, durante a qual eles despejaram 1,9 milhão de toneladas de bombas com o objetivo de destruir a indústria alemã e esmagar a moral da população. Os bombardeios mataram cerca de 500 mil pessoas.
Segundo a maior parte das estimativas, a quantidade de bombas não detonadas fica entre 5% e 15% – ou algo entre 95 mil e 285 mil toneladas. Quando a Alemanha reconstruiu apressadamente as suas cidades após a guerra, as autoridades não tiveram tempo ou recursos para localizar e neutralizar uma grande parte desse material.
Como resultado, desde então um legado mortífero jaz adormecido sob as ruas da Alemanha.
Chamadas diárias
“Nós recebíamos duas ou três chamadas diárias avisando que um projétil explosivo ou bomba foi encontrado em um canteiro de construção ou outros locais”, diz Weise, que foi chefe de operações de desativação de bombas na região oeste de Brandenburgo. Segundo um porta-voz do governo regional, Weise e sua equipe de cerca de 70 colegas desativaram ou retiraram 10.733 toneladas de munições de 1991 a 2007, a um custo de 259 milhões de euros.
Munições desenterradas que podem ser transportadas com segurança são levadas até um campo de detonação no qual elas são explodidas ou têm os explosivos removidos. Mas muitas bombas, e todas as bombas dotadas de detonadores de ação retardada, são muito perigosas para serem removidas e precisam ser desativadas ou detonadas no local em que são encontradas.
Weise afirma que serão necessários mais 20 anos até que Brandenburgo fique livre destas bombas. Ele diz que o Estado está especialmente repleto de bombas norte-americanas de efeito retardado que tornaram-se tão instáveis que em breve será impossível desarmá-las com segurança. As bombas estão a ponto de explodir porque os seus detonadores químicos foram desgastados por vapores de acetona enquanto elas jaziam enterradas por mais de 60 anos.
Bombas dormentes prestes a explodir
“Nos últimos anos nós descobrimos que os detonadores que retiramos dessas bombas estão cada vez mais quebradiços”, afirma Weise. “Recentemente, três detonadores extraídos desintegraram-se com um chiado quando eram transportados para o campo de desativação. Bastou uma pouco de vibração para que isso acontecesse. Um dia essas bombas estarão tão sensíveis que ninguém será capaz de manuseá-las. Talvez tenhamos que deixar de desativá-las já no ano que vem”.
Nos últimos anos muita gente foi ferida por explosões espontâneas de bombas em Oranienburg, e os especialistas advertem que, com a passagem do tempo, tais detonações provavelmente tornar-se-ão mais freqüentes.
Calcula-se que 20 mil bombas de ação retardada foram jogadas sobre Oranienburg durante a guerra, porque havia na região uma fábrica de aviões Heinkel, uma indústria farmacêutica e uma instalação que os aliados suspeitavam que fosse utilizada para pesquisas sobre a bomba atômica. As bombas foram projetadas para explodir de duas a 146 horas após atingirem o solo, a fim de atrapalhar o trabalho de remoção e provocar o caos.
Mas muitas delas deixaram de explodir porque Oranienburg possui um solo macio, debaixo do qual há uma camada dura de cascalho. Isso significa que as bombas penetravam o solo, ricocheteavam no cascalho e acabavam enterradas com as pontas viradas para cima. Nesta posição a gravidade impede o funcionamento dos detonadores. Eles contêm um frasco de acetona que rompe-se durante o impacto. A idéia é que a acetona escorra para baixo e dissolva um disco de celulóide que trava o pino disparador.
Mas quando a bomba está apontada para cima, a acetona escorre para a direção contrária à do disco de celulóide, deixando apenas vapores para destruir o disco.
Durante a sua carreira, Weise desativou um total de 394 bombas de grande dimensão, incluindo 47 de ação retardada, que costumam ser as mais perigosas.
Silêncio sinistro
A última missão de Weise foi em agosto, no centro da cidade de Potsdam, a capital regional de Brandenburgo, que ficou paralisada depois que trabalhadores encontraram em um canteiro de obras uma bomba britânica de 250 quilogramas que foi lançada durante a Segunda Guerra Mundial. Cerca de 3.000 pessoas foram evacuadas da área, e a estação de trem foi fechada enquanto Weise desenroscava cuidadosamente o detonador da bomba com uma chave inglesa.
“Quando você está trabalhando sozinho em um buraco como aquele, no meio de uma cidade, é estranho como de repente tudo fica silencioso”, diz Weise. “Às vezes até os passarinhos param de cantar. É sempre nestes momento que a pessoa fica meio nervosa. Depois da bomba de Potsdam em agosto, pensei comigo mesmo: ‘Você teve sorte tantas vezes. A bomba de hoje foi a última. Chegou a hora de parar'”.
Weise admite que deve ter tido muita sorte na sua carreira, que teve início em 1970, quando ele começou a ajudar com o transporte e a localização de munições naquela que era a comunista Alemanha Oriental. Ele obteve a sua licença profissional para desativar bombas em 1983.
Até o momento da aposentadoria a parede do seu escritório, na cidade de Wünsdorf, ao sul de Berlim, ficava coberta de fotos dele e de membros da sua equipe sorrindo com alívio ao lado de bombas desativadas penduradas em ganchos ou colocadas no chão, como se fossem troféus de um perigoso safári.
Weise conta que logo perdeu o medo das bombas, mas que nunca deixou de respeitá-las. “Depois que fui aprovado no meu teste, tive que desativar a minha primeira bomba por conta própria, e confesso que fiquei um pouco nervoso”, recorda ele. “De repente não havia mais ninguém atrás de mim dizendo-me o que eu deveria fazer. Eu estava totalmente sozinho. Quando você ajoelha-se e aplica pressão com a chave inglesa, não há como não pensar: ‘Será que estou fazendo a coisa certa?’. Mas logo eu me lembrava exatamente do que havia aprendido e depois disso não sentia mais medo”.
Weise diz que as bombas britânicas com detonadores mecânicos convencionais são relativamente fáceis de desativar com uma chave inglesa porque os detonadores são feitos de latão e não enferrujam.
Morte súbita
“Sempre afirmei que não é ruim sentir um pouco de medo, porque isto faz com que a gente tenha cuidado. Mas o medo pode também levar a gente a fazer coisas descontroladas. Eu tenho respeito por todos os tipos de munições porque vi o que pode acontecer”, afirma Weise. “Vi dois homens morrerem durante uma detonação ocorrida quando eles separavam munições. Depois de ver algo desse tipo a gente demora semanas até ser capaz de chegar novamente perto de uma bomba. É algo que nos torna cuidadosos”.
Desde de 1950 três trabalhadores morreram ao manusear munições no campo de detonação de Brandenburgo. Mas nenhum desativador morreu.
As buscas por bombas intensificaram-se no início da década de 1990, depois que os britânicos e os norte-americanos entregaram aos alemães fotos de reconhecimento tiradas após os bombardeios. Buracos no chão em meio a crateras revelam as prováveis localizações de bombas não detonadas, às vezes com uma precisão superior a dois metros. Mas as fotos não são capazes de revelar todas as bombas. Equipes de desativação de bombas passaram a década de 1990 fazendo buscas em locais de alta prioridade, como escolas, hospitais, áreas residenciais e ruas movimentadas.
Ao contrário dos detonadores, o TNT das bombas não sofre degradação debaixo da terra. Em 2006, um trabalhador morreu quando o seu trator atingiu uma bomba em uma estrada no sul da Alemanha. Testemunhas contaram que a explosão lançou o trator para o ar como se fosse um brinquedo.
As buscas estão diminuindo devido à falta de dinheiro
Além de bombas aéreas, a equipe de Weise removeu granadas, minas, projéteis de artilharia e armas de todos os tipos. Brandenburgo está cheio deste material porque foi neste Estado que divisões alemãs inteiras foram aniquiladas em 1945, em uma resistência final ao avanço das tropas soviéticas sobre Berlim.
O Estado limpou 12.541 hectares de terras infestadas de munições, mas ainda resta uma área de 391 mil hectares repleta desses materiais. Segundo Weise, as buscas diminuíram devido à falta de dinheiro, e atualmente a maioria das bombas é encontrada por acaso.
“Se a busca fosse sistemática e intensiva, não demoraríamos tanto tempo para encontrar as bombas, mas o problema é que não há verbas para isso. Os políticos acham que, se as bombas estão debaixo da terra há tanto tempo, se as deixarmos lá elas não machucarão ninguém. Mas eles começam a prestar atenção quando algo de ruim acontece”, afirma Weise. “O governo não está mais contratando novos técnicos e os experientes estão se aposentando. A nossa equipe de desativação de bombas carece de pessoal, especialmente durante os períodos de férias”. Ele diz que não encorajará nenhum dos três netos a seguir os seus passos. “Eles podem não ter tanta sorte quanto o avô”.
Weise, que no ano passado recebeu a Cruz Federal do Mérito Alemão, está dividido quanto à aposentadoria. “Não sei se terei saudade da emoção. Mas, de repente, todo mundo passa correndo por mim sem me dar atenção quando algo está acontecendo. Isto faz com que eu sinta que não sou mais necessário. Tirar as fotos da parede do escritório foi difícil”.
Weise, que nasceu durante um bombardeio da Segunda Guerra Mundial, quando a sua mãe grávida teve que ser levada em uma maca para um abrigo, diz que não nutre ressentimentos contra as nações que jogaram bombas sobre a Alemanha anos atrás.
“Aquilo era a guerra, e tudo o que estamos fazendo é remover o legado do conflito. Mas eu não entendo por que, depois de todo o sofrimento causado por aquela guerra, outras guerras totalmente sem sentido foram novamente iniciadas várias vezes. As pessoas simplesmente não aprendem”.
UNEXPLODED BOMBS IN GERMANY
The Lethal Legacy of World War II
By David Crossland in Wünsdorf, Germany
[EcoDebate, 17/10/2008]
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