Exploração de trabalho clandestino no Brasil necessita de atenção
A feira dominical da Kantuta, no Pari – próxima às oficinas de tecelagem – reúne muitos bolivianos residentes em São Paulo (Foto: Alcimar Frazão)Agência de Notícias Repórter Brasil.
Trabalhadores que estão em situação irregular no Brasil são explorados em confecções, principalmente na cidade de São Paulo, mas não recorrem à justiça, pois temem a deportação. Para a advogada e pesquisadora Denise Pasello Valente Novais, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), essa situação precisa mudar. De acordo com Novais, que defendeu recentemente uma tese de doutorado sobre o tema, estão hoje em São Paulo entre 120 e 160 mil bolivianos. Para compreender as condições desses migrantes, que não estão todos na mesma situação, a pesquisadora fez um mapeamento das suas rotas desde a Bolívia até a cidade. Por Flavia Natércia, da ComCiência.
“Há registros de paraguaios, peruanos, equatorianos e até brasileiros trabalhando em condições análogas à de escravo em confecções de São Paulo. Mas a imensa maioria é de bolivianos”, conta Novais. Como a exploração do trabalho dos bolivianos está em grande medida relacionado ao tráfico de pessoas, a pesquisadora defende a importância de ações previstas no Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que tem por objetivo prevenir e reprimir tal conduta e responsabilizar seus autores, garantindo atenção às vítimas, nos termos da legislação em vigor e dos instrumentos internacionais de direitos humanos.
Mas para isso, Novais afirma a necessidade de melhorar a legislação, criminalizando esse tipo de exploração do trabalho, e fiscalizando as confecções. “O poder público pode e deve fazer mais”, diz ela. A pesquisadora também destaca que o problema é muito complexo e as soluções devem ser refletidas por diversas instâncias. “Como atuo na área jurídica, especificamente no campo do Direito do Trabalho, minha análise incidiu sobre o papel da legislação nesse contexto, em especial sobre os direitos que qualquer trabalhador deve ter garantido, ainda que esse trabalhador seja um migrante em situação irregular”. No entanto, para a ela é evidente que as políticas públicas de apoio à vítima, como as relacionadas com saúde e educação, por exemplo, têm de ser pensadas com maior interesse.
No imaginário popular da Bolívia, o trabalho no Brasil tem caráter idílico e se mantém assim apesar das denúncias de trabalho em condições degradantes e das deportações. Segundo ela, isso se deve, em parte, à perversa lógica da miséria, já que, mesmo estando em uma situação ruim no Brasil, muitas vezes o contexto era ainda pior em seu país de origem. “É importante acrescentar ainda um dado que me foi trazido por um migrante boliviano, vítima do tráfico: os migrantes submetidos à exploração do trabalho jamais lhe disseram a verdadeira situação vivida por eles no Brasil, por uma questão de amor próprio”, completa.
Uma das questões que podem prejudicar a forma como o público e as autoridades brasileiras encaram os problemas desse grupo é atuação de alguns imigrantes bolivianos no tráfico de drogas e a forma como eventuais prisões repercutem na imprensa. “Se a mídia enfatizar somente esse aspecto, acredito que a opinião pública possa ser contaminada com o vírus da xenofobia”. Para Novais, decorre daí a importância de evidenciar que recebemos diferentes tipos de migrantes bolivianos, enquanto alguns atuam em atividades ilícitas, outros são trabalhadores explorados por uma cadeia produtiva que visa apenas lucrar com a exploração da mão-de-obra barata.
“Cabe aos órgãos formadores de opinião mostrar à sociedade brasileira que os trabalhadores bolivianos submetidos ao trabalho em condição análoga à de escravo são vítimas, e como tal devem ser tratados. O tráfico de drogas pode estar relacionado ao tráfico de pessoas, mas é importante que se tome consciência das peculiaridades de cada uma das situações, para tratar de forma adequada as verdadeiras vítimas, que merecem proteção, e não repressão”, argumenta a pesquisadora.
Relatório da ONU
A ONU lançou na segunda semana de setembro, por meio de três entidades (Cepal, PNUD e OIT), o relatório intitulado “Emprego, desenvolvimento humano e trabalho decente: a experiência brasileira recente”. Segundo o documento, o mercado de trabalho no país, entre 1990 e 2006, teve como marcas a heterogeneidade e um elevado déficit de trabalho decente. Ao todo, foram avaliados 28 indicadores de trabalho decente, relacionados a emprego, proteção social, direitos no trabalho e diálogo social.
A lista de problemas é extensa: elevadas taxas de desemprego e informalidade que resultam em baixo grau de proteção social e inserção inadequada dos trabalhadores; expressiva parcela de mão-de-obra sujeita aos baixos níveis de rendimento e produtividade; alta rotatividade no emprego; alto grau de desigualdade entre grupos, refletindo um nível significativo de discriminação, sobretudo em relação às mulheres e aos negros; qualidade insuficiente das ocupações; condições inapropriadas de trabalho.
Apesar de ter havido melhorias em alguns quesitos, em parte pela atuação da Comissão Pastoral da Terra, dos sindicatos rurais, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel e do Cadastro de Empregadores, permanecem graves violações a direitos fundamentais, como o trabalho infantil e o trabalho forçado – escravidão, servidão por dívida ou condição servil.
Conforme definido no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Protocolo de Palermo), “práticas similares à escravatura” devem ser entendidas como equivalente à conduta punida pelo artigo 149 do Código Penal. O artigo afirma que “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A pena é de 2 a 8 anos de reclusão e multa.
Para saber mais leiam:
Bolivianos irregulares explorados em confecções não têm acesso à Justiça
trabalho escravo: Entidades tentam inibir exploração de bolivianos em SP
Matéria de Flavia Natércia, da ComCiência, Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, BPC/LABJOR, publicada pelo EcoDebae, 01/10/2008.