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Artigo

Cidadania do medo: quando os governos alimentam os medos dos cidadãos, artigo de Nadia Urbinati

As sociedades ocidentais vivem em uma paradoxal situação que repropõe, em toda a sua gravidade, a longividência do paradigma de Thomas Hobbes segundo o qual o medo indistinto e genérico, porque dificilmente racionalizável, é a pior condição para a afirmação da paz social.

No tempo de Hobbes eram os profetas religiosos e os fanáticos quem alimentava aquele medo com a arma da retórica e da linguagem apocalíptica das sagradas escrituras. Hoje, é a própria sociedade liberal que parece achar econômica e politicamente conveniente alimentar um medo indistinto e anônimo por inimigos que podem estar em qualquer lugar e que são totais. Em cada época, a paz civil esteve ameaçada por tiranos, ditadores e demagogos. Tratava-se de ameaças visíveis e identificáveis.

Hoje é o próprio sistema social que gera pânico e ameaça a paz. Jaume Curbet escreve em um livro sobre insegurança, prestes a sair pela Donzelli Editore, que expressões genéricas como “insegurança urbana”, “crime organizado”, “desastre ecológico”, enfim “terrorismo”, criam um tipo de medo que, muito mais do que aquele dos tiranos do passado, toca as raízes mais ancestrais e é, portanto, mais extremo e menos resolvível. Isso torna o desejo de segurança um desejo nunca apagado, tanto que nem mesmo o Estado consegue transmitir segurança por meio do medo da lei. O medo indistinto se traduz em soluções que são, também, indistintas – que objetivam mais atingir a imaginação dos cidadãos do que resolver a sua insegurança. Com efeito, uma vez que o medo é associado a um objeto indistinto, é ao contingente que se presta mais atenção. Isso explica a demanda, por parte dos cidadãos, de intervenções imediatas ou do “aqui e agora”; demanda de medidas de emergência e de decisões exemplares; soluções efêmeras (e pouco em sintonia com os procedimentos e as deliberações democráticas) que sirvam essencialmente para manter sob controle os sintomas da insegurança. A política da insegurança na era da insegurança indeterminada e global, onde todos sofrem a influência de todos, tem uma função essencialmente sedativa.

Chamamos de segurança o estado psicológico que vem da crença de viver em um ambiente imutável, igual a si mesmo. Por isso, cada perturbação do status quo ordinário é visto como uma fonte de insegurança. Isso explica o paradoxo descrito por Zygmunt Bauman: embora estejamos entre as sociedades mais seguras, no entanto, muitos de nós se sentem mais ameaçados, inseguros e assustados e são, portanto, mais propensos a se tornar presas do pânico e a se entusiasmar por tudo aquilo que é relativo à proteção e à segurança. Em um mundo no qual o risco confunde os contornos do imprevisível e do indefinido, os cidadãos não se importam em saber que as causas do perigo são complexas e não redutíveis a uma só; desejam apenas que os remédios sejam simples, imediatos e, sobretudo, próximos no tempo e no espaço; experimentáveis no cotidiano. Por exemplo, a globalização dos mercados e das esperanças de bem-estar traz milhões de imigrantes a procurar uma vida melhor no nosso continente e no nosso país. A transformação multiétnica de muitos bairros das nossas cidades basta por si só para mobilizar o medo, um medo sem uma causa específica. A primeira condição para domá-lo é que os imigrantes sejam poucos ou que sejam e permaneçam invisíveis; que, enfim, ou sobretudo, o Estado se mobilize contra eles (e também os empregados privados, se necessário) com todos os meios disponíveis, ainda que arbitrários e inconstitucionais. Sob a condição de que alguns êxitos imediatos lhes sejam vedados, ainda que mínimos.

Mas um aspecto novo dessa “obsessão pela segurança” consiste no fato de que este é ainda um negócio sob muitos pontos de vida. Existe um mercado da insegurança, o qual, como qualquer outro mercado, deve poder prosperar e, por isso, alimentar o desejo de segurança. Aí está o círculo vicioso do qual são vítimas as sociedades democráticas maduras: o medo genérico alimenta o desejo de segurança e é, por sua vez, alimentado por esse desejo. No topo dessa corrente está a segurança como negócio (político, acima de tudo, mas não só, porque as “empresas” que oferecem segurança são sempre muitas). Alimentar o medo artificialmente, então: essa é a arte das empresas que se ocupam da segurança. Mas como produzir insegurança artificialmente? Se é verdade que o medo anônimo e indistinto está na origem do pânico da insegurança, não há modo melhor para mantê-lo vivo do que criando bodes expiatórios. A história é pródiga de exemplos: a caça às bruxas, a caça aos judeus, a caça aos subversivos. A atual insegurança urbana é alimentada artificialmente pela retórica do medo ao diverso: cigano, negro, extracomunitário, muçulmano. É verdade que a origem da nossa criminalidade (causa tangível e documentada de medo justificado) não está de jeito nenhum aqui: a Itália tem um crime organizado e desumano que estrangula metade ou até mais do seu território nacional, mesmo assim os jornais e as televisões falam apenas dos episódios de violência que envolvem os “outros”.

A política da insegurança encontra um alimento natural nas políticas neoliberais, aquelas que hoje gozam de maior estima junto aos nossos governos, políticas orientadas principalmente a responder às demandas de segurança de uma população assustada mais do que a resolver os problemas e os diversos conflitos que estão na origem das várias manifestações de delinqüência. As políticas da segurança tomaram o lugar das políticas sociais. A filosofia dos governos de direito, como o italiano, é que se um problema ocorre isso não é um sinal de injustiça social, mas sim de má sorte e desgraça, ou de incapacidade pessoal ou falta de mérito. Em cada caso, a caridade humanitária e religiosa pode, melhor do que o estado social, curar essas chagas. Cabe, portanto, às associações civis, à família (às mulheres em primeiro lugar, poderoso substituto do estado social em retirada) e às paróquias ocupar-se da pobreza. O Estado deverá, ao máximo, distribuir carteirinhas de pobreza aos necessitados e sustento econômico a quem lhes socorre. Mas a sua atribuição é outra: a de ocupar-se da insegurança gerada pelo medo. O neoliberalismo libera o Estado da obrigação de promover políticas sociais (esse é o significado da subsidiariedade) para ocupá-lo intensamente no dever repressivo. Dissociando o problema social da segurança é colocada uma interessante divisão do trabalho entre a sociedade civil e o Estado: a primeira se ocupa do problema, o segundo, da segurança.

O paradoxo é que, vivendo da insegurança, o Estado será naturalmente levado a alimentar a percepção da insegurança. Para isso, tornam-se necessários cidadãos medrosos para o próprio papel do Estado ser legitimado. Ele faz isso multiplicando exponencialmente as suas polícias, porque, como se disse, são as ações exemplares que atingem a imaginação. Por isso, o território mais próximo deve ser, sobretudo, controlado e patrulhado – os bairros, as cidades (isso explica o favor que a retórica federalista encontra). Junto às polícias de Estado, nascem e se multiplicam pequenas polícias privadas, em um crescendo de ofertas de segurança, que é, como escreveu Ulrich Beck, “como a água ou a eletricidade, um bem de consumo, administrado, seja pública ou privadamente, para se obter benefícios”. Em todo o caso, as fronteiras aparentemente fortes entre segurança pública e segurança privada parecem esvair-se, e aquele que é o medo indistinto pelo incomum e pelo diferente se torna uma formidável mercadoria: vendida pelos governos para manter alta a tensão e, assim, incrementar consensos, amplificada pelas mídias que são, porém, um produto de mercado, entendida pelos cidadãos na solidão de seus bairros como um medo genérico alimentado pela arte que está desertificando.

O artigo é de Nadia Urbinati, do jornal italiano La Repubblica, 08-10- 2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

(www.EcoDebate.com.br, 11/10/2008) entrevista publicada pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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