Carta ao Betinho Souza e ao presidente Lula, artigo Apolo Heringer Lisboa
Aqueles que sempre viveram com fome, tendem a não reagir; adaptam-se à pobreza total, inclusive com direito a religião apropriada, que valoriza o jejum e os faquires. Mas, se não é o caso de perder a cabeça com a própria fome, muito menos se justifica perdê-la com a fome alheia, menos dolorosa. A atual campanha contra a fome não é comandada pelos que têm fome; mas pelos que estão de barriga cheia, e se comoveram com a fome alheia. A campanha, na verdade, não é propriamente contra a fome, mas contra a falta de alimentos e outras necessidades do povo. Ter fome é sinal de saúde e argumento para alta hospitalar. E fome não se reduz a comida.
Façamos um retrospecto histórico, pois outros já se preocuparam com a fome alheia. A Sociedade São Vicente de Paula se constituiu fazendo campanhas para mitigar a fome do próximo. Foi fundada em Paris a 23 de abril de 1833, por Antônio Frederico Ozanam, estudante na Sorbonne, reagindo a críticas de estudantes não-católicos que os criticavam por não fazerem caridade.
Em 1 de janeiro de 1950, no Rio de Janeiro, foi fundada a Legião da Boa Vontade por Alziro Zarur. A LBV vinha distribuindo sopa aos pobres desde setembro de 1962. Com a morte de Alziro a LBV passou às mãos de Paiva Netto e se tornou ré de práticas suspeitas, ou de comprovada falta de ética, tendo perdido completamente a credibilidade.
Já o Exército da Salvação tem por lema Sopa, Sabão e Salvação. Foi fundado por dissidentes anglicanos, liderados por William Booth, voltados para os doentes pobres, famílias de mineiros, prostitutas, menores abandonados da Inglaterra, atuando desde o século passado para salvar gente que não tomava banho, quase não comia e estaria a caminho do Inferno.
Não só eles, mas inúmeras ordens religiosas, como as Irmãzinhas de Foucauld, os Ignorantinhos de São João de Deus, a Congregação de Madre Tereza de Calcutá, Obras da Irmã Dulce no Hospital Santo Antônio de Salvador, e outros centenas de grupos estão, há dezenas de anos por este Brasil e mundo, tentando praticar os Atos de Misericórdia pregados em Mateus 25:35,36.
Betinho, que esteve exilado, devia nesse tempo criticar esta linha, chamada de assistencialista. Naquela conjuntura sopões, natais dos pobres, cestas básicas e outras práticas diretas de socorro, eram ridicularizadas pela esquerda revolucionária. A melhor proposta concretizada nesta época foi a dos “restaurantes populares”, ou “bandejões”, subvencionados pelo poder público para fornecer alimentação balanceada a baixo custo. Sucesso absoluto, proposta notável. A pessoa paga pouco mas paga. Isto é importante. Talvez seja o principal caminho para resolver o problema da fome urbana. Estes restaurantes tornaram-se centro de aglutinação política das massas urbanas, saciando a fome de participação. Foram demolidos pelos militares pela ameaça que significariam à segurança nacional. Agora estes restaurantes populares começam a ressurgir, e nem todos precisam ser governamentais. Podem se espalhar com várias modalidades de participação privada, governo e sociedade civil organizada. É o melhor caminho nas áreas urbanas.
Ouçamos o que dizem outros povos e pessoas que já viveram conjunturas análogas. Os chineses aconselham que é melhor dar o anzol, e ensinar a pescar, que dar o peixe. Não se negam a ajudar, mas vinculam a ajuda a uma pedagogia: a do trabalho, que organiza a vida da pessoa. Isto é sabedoria. Afastam-se de qualquer subordinação ao pieguismo e ao discurso vazio. Já nosso compositor sertanejo e sanfoneiro Luiz Gonzaga, calejado na “indústria da seca”, cantava: “dar esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
O vínculo com o trabalho é fundamental para organizar a sociedade e resolver seus problemas. Devemos, enquanto solução de emergência, caminhar por quatro caminhos: a) fortalecer o sistema dos restaurantes populares, nos aglomerados urbanos que têm grande parte da população economicamente ativa do país; b) podemos saciar a fome das crianças, priorizando a distribuição nas creches e escolas, por sua organização e referenciamento à educação e envolvendo as mães; c) idosos e doentes que necessitarem, buscariam alimentos e outros apoios assistenciais nos abrigos, lares, postos médicos; d) desempregados, vinculá-los a programas assistenciais em troca de prestação de serviço. Nestes casos parece que o afeto é a questão maior e políticas de inclusão sócio-econômica.
Seria preferível que os cidadãos sadios recebessem ajuda em troca da prestação de algum trabalho voltado às necessidades públicas. Sem este vínculo e sem esta organização da ajuda, há o risco de uma trapalhada e de uma deseducação generalizada. Não contribui para começar a resolver os problemas. No Nordeste, nas épocas mais terríveis da seca, funcionam as “frentes de trabalho”, como respostas emergenciais. Tem alguns aspectos interessantes. Os inscritos recebem meio salário mínimo, prestando algum tipo de serviço que deveria ser do interesse público. Estas atividades não geram vínculos trabalhistas, por serem declaradas de emergência pelo poder público. Cessa aí o exemplo das “frentes” nordestinas, componente da “indústria da seca”, muitas vezes a serviço de interesses privados e eleitorais. A aposentadoria no campo foi uma ampla distribuição de renda, que não humilha a pessoa, que faz jus ao que recebe.
A fome precisa ser enfrentada em diversos campos. É uma manifestação engendrada por muitas causas. Não se pode deixar de avaliar, por exemplo, do ponto de vista sociológico, antropológico e psicológico, as seqüelas deixadas em nossa organização social pela violência colonial e prática do trabalho escravo. Aliás, a maior causa da fome no Brasil, está também associada à maneira como se deu a assinatura da Lei Áurea: os escravos, mãos abanando, foram lançados nas estradas. A República, proclamada com respaldo dos escravocratas ressentidos com Dom Pedro II, garantiu caráter conservador à República. Nem, ao menos, garantiram escolas para a nova geração de negros. O resultado está em nosso apartheid social. A fome e a violência atuais têm a ver com esta e outras histórias.
Não se pode deixar de falar no desperdício imenso no campo, nas colheitas realizadas e deixadas de se realizar; há desperdício na comercialização privada e nos armazenamentos oficiais; na preparação da alimentação; no consumo. Nossa sociedade precisa enfrentá-lo racionalizando suas operações produtivas, distributivas e de consumo. Além de priorizar a alimentação humana. Hoje a soja e o etanol priorizam, nas melhores terras e maiores investimentos, a alimentação do porco estrangeiro e dos veículos. E, sobretudo, investindo fundo em educação e pesquisa. Há muito desperdício associado à ignorância das pessoas e administradores. Na Antigüidade faziam analogia entre saciar a fome e saciar o espírito com conhecimentos (Deuteronômio 8:3; João 6:35).
A questão da fome complica-se porque ninguém quer abrir mão de seus próprios privilégios. Todos querem fazer as mudanças desde que venham no lombo dos outros. Veja-se, por exemplo, que membros do Parlamento, do Executivo, e do Judiciário, oficialmente apoiando a Campanha contra a Fome e outros, com declarações e esmolas, estão auferindo salários que vão de 50 a mais de 200 salários mínimos, auto-outorgados. Esta corrupção institucionalizada e a informal, quebram pela base, a relação de solidariedade e de confiança que deveria haver entre os cidadãos de uma nação republicana e democrática. Corrigindo o setor estatal, o setor privado pode ser enquadrado.
Na Antigüidade, e até o início deste século, a falta de condições para saciar a fome do povo até podia ser compreendida. Malthus, no século passado, chegou a fazer teoria de grande impacto: a produção de alimentos cresceria em progressão aritmética, enquanto o crescimento da população em progressão geométrica. Hoje, todavia, as conquistas científicas e tecnológicas já possibilitam a produção de alimentos em progressão geométrica, enquanto o progresso social fez baixar o crescimento populacional a índices aritméticos. Isto abalou definitivamente a teoria malthusiana. Embora o planeta Terra esteja com uma super – população desnecessária e muito prejudicial. Manter ou acabar com a fome, a pobreza e seus subprodutos? Tornou-se questão de opção política e sabedoria. A ciência e a tecnologia, frutos da pesquisa, permitem fazer esta afirmação. Com a palavra a política.
Fonte:
Resumo de artigo escrito em setembro de 1993, no início da Campanha Contra a Fome, liderada pelo Betinho, e que em 2003, com o Programa Fome Zero, do governo Lula, foi republicado e entregue ao governo em Itinga, Vale do Jequitinhonha, onde levei o atual presidente em 1981.
Apolo Heringer Lisboa* é professor da Faculdade de Medicina da UFMG, escritor e ambientalista coordenador do Projeto Manuelzão, MG. Foi fundador do PT, ex-dirigente da UNE e exilado. Foi representante da Sociedade Civil na Diretoria provisória do Comitê da Bacia do São Francisco -. email: apolohl@medicina.ufmg.br
Artigo enviado pelo Autor e publicado pelo EcoDebate em 15/10/2008.
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