Estudo da Unicamp encontrou altos índices de colesterol e triglicérides nas crianças e adolescentes
Índices obtidos em estudo desenvolvido ao longo de oito anos surpreendem especialistas. A professora Eliana Cotta de Faria atende paciente no Ambulatório de Dislipidemias da FCM: levantamento inédito (Fotos Antoninho Perri )
Pesquisadores do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp analisaram durante oito anos os resultados de colesterol e de triglicérides no sangue de aproximadamente 2 mil crianças e adolescentes entre 2 e 19 anos atendidos no Ambulatório de Dislipidemias e em ambulatórios especializados do HC, principalmente na área de Pediatria. Este estudo retrospectivo de análise clínico-laboratorial foi conduzido pela professora Eliana Cotta de Faria, do Departamento de Patologia Clínica da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, com a colaboração do patologista clínico Fábio Bernardi Dalpino e da pediatra Raquel Takata.
O estudo encontrou altos índices de colesterol e triglicérides nas crianças e adolescentes. Os dados surpreenderam até mesmo os pesquisadores. Inéditos nessa faixa etária da população brasileira, eles compõem o trabalho “Lípides e lipoproteínas séricos em crianças e adolescentes ambulatoriais de um hospital universitário público”, publicado recentemente na Revista Paulista de Pediatria.
De acordo com a literatura mundial e brasileira especializadas, o colesterol em crianças e adolescentes deve ser inferior à 170mg/dL e os triglicérides menores que 100 mg/dL. Para as análises estatísticas do perfil lipídico dessa faixa etária, os pesquisadores da Unicamp adotaram valores de corte internacionais, nacionais e os recomendados pelo médico e pesquisador norte-americano Kwiterovich, estudioso das dislipidemias na infância. Os resultados encontrados pelos pesquisadores do
Ambulatório de Dislipidemias do HC nas medidas analisadas de lipoproteínas do LDL-colesterol (considerado “ruim”) do HDL-colesterol (tido como “bom”) e dos triglicérides foram muito alterados, tanto em meninas quanto em meninos.
Das crianças entre 2 e 9 anos, 44% apresentaram valores alterados para o colesterol total, 36% para o LDL-colesterol e 56% para os triglicérides. Entre os adolescentes de 10 e 19 anos, 44% apresentaram alterações para o colesterol total, 36% para o LDL-colesterol e 50% para os triglicérides. A pesquisa também indicou que houve uma redução de HDL-colesterol em 44% das crianças e em 49% dos adolescentes.
Outros dados analisados neste estudo indicaram que aproximadamente 34% das crianças e adolescentes tinham hipercolesterolemia combinada com hipertrigliceridemia; 15% das crianças e 20% dos adolescentes tinham hipercolesterolemia combinada com hipoalfalipoproteinemia (diminuição do HDL-colesterol); e, na média, 30% tinham hipertrigliceridemia combinada com hipoalfalipoproteinemia.
Segundo a pesquisadora, no Brasil, até o momento, não há estudos com uma grande amostra de crianças e adolescentes ambulatoriais. Houve interesse em explorar os indivíduos atendidos no Hospital de Clínicas da Unicamp por ele abranger uma região com cerca de cinco milhões de pessoas. “Os dados encontrados, portanto, refletem a situação da população desta região do país”, explicou a médica e pesquisadora Eliana Cotta de Faria.
“Os resultados obtidos direcionam a ação para uma abordagem também preventiva. Na medida em que retratamos a realidade das crianças e adolescentes atendidos do HC, nós devemos programar medidas de intervenção nessas faixas etárias para o diagnóstico precoce e correto das suas causas e seu respectivo tratamento. Assim, podemos retardar a progressão da aterosclerose e de suas complicações, principalmente cardiovasculares, além de evitarmos, também, a pancreatite aguda, causada pelo aumento de triglicérides”, explicou Eliana.
De acordo com a docente, algumas dislipidemias têm causas genéticas. Entretanto, a maioria delas são causadas por concentrações alteradas de lipídios e lipoproteínas, partículas que carregam as gorduras circulantes no sangue. As dislipidemias se caracterizam pelo aumento do colesterol e dos triglicérides em algumas dessas lipoproteínas. As lipoproteínas mais conhecidas são a VLDL, LDL e HDL. A VLDL é uma lipoproteína responsável por transportar os triglicérides. A LDL é a principal lipoproteína responsável por transportador o colesterol para os tecidos. Ela é importante para o organismo por ser precursora de hormônios, vitaminas e sais biliares. O colesterol da LDL, na forma natural de sua molécula, não é prejudicial à saúde. Porém, se ele for oxidado pelo organismo ou agentes externos, como as frituras, pode se depositar na parede das artérias, favorecendo o aparecimento de doenças cardiovasculares. Essa oxidação, ou mudança química da molécula, pode ser induzida também pelo tabagismo, estresse, infecções e pelo consumo de alimentos.
A HDL é a lipoproteína “lixeira”, que retira todo o excesso de colesterol das membranas das células, levando-o ao fígado para excreção. O colesterol é excretado pela bile. Quando a LDL está em excesso, oxida-se e é captada de maneira não controlada por outros receptores não regulados pelo colesterol, acumulando-se progressivamente nas células. O desequilíbrio nesse mecanismo é um dos principais fatores de risco para a aterosclerose.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define aterosclerose como o espessamento das artérias pelo acúmulo de gorduras, carboidratos complexos, componentes do sangue, células e material intercelular.
De acordo com a pesquisadora, a aterosclerose começa na vida intra-uterina e se manifesta, clinicamente, por meio de angina, infarto agudo do miocárdio, derrames cerebrais e aneurismas na vida adulta, por volta dos 45 anos nos homens e 55 anos nas mulheres.
“Os fatores de risco para a aterosclerose são inúmeros. As dislipidemias são fatores de importância primordial e, quanto mais cedo se corrigir esta alteração, menor é a progressão da doença”, explicou Eliana.
Nas crianças, existem várias causas de dislipidemias. Do ponto de vista das doenças causadoras, as doenças renais, as doenças de fígado, as endócrinas como a obesidade, o diabete mellitus e o hipotireoidismo, além de várias de origem genética, são as principais.
Do ponto de vista do estilo de vida contemporâneo, o estresse emocional, o sedentarismo e a alimentação inadequada são fatores que contribuem para o aumento da prevalência da obesidade e sobrepeso, que ocasionam doenças relacionadas às dislipidemias.
Na opinião de Eliana, o medo da violência, o excesso de jogos de computador, as dietas de fast-food e as dietas ricas em gordura saturada, açúcar e frituras são altamente perniciosas para os lípides sanguíneos e parecerem contribuir com essa realidade. “Se a família tem um padrão pouco saudável de alimentação, as crianças irão seguir este modelo”, explica Eliana.
No caso dos adolescentes, o tabagismo, o uso de anticoncepcionais e a gravidez são outros fatores que, associados aos anteriores, contribuem para o desenvolvimento de dislipidemias.
Um caso raro no mundo
A equipe multidisciplinar que compõe o Ambulatório de Dislipidemia do HC atende casos graves da doença. Um dos casos atendidos e acompanhados até hoje é o de um menino com 12 anos. Ele nasceu com uma deficiência enzimática da lipoproteína lipase (LPL) que é uma enzima chave no catabolismo das lipoproteínas. Ela atua, principalmente, no tecido adiposo e muscular. A incidência da doença é estimada em um para cada milhão de recém-nascidos. O caso da criança é raro no mundo. Ele é o 16º paciente pesquisado.
Aos 6 meses de idade, o garoto apresentava triglicerídeos no sangue iguais a 726mg/dL. O fígado e o baço eram volumosos. O diagnóstico médico inicial foi de virose. Até que, numa crise de dor abdominal, o menino foi encaminhado para o HC da Unicamp.
O diagnóstico e tratamento dietético foram feitos no Ambulatório de Dislipidemias. Ele foi acompanhado, também, na Gastropediatria e na Cardiologia.
“Hoje, a doença é controlada, desde que ele siga as recomendações dietéticas. Caso contrário, ele pode vir a apresentar pancreatite aguda ou epididimite, tais como complicações do aumento de triglicérides”, disse Roseli, a mãe do paciente.
Apesar de várias pesquisas mundiais, principalmente no Canadá, não há medicamento para esta dislipidemia. O único tratamento é dietético.
Para ajudar na dieta de filho, de um ano e meio para cá, Roseli começou a cursar uma faculdade de Nutrição. Ela mudou o cardápio retirando a gordura, os carboidratos simples e o açúcar. No lugar, introduziu arroz integral e alimentos ricos em fibras. “O carboidrato também faz subir os triglicérides”, disse Roseli, com voz de especialista.
Para quem chegou até 6.000mg/dL de triglicerídeos no sangue, o menino tem uma vida normal. Ele é escoteiro, medalha de bronze no Campeonato Paulista de judô, excelente aluno e sabe o que pode e o que não pode comer. “Quando ele ultrapassa a cota de gordura e carboidratos ingeridos no dia, é crise na certa”, comentou a mãe.
Numa dessas crises, a equipe do Ambulatório de Dislipidemias do HC da Unicamp fez com o paciente um teste terapêutico em regime de internação hospitalar de curta duração para controle absoluto da sua dieta. Os pesquisadores ofereceram clara de ovo como fonte de proteínas da dieta. Os triglicérides de V. reduziram-se para 300mg/dL.
“As pancreatites e as epididimites de repetição do garoto são de origem genética. Ele tem que fazer um rigoroso controle alimentar continuado até o surgimento de um tratamento que supra essa grave deficiência enzimática”, comentou Eliana, que acaba de diagnosticar dois novos casos menos graves de LPL no ambulatório.
O grupo de pesquisadores do Ambulatório de Dislipidemias do HC da Unicamp foi o primeiro a descrever, em crianças, o aparecimento da epididimite aguda na deficiência de LPL. Este trabalho foi, recentemente, submetido à publicação no Journal of Clinical Lipidology.
Serviço do HC prescreve dieta e elabora cardápios
As crianças e adolescentes atendidos no ambulatório de Dislipidemias do HC vêm, geralmente, encaminhados dos postos de saúde de Campinas, de centros de saúde de cidades vizinhas e do próprio HC, já com suspeita ou o diagnóstico de dislipidemias. Após a realização de uma série de exames, a equipe do ambulatório começa o tratamento. O serviço de nutrição do HC prescreve uma dieta individualizada e elabora cardápios para as crianças e adolescentes. Essa dieta é baseada em frutas, legumes, alimentos ricos em fibras, restrita em gordura de origem animal, colesterol e gordura saturada de carne vermelha e leite gordo. As crianças, em geral, usam leite de soja. As mães aprendem, por exemplo, a preparar bolos e biscoitos a base de soja. Em alguns casos de maior restrição, a suplementação vitamínica é oferecida.
É recomendado, no mínimo, 30 minutos de atividade física diária ou pelo menos três vezes por semana. Se o paciente for tabagista, é solicitada a interrupção do fumo. Não são preconizadas drogas redutoras dos lipídeos (hipolipemiantes) para as crianças, exceto em casos muito graves. Mesmo em adolescentes, somente são utilizadas medicações numa situação em que não há nenhuma resposta ao tratamento de mudanças de estilo de vida.
“Caminhando nessa linha de investigação, nós delineamos o perfil de risco para as crianças e adolescentes antes do tratamento. Quando incluímos o exercício físico e a dieta, nós estamos acrescentando fatores de risco negativo ao perfil de lípides destes pacientes. Essa é uma população que merece muito carinho e um muito cuidado para a prevenção da doença”, explicou Eliana.
Após oito anos atendendo crianças e adolescentes, os pesquisadores notaram que as famílias, ao receberem o diagnóstico da doença, têm reações diversas. Se a família é muito humilde, ela se conforma mais. Se a família tem expectativas maiores para a criança, o impacto é muito maior. Não são raras as famílias cujos membros entram em pânico.
“Por mais que se explique à família que são situações tratáveis, raramente letais, que com cuidados se controlam ou dependendo da causa se curam, o problema maior que encontramos é o da família não conseguir fazer o tratamento: umas por dificuldades socioeconômicas, outras por descaso ou problemas pessoais. Colocar uma criança e um adolescente em dieta não é fácil. Para dar certo, a família inteira tem que se comprometer”, explicou Eliana.
Matéria de Edimilson Montalti, no Jornal da Unicamp, ANO XXIII – Nº 413
[EcoDebate, 17/10/2008]
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