O fim dos sapos, artigo de Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
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[Correio da Cidadania] Os anfíbios, grupo biológico do qual fazem parte sapos, rãs e pererecas, já sobreviveram a quatro extinções em massa na história da Terra (houve uma quinta, antes de seu surgimento na Terra). Porém, a notícia triste é que, na atual onda de extinções causadas pela ação humana, eles estão se dando muito mal. Para piorar, eles fazem parte daquele grupo injustiçado de seres vivos que causam sentimentos negativos em muitas pessoas, seja por falta de conhecimento apropriado ou por razões de segurança ou higiene. Há exageros sobre envenenamento (embora algumas espécies muito coloridas sejam até letais, caso o veneno penetre a corrente sanguínea). Sapos não miram para urinar nos olhos de ninguém. Muitas pessoas sentem asco ao contato com a sua pele fria e úmida e a maioria os acha simplesmente feios ou repugnantes. Também são conhecidos os atos de crueldade que crianças costumam fazer com estes bichos, torturando-os com sal ou colocando cigarros para que “fumem”.
Honestamente, tenho dificuldade de achar algum bicho verdadeiramente feio, mesmo dentre aqueles tidos como os mais asquerosos. Anos de treinamento profissional em biologia, além de uma inclinação anterior de apreciação da natureza, fizeram com que eu veja os seres vivos com outros olhos. Enxergo a mão invisível da evolução aqui, aprecio a beleza de um comportamento ali, admiro a adaptação de uma estrutura morfológica acolá.
E no caso dos anfíbios, ao estudá-los um pouco mais vemos que são animais fascinantes. Eles surgiram por aqui há muito tempo, entre 350 e 400 milhões de anos atrás. Para se ter uma idéia, calcula-se que o ser humano, na sua forma atual, não tenha mais que 150-250 mil anos no planeta. Apesar de a grande maioria das cerca de seis mil espécies de anfíbios dependerem de água para reprodução, são encontrados nos mais diversos ambientes. Há sapos até em desertos e pererecas que passam a maior parte da vida em árvores ou dentro de bromélias. Algumas, particularmente as realmente venenosas, são de um colorido tão vivo que parecem pinturas: laranja intenso, vermelhas com pernas azuis, amarelas e pretas (sugiro ao leitor que faça uma busca na internet por Dendrobatidae, para conhecer estas espécies).
Um dos aspectos mais fantásticos dos anfíbios está na diversidade das suas formas de reproduzir-se. Na mais comum, os espermatozóides e óvulos encontram-se na água (ao invés de dentro do corpo da fêmea), formando ovos, que se desenvolvem em girinos, os quais, após algum tempo, metamorfoseam-se em adultos (caso único entre os vertebrados). Mas há todo tipo de variação imaginável: ovos dos quais eclodem sapinhos em miniatura, sem a fase de girino; fecundação interna, com produção de ovos, que podem eclodir dentro do corpo da fêmea; ou até mesmo o nascimento direto de sapinhos, sem formação de ovos. Os girinos podem desenvolver-se até mesmo no interior do estômago de adultos, após serem engolidos por eles! Há espécies que carregam os ovos no dorso, outras que colocam os ovos em ninhos de espuma sobre a água, espécies que fazem “piscininhas” para seus girinos. Isto pra não mencionar a sinfonia dos machos, ao procurar atrair as fêmeas ou defender um território de acasalamento. Quem já passou perto de um laguinho em local quente no verão, principalmente após fortes chuvas, e ouviu a maravilhosa profusão (e confusão!) de sons de diversas espécies cantando simultaneamente sabe do que estou falando. É encantador.
Voltando à situação delicada em que se encontram esses animais, já se sabia há algum tempo que várias espécies vêm sofrendo uma misteriosa redução populacional, maior até do que se esperaria com base nos resultados usualmente catastróficos de nossa interferência nos ambientes naturais. Um estudo feito por cientistas da Universidade da Califórnia aponta que cerca de um terço das espécies de anfíbios estão ameaçadas em todo o mundo. Diversas causas, a grande maioria de origem humana, contribuem para o problema: redução, alteração e fragmentação de habitat, alterações climáticas, super-exploração de espécies, introdução de predadores e competidores, poluição química (principalmente pesticidas agrícolas), poluição sonora (dificulta a comunicação, a qual é fundamental na reprodução), doenças (sobretudo uma causada por um fungo, possivelmente facilitada pelo aquecimento global), aumento da radiação UV, deformidades e malformações de origem desconhecida. No Brasil, já perdemos uma espécie de perereca, que habitava a região de Paranapiacaba, no estado de São Paulo.
A situação é tão grave que, no ano passado, cientistas do mundo todo reuniram-se em um projeto (Amphibian Ark), como parte de um plano geral de conservação dos anfíbios. Eles pretendem reproduzir em cativeiro aquelas espécies que não estão seguras na natureza, até que um dia possamos repovoar o ambiente. Uma espécie de Arca de Noé dos tempos modernos. Ou seja, a situação está tão ruim que já estão partindo para tentar salvar as espécies em cativeiro, porque na natureza as chances estão cada vez menores. Como parte da campanha de conscientização, elegeram 2008 como o ano da rã.
Por comporem um grupo que se mostrou mais sensível aos desequilíbrios ecológicos (embora por razões ainda não compreendidas), a situação dos anfíbios exemplifica bem os impactos desastrosos do homem sobre o meio ambiente. Em nossa curta estada no planeta, principalmente nos últimos 200 anos (uma mísera fração, se pensarmos no tempo que o planeta é habitado por seres vivos), conseguimos nos tornar a espécie que, sozinha, mais alterações promoveu em todo o globo. Eliminamos ou fragmentamos boa parte dos ambientes naturais, poluímos mares, rios, lagos, o solo e o ar com um sem-número de substâncias tóxicas diferentes, represamos e mudamos a direção de boa parte dos rios para nos prover de energia ou para nossa comodidade, movemos montanhas, não por fé, mas para extrair minérios de suas entranhas, introduzimos espécies onde elas não existiam, muitas vezes com conseqüências desastrosas, estamos mudando o clima. Com isso, já dizimamos várias espécies (algumas das quais nem chegamos a conhecer), isto sem falar nas que eliminamos diretamente, tanto para nos alimentar quanto por mero esporte.
Extinção é um processo natural para as espécies, mas a velocidade e as taxas com que vem ocorrendo aumentaram muito recentemente, apenas por nossa causa. Tanto que alguns cientistas e ambientalistas já denominam o fenômeno como a provável sexta extinção em massa da história do planeta. Mas não nos iludamos. A natureza cobrará seu preço e a chance de continuarmos habitando a Terra dependerá da nossa capacidade de frear e reverter parte de nossos impactos. Caso contrário, apenas aceleraremos a nossa própria extinção, junto com a de muitos anfíbios, peixes, répteis, insetos e plantas.
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.
Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania.
[EcoDebate, 01/10/2008]