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Artigo

A voracidade dos discursos contra os povos indígenas, artigo de Iara Tatiana Bonin

Existe hoje uma grande articulação de forças ligadas a fazendeiros e latifundiários que se esforça, e muito, para inviabilizar a demarcação das terras indígenas em diferentes estados brasileiros. Neste sentido, são abundantes as manifestações de seus porta-vozes, de seus bem pagos assessores, apoiados por jornais de grande ou de pequena circulação, proferindo discursos vorazes em defesa dos interesses econômicos de uns poucos, em detrimento dos direitos constitucionais de muitos outros.

Em Mato Grosso do Sul, uma região em que políticos, mídia e os que dominam a economia são declaradamente antiindígenas, o combate à demarcação das terras do povo Guarani-Kaiowá tem sido assumido como a nova cruzada. Periodicamente circulam artigos e/ou editoriais, das mais variadas procedências e com interesses diversos, proclamando os perigos de assegurar à população indígena aquilo que a Constituição Federal determina – a demarcação e garantia das terras que tradicionalmente ocupam. Para estes segmentos tudo se converte em problemas de soberania nacional, conceito que agora serve para proteger interesses (não apenas nacionais) sobre grandes propriedades de terra e sobre recursos estratégicos, tais como a água, energia, minérios, madeira, biodiversidade e a própria terra. Mas se as questões de “soberania” são acionadas ao falar em demarcação de terras indígenas, elas não parecem relevantes quando se trata de flexibilizar a legislação e possibilitar o acesso de transnacionais a recursos estratégicos – tudo se justifica num suposto caminho único para o atual modelo de “desenvolvimento”, no qual as terras indígenas se tornam obstáculos.

Recentemente, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, cedeu às pressões de um grupo de políticos, de fazendeiros e autoridades locais, comprometendo-se em suspender as atividades do Grupo de Trabalho (composto por antropólogos e outros profissionais) de identificação das terras Guarani-Kaiowá. Márcio Meira prometeu que colocará dentro do grupo de trabalho representante do governo do Estado e de outros interessados contrários à demarcação das terras, o que é ilegal e inviabilizará o procedimento demarcatório. A garantia das terras indígenas é vista, nesta e em outras regiões, como geradora de prejuízos à economia dos estados e, portanto, como causa que contraria os interesses na “nação”. Mas de que nação se está falando, na qual os direitos individuais e coletivos sucumbem diante de interesses econômicos privados?

Talvez o maior sinal de alerta sobre o tipo de sociedade que estamos produzindo, seja o fato de considerarmos previsível uma atitude oficial como esta, de suspender ações que sejam polêmicas em tempos de campanha eleitoral. Ao que parece, o próprio presidente Lula delegou ao presidente da Funai a tarefa de acalmar os ânimos naquela região, e produzir um efeito anestésico para não prejudicar os interesses eleitoreiros às vésperas da eleição. Mais uma vez os Guarani-Kaiowá serão tratados como um resíduo, uma incômoda lembrança de que existe mais do que cálculos de lucro e cabeças de gado em jogo naquela região. Mais uma vez serão promovidas políticas compensatórias, paliativos para uma dor que se prolonga há décadas.

Não bastassem as diversas formas de violência – física, simbólica e cultural – praticadas contra aquele povo indígena, agora se nega a eles a concretização dos procedimentos de demarcação que poderiam, efetivamente, assegurar-lhes condições adequadas de vida. Não é por acaso que o número de assassinatos indígenas seja tão alarmante nas áreas Guarani-Kaiowá, que só neste ano foram registrados 31 casos. Para se ter uma idéia da gravidade da situação ali instalada, em todo o Brasil ocorreram 40 assassinatos. Isso é resultado de uma política de extermínio, promovida através de estratégias como o confinamento, que priva as pessoas de toda humanidade.

Nada diferente se poderia esperar de elites, acostumadas ao desmando, à discriminação e a brutalidade para garantir vantagens econômicas e privilégios individuais. No entanto, do poder público, do governo brasileiro, se espera o cumprimento das determinações constitucionais, o respeito à lei maior deste país e a garantia dos direitos não apenas dos povos indígenas, mas de todos os segmentos da população.

Temos escutado, com uma freqüência assustadora, eloqüentes discursos contrários aos povos indígenas e, em especial, afirmações ofensivas contra as lutas em defesa da terra. E para legitimar esses ataques recorre-se inclusive àquele velho jargão de que os índios não estariam se manifestando por conta própria e que, portanto, haveria sempre alguém para manipulá-los, com interesses inconfessáveis.

Honestamente, me pergunto em que mundo vivem certos jornalistas, comentaristas ou filósofos que continuam vendo os povos indígenas sob as lentes do primitivismo, da incapacidade e da falta de vontade própria. Por traz desse tipo de pensamento reside a arrogante certeza de superioridade da cultura ocidental, branca, masculina, aquela mesma arrogância que está na base de toda relação autoritária que historicamente construímos com os diferentes povos desse país. E reside também uma tentativa de legitimar um modelo de desenvolvimento, de progresso, de nacionalidade globalizada nas quais os interesses coletivos não têm a menor importância.

Nos últimos meses, tenho escutado no rádio e visto pela televisão manifestações de parlamentares e outras figuras que posam de comentaristas, analistas de programas televisivos e de jornais, afirmações de que os índios têm terra de mais, de que eles devem se integrar à comunhão nacional.

Mas um comentário em especial me chamou a atenção e foi proferido por um político, que não recordo o nome: “as terras indígenas correspondem a três estados do Paraná, se o governo demarcar todas, daqui a pouco ficaremos sem terras agricultáveis para produzir alimentos”. Este tipo de argumento serve unicamente para vincular um discurso autoritário, preconceituoso e retrógrado a um tema que hoje está em pauta – a possibilidade de sofrermos com a escassez de alimentos, em escala global. Espantoso que essa mesma argumentação não sirva para questionarmos a concentração de terras em latifúndios destinados ao monocultivo de cana-de-açúcar para fabricação de combustíveis, ou de eucalipto para celulose, ou de soja para alimentar rebanhos de gado no exterior.

É cada vez maior a extensão das terras agricultáveis concentradas nas mãos de poucos proprietários, especialmente grandes empresários ligados a grupos econômicos estrangeiros, como é o caso da Aracruz Celulose, a Monsanto e a Nestlé. As referidas terras é que não têm servido aos fins de produção de alimentos, e elas correspondem a um grande percentual da área territorial brasileira. Embora a Constituição Federal estabeleça no art. 5º, XXIII que “a propriedade atenderá a sua função social”, o percentual de terra concentrada em latifúndios não causa o mesmo alvoroço e críticas que aqueles direcionados aos direitos indígenas, pois este tipo de direito – a propriedade privada – parece incontestável.

Vale enfatizar que a Constituição Federal também estabelece, no Art. 231, o direito dos povos indígenas à demarcação e garantia das terras. Sendo assim, se esses dois direitos estão assegurados na mesma lei, o que nos autoriza a rechaçar um deles e reconhecer o outro? Não estariam essas “leituras” ainda profundamente marcadas por visões elitistas, colonialistas, autoritárias? De qual desenvolvimento estamos falando quando acusamos os povos indígenas de serem empecilhos, entraves e penduricalhos, mas admitimos a apropriação privada de recursos e de bens estratégicos, tal como as florestas, as águas, os minérios?

Estamos sim, em nossa sociedade, compactuando com um modelo que acata demandas que asseguram o “direito” de enriquecimento exorbitante a certos setores da economia, e que, para isso, negam-se a outros grupos humanos o direito à vida, ao trabalho, à segurança, ao bem estar e a terra. Vale ressaltar ainda o Art. 170 da Constituição, que afirma: a ordem econômica tem por fim assegurar a TODOS existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Nesse sentido, as lutas dos povos indígenas nos alertam para a necessidade urgente de retomarmos (ao menos algumas) estratégias e demandas coletivas, ao invés de nos conformarmos com certas condições que entregam cada indivíduo à sua própria sorte. Protestar contra o desmatamento da Amazônia, ou contra a miséria, a fome, a violência, postando mensagens em sites, acomodados na poltrona de nossas casas, pode ser um confortável e conveniente antídoto contra um mal-estar que sentimos ao ver grandes parcelas da humanidade submetidas, cada vez mais, a condições degradantes. Mas certamente podemos fazer muito mais do que isso, começando pelo apoio às lutas concretas daqueles que não desejam nada além do justo tratamento e a garantia de seus direitos humanos, históricos, constitucionais.

Iara Tatiana Bonin. Doutora em Educação pela UFRGS

Artigo originalmente publicado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI

[EcoDebate, 13/10/2008]

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